1660
Formação da Company of Royal Adventurers Trading to Africa, destinada a abastecer de escravos as Caraíbas Britânicas.
Manuel da Costa Palma provido ouvidor em 1660. Acusado pelo Governador Ferraz e Figueiroa, foi sindicado pelo Governador Galvão, que o ilibou de toda a culpa, considerando o seu procedimento digno de todo o louvor. Teve hábito de Cristo com pensão vitalícia de 40$000 réis. Foi até Guiné examinar as contas dos capitães-mores de Cacheu. No tempo de Costa Pessoa foram desdobrados os cargos de ouvidor e de provedor da Fazenda em África e no Brasil, por se julgar conveniente confiar estas funções a duas entidades diferentes. Mas esta separação mal chegou a executar-se, continuando o sistema primitivo.
O capitão-mor de Cacheu, MANUEL DIAS QUATRIM, queixou-se do governador FRANCISCO FIGUEIROA por este ter proibido o comércio aos moradores daquela praça e querer-lhes confiscar a fazenda. O governador proibiu o comércio com os estrangeiros que ali iam buscar escravos, o que de há muito não era permitido.
Conclusão da construção do hospício de Cacheu com o nome de Nossa Senhora da Piedade.
1660/12/00
Em Dezembro de 1660, quase quatro anos depois da implantação da ordem em Santiago, os capuchos frei Paulo de Lordelo e frei Sebastião de São Vicente
da Beira chegaram à Guiné, a fim de
fundar o hospício da Piedade em Cacheu e dar início a acção missionária de
religiosos portugueses na região, na medida em que religiosos espanhóis
enviados pela Propaganda Fide trabalhavam na Costa da Guiné desde a década de
40.
1661
António
da Fonseca Ornelas nomeado capitão-mor de Cacheu em
1661, posse em 1662.
Os
dados disponíveis, expressamente, sobre Lemos
Coelho respeitam já ao final da sua vida guineense. A primeira referência
encontrada data de 1661, e é relativa à sua
presença em Cacheu. Note-se que no mesmo ano em anexo à carta dos oficiais
da Câmara da Ribeira Grande a El-Rei — além de outros papéis, todos de crítica
ao governador de Cabo Verde — inclui-se um rol das pessoas que contribuíram pecuniariamente para a ida do capitão
António Cabral ao Reino, “a tratar do bem comum desta ilha e povo della”
eleito para esse efeito em câmara. Nesse rol impressionante de 125 pessoas, em
que se incluem os oficiais da Câmara (2 juízes, 2 vereadores e o procurador da
Câmara), e os “cidadões e mais pessoas do povo”, mas maioritariamente pessoas
de importância, constam 41 com o título de capitão (afora os com o de
capitão-mor). Nele não consta Lemos
Coelho (nem aliás, nenhum dos autores estudados), nem familiares seus
conhecidos (1).
.Ribeira Grande, 13 de Agosto de 1661.
(1) Ressalve-se, ainda
assim, um indivíduo que preferiu guardar o anonimato.
Cfr. AHU, Cabo Verde, caixa 5A, doc. 114
Em 1661 o governador
FRANCISCO DE FIGUEIROA teve um grave litígio com os oficiais da Câmara da
Ribeira Grande que se negaram a acompanhá-lo à igreja no dia de Santa Isabel,
como sempre fora costume. Segundo ANTÓNIO
GALVÃO, governador de Cabo Verde, que, chegando à ilha, fez uma devassa sobre esse
caso, em 1662, o povo da Ribeira Grande tinha "/ .. ./ por maior brasão da
vida a cerimónia da sua bandeira e estão postos em costume de tempos muito
antigos que os governadores lha acompanhem; os dias das festas e procissões Reais e
sentem tanto esta pertinência que mais depressa deixarão morrer filho, e a
mulher e perdendo toda a sua fazenda que perder esta pertinência, a qual
dizem eles que se acostumou desde que se povoou a terra / .” Segundo este
antigo costume os cidadãos e oficiais da câmara iam buscar os governadores a sua casa e
todos juntos iam à casa da câmara, de onde saia o juiz ordinário mais velho com
a bandeira e se punha ao lado do governador para seguirem assim para a igreja.
Da mesma forma tornava a bandeira à câmara, indo depois os oficiais camarários
acompanhar o governador à sua morada. Segundo António Galvão, isso foi possível
enquanto as ilhas eram governadas por corregedores e por capitães-mores que ocupavam o cargo de presidentes das câmaras e por isso acompanhavam a bandeira
do concelho, que também era a deles. A Francisco de Figueiroa esse costume ancestral, que obrigava o
governador a ir "buscar um pendão do concelho", pareceu pouco digno para um homem a quem o rei
deu o título de capitão-geral, cargo tão importante que o vai buscar a sua casa
uma companhia "com seu capitão e ordenança com bandeiras tendidas e tocando
caixas a fazer-lhe guarda a sua porta: e esta bandeira sendo real se lhe abate quando
sai”. Mas para os moradores da ilha esse acto de agravo a seus costumes foi
tomado como desprezo à sua República, o que fez com que decidissem que, se os
governadores se negassem a acompanhar a bandeira da câmara, eles também não
tinham a obrigação de fazer a "cortesia" de o escoltar. Quando os
oficiais camarários se negaram a acompanhar o governador a sua casa este
mandou prender o sargento-mor da ilha de Santiago e provedor da Fazenda Real, PEDRO DE BARROS, e ao juiz ordinário, sargento-mor MANUEL FIDALGO DA COSTA,
Esta decisão do governador fez com que o senado mandasse fazer pregão para que
se ajuntassem todos os cidadãos na casa da câmara afim de se tomar uma
resolução sobre a questão da bandeira. Neste caso foi o ouvidor-geral, MANUEL DA COSTA PALMA, que serenou os
ânimos, evitando que se juntasse o povo e eclodisse um motim o que, segundo o
governador Galvão, sucedia "em
semelhantes ajuntamentos populares sobre semelhante matéria e com gente quase
toda preta endémica e de pouca razão”. Qual era o
controlo da elite sobre esta "gente
quase toda preta endémica e de pouca razão"? Quem podia dominar um
motim após ter deflagrado?
Então os officiaes da camara mandaram tocar o
sino a rebate, chamando assim o povo á revolta, para lincharem tão imprudente
auctoridade. Esta ainda teve tempo de fugir para casa a bom correr e escapar
assim ás iras do povo. Acto continuo reuniu-se a camara para resolver sobre a
altitude que devia tomar, e de commum accordo foi decidido fazerem saber a
El-rei os abusos que elle já havia commetido durante o seu governo, a fim de se
lhe tirar residencia.
Formularam
essa acusação em trinta artigos, em data de 13 de agosto; pelos quaes
resumidamente se mostrava ser elle pouco honesto, pois que quando foi tomar
posse do governo apenas levava comsigo um fardo de panno de linho de S. Miguel,
tendo o governador Ferraz Barreto que lhe dar cama, cadelras e o mais preciso
para o serviço da casa, e que para S. Miguel mandou mais de cem mil cruzados,
havidos por descaminhos da fazenda de El-rei, estanqnes na ilha e
em Guiné, vexações e tyrannias usadas contra o povo desde que chegou á ilha,
parecendo mais homem mercantil do que governador.
Negou-se
a ir á camara tomar posse e mostrar a patente que trazia, como sempre usaram os
outros governadores, em conformidade das ordens régias, e sendo d'isso
advertido por um dos officiaes da camara não houve insultos que não lhe
dirigisse; tambem se negou a ir tomar posse da fortaleza de S. Fillppe, que era
a chave da praça de armas da ilha, assim como nunca lá foi durante o tempo do
seu governo, nem ás outras fortificações e portos, cuidando apenas do seu
negocio, que começou com o tal fardo de linho, deixando pelo seu desleixo
arruinar-se as peças, reparos e carretas.»
Subsídios para a História de Cabo Verde
e Guiné, por Christiano José de Senna Barcellos, parte II, pgs. 38-39, Lisboa, 1900
1661/02/02
CARTA DO POVO DE CACHEU
A EL-REI
(2-2·1661)
SUMÁRIO
-Agradecem ter-lhe enviado os dois frades Capuchos, cujos trabalhos
apostólicos descrevem, pedindo que lhes envie outros a mesma ordem.
Senhor
A
V. Magestade damos conta todo este pouo de Cacheo, Rio de Sam Domingos em
Guiné. em como Deus e V. Magestade nos tem feito merçê mandar a estas remotas
terras tanto bem como hé o Reuerendo PADRE
FREJ PAULLO DE LORDELO, presidente de Cabo Uerde, Comissareo do Sancto
Offiçio, seruo de Deus, como se uê e se mostra, e FREJ SEBASTIAM DE SAM UISENTE o[u]tro seu seruo, e companheiro do
dito Reuerendo Padre prezidente, os coais cheguaraõ nesta dita praça em o
prençipio de Setembro de 660, onde logo os acomodaraõ na Caza forte de V.
Magestade athé se lhes fazer agazalho em que hoje uiuê os ditos Relegiozos,
trataraõ e puzeraõ por obra de remeteré a doutrina christam nesta matris,
asestindo en tudo que a seus abitos hé dado, como en todos os sabados depois
das letanias peguar o dito Reuerendo Padre prezidente e en todos dominguos na
mesma conformidade e as tardes ensinando o terço da Senhora entuado e no fim
fazendo o dito Reuerendo Padre prezidente pratica spiritual da dita Senhora e
em os mais dos dias fazendo doctrina asestindolhe en tudo o Reuerendo Padre seu
companheiro com muita deuasaõ, de que nós uendo o muito fruito, zelo e christan~ade dos ditos Religiozos estamos admirados do que uaõ obrando
en seruiço de Deus, cõ que nos alegramos e athé o gentio está satisfeito.
Pedimos
a V. Magestade como Rej e Senhor e padroeiro desta Religiaõ Capucha, que de
muito fruito e prendas que tem semeado pola India, Ethiopia, Perçia e mais
partes de cristandade e de infieis, guoze esta praça de Cacheo e Reinos destes
infieis de taõ grande bem, pois o
Cappitam mor cõ o Reverendo doctor Gaspar Uoguado os recolheo em huma das
fortalezas de V. Magestade, sufisiente pera o tal efeito cõ todo o zelo,
fabricandolhes hü oratoreo com tres selas e luguar pera se podere fazer mais,
cõ a uista pera o jentio e huã porta aberta pera o pouo, administrando os
sacramentos, ao que nos moueo a pedirmos a V. Magestade mande mais Relegiozos
desta dita bordem dese Reino pera prensipio desta uinha, taõ boa e sancta como
se uê.Os ditos estaõ de partida pera os banhus a bautizar o Rei e algüs
fidalguos e do fruito que forem obrando a V. Magestade faremos auizo.
Hé
nos patente que V. Magestade escreueo ao dito Cappitam mor sobre os ditos
Relegiozos, o coai lhes faz tudo com a pontualidade que costuma e se requere,
asim no substento delles como no mais. //
O
Ceo guarde a Catoliqua peçoa de V. Magestade pera amparo de seus uasalos que
per estas remotas partes asestimos. //
Cacheo,
2 de Feuereiro 1661 annos.
(Seguem-se
as assinaturas en fotogravura)
AHU - Guiné, cx. 2.
1661/10/03
Os oficiais da câmara de Cabo-Verde enviam à corte um
procurador com cartas e papéis de queixas
do governador FRANCISCO DE FIGUEIROA, e pedem para nomear sindicante para lhe tirar
residência.
1661/12/29
«António Galvão nomeado em 29 de
Dezembro de 1661, com o ordenado de 600$000, tomou posse em 16 de Maio de 1663.
No seu governo foi introduzido o papel selado em Cabo Verde e Guiné.» João Barreto
1662
Forte
de Cacheu –Todavia,
quando ANTÓNIO FONSECA DE ORNELAS,
tomou posse da praça de Cacheu em 1662, achou-a sem qualquer tipo de sistema
defensivo (sem estacada e baluartes) e num estado deplorável onde faltavam
soldados, armas e munições. Mandou cercar a povoação com estacadas, colocando a
água do lado de dentro porque esta se encontrava a um tiro de espingarda2 da
povoação. O fato de água estar fora do perímetro do recinto defensivo permitiu
que a povoação fosse objeto de sabotagens por parte dos Papéis sempre que
estavam em desacordo, obrigando os moradores a terem de ceder às usas
pretensões.
1662 (6/3) ORNELAS, António da Fonseca de Carta
a D. Afonso VI (Regência D. Luísa de Gusmão) Governador de Cabo Verde
1662/02/20
CERTIFICADOS
ACERCA DE CACHEU
(20-2-1662)
SUMÁRIO
- António da Fonseca de Ornelas achou
a praça de Cacheu desmantelada -
Os moradores estavam de armas na mão contra o rei vizinho - Obras de
estacada para defesa - A igreja está quase feita de pedra e cal – Armas
entregues pelo capitão Quatrim e lista de soldados que se acharam.
Certifico
eu o capitaõ Joaõ Coelho dEssa,
escriuaõ do publico e judisial e notas e ouuedoria e real fazenda de sua
Magestade nesta pouoaçaõ de Cacheo, que
hé uerdade que coando o capitaõ maior Antonio da Fonsequa Dornellas emtrou a
tomar pose do governo desta praça, que foi em noue dias de feuereiro de mil e
seis sentos e sesenta e dous annos, achou esta dita praça sem forteficaçaõ nem
defença algua mais que a força noua gue uai obrando o Doutor Gaspar Uogado,
admenistrador das obras de sua Magestade, a qual está ainda por acabar e nella
couza de sinco ho seis pesas caualguadas, com que se pode atirar á estaquada que serqua a dita pouoaçaõ, que
hé a maior fortaleza que tem contra os negros gentios da terra, toda arroinada
no chaõ, que hé força tornar se a fazer de nouo, e da mesma sorte a estaquada que falta á Caza forte de sua Magestade,
de sorte que tudo hé nesesario fazer se de nouo. li
Outro
sim que na dita praça estauaõ os
moradores della com as armas na maõ de comtino, ameasados do rey uezinho gue
gueria meter fogo na pouoaçaõ e com a cheguada do dito capitaõ maior
ficaraõ os ditos moradores comtentes e quietos, porque com a cheguada do dito
capitaõ maior fica o rei negro mais uieto. li
Certefico
mais que no dito dia em que o capitaõ maior emtrou nesta praça, chamou os
moradores della e com elles obreguou
serguar a dita pouoaçaõ toda de estaquada, metendo lhe a augoa da banda de
dentro, couza que numqua ouue, couza diguo que o respeito por donde os negros moflestaõ os moradores da dita praça. //
E
asim mais com a estaquada que quer fazer fica tomando mais terra, com que se
pode alarguar mais a dita pouoaçaõ, por coanto naõ tinha terra pera iso.
Certefico
mais que a igreia matris da dita pouoaçaõ está meia feita de pareaes, sem outra
couza alguã e o dito capitaõ maior trata de acabar e mandar buscar
telha pera ella. //
Certifico mais que Manoel Dias Coatrim, capitaõ maior que foi, emtregou
ao dito capitaõ Antonio da Fonsequa Donellas perante min, sete mosquetes
comsertados, que os demais naõ seruem pera nada e asim mais meto cunhete de
ballas de mosquete para arcabus e a Caza de sua Magestade arroinada coaze pera
cair.
//
Certefico mais que no
dia em que o dito capitaõ naior fez lista dos soldados paguos que auia, não
acho[u] mais que coatro, sem auer alferes nem sargento e a naõ cheguar com
tanta breuidade o dito capitao maior coria muito risco esta praça de se perder,
pello muito aperto em qμe estaua com os negros gentios e por pasar tudo o
referido na uerdade e ser publico e notorio a todos (1) nesta pouoaçaô, por mandado do dito capitaõ maior Antonio
da Fonsequa Domellas, ouuidor e prouedor da real fazenda de sua Magestade,
pasei esta sertidaõ de minha letra e sinal publico, em Cacheo, aos uinte dias
de feuereiro de seis sentos e sesenta e dous annos, a fis e a escreuj. //
Joaõ
Coelho dEssa
Sertefiquamos
nós abaixo assinados e pello yuramento dos Sanctos avangelhos, conhesermos ser
esta sertidaõ e sinal feito pelo escriuaõ desta dita prasa e pasar tudo
arrelatado na sertidaõ ser verdade e nos assinamos de noso sinal acustumado.
Cacheo,
27 de feuereiro de 1662 annos.
O
admjnistrador das obras de sua magestade e eu visitador de Gujné
O licenciado Antonio
Vaz da Ponte, Vigario
+ O C. Luis Roíz
Dalmeda, visitador
O Doutor Gaspar Vogado
Capitam Francisco de
Lemos Coelho
O Sargento Pº Rodrigues
O alferes Miguel de
Ribeta
M. Brazio Gomes Capitam
Josepho Roiz de Silua
+ Capitam Luis de Moura
(1) No original: dotos.
AHU - Guiné, ex. 2, doe. 22
1662/03/06
CARTA DO GOVERNADOR DE
CABO VERDE A SUA MAJESTADE EL-REI(6-3-1662)
SUMÁRIO-
Vai numa sumaca [Navio pequeno, à vela, geralmente com dois mastros] para a Guiné - Estado miserável em que encontrou a praça
de Cacheu - Entrega de dinheiro pelo capitão mor - Gaspar
Vogado fez metade da fortaleza - Fica começando a igreja de pedra e cal
tendo encomendado a telha das Indias - Carta régia para os moradores da
povoação.
Senhor
Constrangido
das cartas dos moradores e frades [da] Piedade que me escreuerão á ilha do
Foguo manifestandome o aperto em gue
estauaõ dos reis uezinhos desta pouoaçaõ de Cacheo e como estauaõ pera lhe por
foguo, me detriminej por falta de nauio a enbarcarme em hua sumagua com
todo o risquo da minha uida a esta prassa e e cheguei a ela en dezanoue de
feuereiro, donde fui mujto bem recebido de toda a jente desta pouoaçaõ, e naõ chegar tam breue se perdera a
pras[s]a por estar sercada de gintios e de terem tomado agoa que está hum tiro
de espingarda desta pouoaçaõ e como cheguei logo se retiraraõ os reis com o
recado que lhe mandei e mimos e oie tenho tudo posto en pax e quietaçaõ.
Achei esta prassa no
mais mizerauel estado e pobreza que se pode conheser e sem defença nenhuã, por
quanto a estacada que era uso e custume serquar a esta pouoaçaõ, naõ tem
nenhuã, nen baluartes nen defença que posa enpedir a que os negros lhe naõ
ponha[m] o foguo, o mesmo foi que naõ achei soldados a os mais que dois nen
arcabuzes nen balas e muito pouqua poluora, por donde uosa Magestade me mande com
toda a breuidade com isto que falta, por que naô guero gue se perca huã praça
detanta importansia e de tanto prouejto a uosa Magestade, sendo que en toda
esta costa naõ tem outra e com ela sostenta os demais rios, que saõ de grande
utilidade á fazenda de uosa Magestade e
estamos oie com toda esta costa sercada de todas as nasois de norte, que com
seus resgates caregaõ de tttülto oro, marfim e sera e outros muitos genereos de
grande enportansia.
A
entrega que me faz o capitam mor Manoel
Dias Quatrim foi achar a Caza de uosa Magestade em estado que e nesesario
fazela de nouo, e sem couza nenhuã em que posa tratar da forteficaçaõ desta
praça, asim que o primeiro dia que
cheguei aqui, logo detriminei fortificar a esta praça de estacada e meterlhe
agoa de banda de dentro, couza que nunca se fez nesta praça
e por iso foraõ perseguidos dos negros os moradores e com meter agoa de banda
de dentro e seu baluarte ficará a praça segura e os negros mais sogeitos e terá
esta praça mais terra pera se poder estender mais esta pouoaçaõ de cazas. li
O
dito cappitam mor entregou sinquo mil cruzados que lhe tinha entregue dos
donatiuos de uosa Magestade sostenho en meu poder, e com minha cheguada ueio hum nauio de Cartagena das Indias a buscar
negros, do qual tenho recebido seissentos mil reis e donativos que estao em
meu poder esperando com toda a breuidade me mande uosa Magestade ordem pera que
os posa mandar a Cabo Uerde pera lhe seruirem de aiuda de gestos pera esas
fronteiras que sempre emportarão seis mil e 500 mil cruzados, e mais ora se o
capitam mor naõ tiuera gasta o seiscentos mil reis de hú nauio castelhano que
lhe uejo.
Eu
estou com grandes cargas ás costas por uer
o mizerauel estado en que esta praça está, falta de defença e de soldados,
munisois e armas. Vossa Magestade me acuda com elas, e alenbraçe Vosa
Magestade das fortificasois que fis na ilha do Foguo contantotrabalho e
despendia de minha fazenda, sem gastar nada da de uosa Magestade.
O
doutor Gaspar Uogado tem feito ametade da fortaleza que Vosa magestade lhe
mandou fazer e a obra naõ uai · por diente com muitos achagues de enfermidad
es, asi que uosa Magestade desporá conforme for servido e se uosa Magestade for
seruido e escreueuse, por uias a Antonio
da Fonseca d'Omelas, capitaõ mor de Cacheu, que na primeira embarcaçam, que
se lhe offereçer, para este Reino, sendo segura, remeta ao thezoureiro mor
delle, os seis mil e quinhentos cruzados, que em carta de 6 de março do
prezente anno, auizou, tinha em seu poder, procedidos do donatiuo, do tempo há
seue aquelle posto, pertençentes a minha fazenda. E nas cartas que sobre este
particular, se lhe escreuerem, se lhe significará, que lhe agradeço o zelo, com
que na materia obrou. //
Lisboa,
em 14 de Nouembro de 662.
S.A.
AHU - Guiné, cx. 2, doc. 26.
1662/05/03
CARTA DO
DOUTOR GASPAR VOGADO A SUA MAJESTADE EL-REI (3·5-1662)
SUMARIO
- Pede se lhe mande entregar o
dinheiro que está consignado para a obra da fortaleza de Cacheu, e envia um
treslado do requerimento que sobre isso mandou fazer ao capitão Quartim.
Senhor
Tenho
escritto por uezes a não tiuy reposta neste Cacheot onde V. Magestade me mandou
fazer huma fortaleza, que há seis para sette annos ando trabalhando, por muita
falta de pedras, cal, areya e mettreaes e o dinheiro que uossa Magestade me
mãdou dar por prouisoins de treze de janeiro, de seis senttos e sincoenta e
seis, proçedidos dos donatiuos das naos
castelhanas que o cappitam João Carreiro Fidalgo admetio ao commercio, mos não
quiz o capitam Manoel Dias Quatrtm dar, por muitas e igencias que fiz. E
dessa Corte não me responderão com as ordens que pedia. E do meu cabedal fuy gastando atthé agora por não parar, e faltta pouco
mais ou menos o terço da fortaleza pera se fazer. //
O
cappitam Antonio da Fonseca Dornellas disme que tras ordem de remetter todo o
dineiro que ouuer quá dos depozitos, e ueyo faltão os donattiuos da nao castelhana de Gregorio Gomes e de
Dioguo Barraza, o gue o cappitam manoel Dias Quatrim não dá rezão, dizêdo o
despendera cõ ordinarias; deue V. Magestade mãdar que se de estte dinheiro que
está conçinado pera a fortaleza e douttro cobrar do cappitam paçado o mais
desta praça. O nouo cappitam dá a uossa Magestade contta de seu estado e de sua
deffença. //
Guarde
Deus a real pessoa de V. Magestade.
Cacheo,
3 de Mayo de 662 annos.
Remetto os papeis que
fiz contra o cappitão Manoel Dias Quattrim sobre o dinheiro pera as obras. Vossa Magestade
mandará o que for justtisa.
O
Doutor Gaspar Vogado
[A
margem]: Escreuer
ao nouo gouernador que se informe do estado das obras da forteficasão, e da
Igreia e fauorecendo sua continuação auize do que lhe cõstar e parecer pera
poder resoluer o que mais conuier.
Lisboa,
a 31 de outubro de 662.
(Cinco
rubricas)
AHU - Guiné, ex. 2, doe. 23.
NB - Igual documento de
10 de Julho de 1662.
1662/10/19
O ouvidor-geral de
Cabo-Verde dá notícia que
tirou residência ao governador PÊRO FERRAZ BARRETO.
1662/11/04
CARTA RÉGIA AO GOVERNADOR
DE CABO VERDE
(4-11--1662)
SUMARIO
- Obras da fortaleza e da igreja de
Cacheu - Igreja Matriz da Vila da Praia. - Interesse do governador pelo bom
andamento das obras re feridas.
Antonio Galuão, &. ª Por serem
varios os ayisos, que me tem chegado da Ilha de Santiago de cabo Verde, que
hides gouernar (1), e da Pouoação de Cacheu, sobre o estado em que se achão as
obras da fortaleza que aly mandey fazer, e tambem as da Igreja, sem se poder
saber ajustamente a altura em que de prezente se achão.Me pareceo
encomendaruos, que tanto cõ o fauor de Deus, chegardes á dita Ilha, vos
informeis muito particulatmente do estado em que estão as ditas obras, assy da
fortaleza, como da fortificação da terra, e da Igreja, e tambem da Igreja
Matriz da Villa da Praya; e que de tudo o que vos constar me auiseis cõ toda a
particularidade, cõ vosso
Antonio
Galuão, &. ª Hauendo visto o que me escreuestes em 25 de Junho assado, por
ue me destes conta e estarem acabadas as obras a jgreja e Cacheu; e juntamente
as da Villa a Praya, em que somente a taua por fazer a capepa mor, e que de Cacheu esperaueis auiso do estado
em que estaua a obra daquella fortaleza, para me dares disso conta. E vendo
tambem o que me referis açerca da proibiçao do comerçio da Ilha do Fogo com
naçoes estrangeiras. Me pareçeo dizeruos que na forma em que até hora se fes,
procureis, que se vá continuando cõ as obras da Igreja Matriz da Villa da
Praya, até com effeito se acabar; e nas
de Cacheu, e sua forteficação (em razão da alteração que pode hauer em sua
mudança) se não fará cousa alguã, até outra ordem minha. E no foccante a
serem admitidos nessa Ilha, e nas mais de vossa jurisdição, os nauios das naçoes confederadas com esta
Coroa, de que me destes conta, procurareis peito melhor modo, que vos pareçer,
e sem escandalo, euitar sua communicação; e quando seja necessario admitillos
para que se não escandalisem, o fareis como de vós, e por cortesia, e a amisade
que há entre as naçoes, sem dardes a entender, que tendes para isso ordem
minha. //
Rey.
AHU - Cód. 275, fl.
345.
(1)
Em carta de 10 de Dezembro volta el-Rei ao mesmo assunto nos termos seguintes: pareçer,
para com isso resoluer o que mais conuier ao seruiço de Deus, e meu, e bem
daquelles vassallos. E no interim vos
encomendo que de vossa parte fauoreçaes a continuação das ditas obras, quanto
vos for possiuel. //
Escrita em Lisboa, a 4
de Nouembro de 662.
AHU - Cód. 275, fl. 325v.
1662/11/08
O governador de Cabo-Verde, FRANCISCO DE FIGUEIROA, queixa-se dos
oficiais da câmara, e outras pessoas, e sobre sua residência.
1663
“Também aqui [Cabo Verde, Gure] vinhão os
navios de Cacheo (...) e aqui vinham todos os anos de Olanda, duas e tres naos
grandes a carregar dos ditos géneros [cera e marfim] que levavão para a cidade
de Amsterdam donde tinham o assento da Companhia de Africa que asim lhe
chamavão; e tiravão tanto interesse desta ilheta ( Gorea) que tomando-lha o inglês em meu tempo, no anno de 1663, não repararão em andarem as
guerras muy acesas entre essas
duas nações para que logo no anno
seguinte não mandassem o seu general Rut com uma esquadra de quatorze náos de
guerra a restauralla; assim que por aqui se verá os lucros que tirarão dos
negócios que aqui farião”.
F. L. COELHO (1684); Op. Cit., pp. 97
1663/05/16
Posse do capitão-general e governador-geral de Cabo Verde, ANTÓNIO GALVÃO
Execução contra ANTÓNIO GALVÃO pelos soldos que levou a mais e que lhe não tocavam no cargo do mestre de campo, enquanto governou a capitania do Rio de Janeiro.,
1663/06/24
CARTA DE MANUEL DA
COSTA PALMA
(24-6-1663)
SUMÁRIO
- Trata das contas da fortaleza de
Cacheu e das obras da Sé de Cabo Verde.
Comforme
a ordem de V. S. ª tratey de aclarar a conta dos depósitos aplicados ás obras
da Seé desta cidade e suposto os liuros que estão na arca do mesmo depozitos
estão com a mesma confusão que V. S. ª tem achado muitas couzas assim, desses
como de hum mais antigo que achey na mão do escriuão João Roiz Freire, consta que
Sua Magestade ouue por seu seruiço passar hua carta de 29 de Abril 644 ao gouernador que foy destas Ilhas JOÃO
SERRÃO DA CUNHA, porque auia por bem que o dinheiro gue estaua depozitado
para as obras da Seé e a fiança que dera hüa nao olandesa com dinheiro do
depozito dos castelhanos, e o que rezultou do cunho da moeda, se dese todo á ordem do capitam de Cacheo
Gonçalo de Gamboa, que depois falleçeo sendo gouernador destas ilhas, para
se auer de fazer ua fortaleza naquella pouoação; e passou outra carta de sua Magestade para que fosse executar destes
effeitos Paullo Barradas da Silva, e pello orçamento que fis no liuro,
salvo erro de contas, emportou a receita
dois contos sete centos e seçenta mil quatro sentos e oitenta e quatro rei......... 2.760V 484
A despesa que do mesmo livro
consta, que uem a ser de materiaes que se mandarão á dita povoação, e ordenados
que levava o dito Paulo Barradas, ü
conto e setenta e oito mil e sento e tres reis. . . . . . . 1.078V 103
Isto
hé o que alcançey deste livro e cuido ue no livro ue está na arca consta a
entrega o restante ao padre Vogado. li
Guarde
Deus a V. S. ª 24 de Junho de 1663 annos.
E
por prouizão de Sua Magestade passada em 5 de Setembro de 644, ordena que se
entregue ao R.do padre Gaspar Uogado o dinheiro que ouuer para continuar com a
obra, o que recebeu com effeito, por duas adisois, hüa de hü conto sete sentos
e sincom e oze reis. . . . . . . . . . . . . . . . . 1. 7005V 11
Outra
âe sento e oitenta e oito mil quinhentos reis. 188V 500
Consta
do liuro que está na arca a fls. 16.
AHU - Cabo Verde. cx. 5-A. Manoel da Costa
Palma
1663/06/27
CARTA DO GOVERNADOR DE
CABO VERDE A SUA MAJESTADE EL-REI (27-6-1663)
SUMÁRIO
- O governo encarregou o sindicante
de apurar as contas da Sé, e sugere a S. Majestade que ele receba a incumbência
de fazer outro tanto às confusas contas
de Cacheu.
Senhor
No
cappitollo 5° do meu regimento me manda V. Magestade mande tomar conta de huns
noue mil cruzados que se tinhão remetido pera a obra da Sée desta Cidade, o que
fiz. E a delligençia cometi ao DOUTOR
MANOEL DA COSTA PALMA, Ouuidor geral destas ilhas e juiz sindicante, para
com o zello com que se emprega no seruiço de V. Magestade apurase tão longas e confusas contas. Constoume lhe custou muito
trabalho pellas grandes confuzões que aqui se achão nos liuros de despezas e
receitas de dinheiro, de que o dito Ouuidor tem aclarado algumas com grande
trabalho e desvello seu. E me parecia que pois se acha este Menistro tão
inteiro nesta região, lhe devia V.
Magestade cometer as contas de Cacheu, que a meu ver devem ser largas, e de
consequencia, e feitas or menistro verdadeiro po erão re un ar em eneficio e
sua fazenda Real, honrandoo V. Magestade com as honras que costuma a fazer a
quem bem sabe servir, e pellas contas que o dito Ouuidor geral apurou do
dinheiro da Sée de que se trata, e com esta remeto a V. Magestade, satisfaço ao
dito cappitollo. A catholica pessoa de V. Magestade guarde Deus muitos annos
como dezeiamos seus vaçallos. //
Cabo
Verde, 27 de Junho de 1663.
a)
Antonio Galvão.
AHU - Cabo Verde, cx. 5-A, doc. 142.
1663/08/22
O governador de Cabo-Verde, ANTÓNIO GALVÃO, relata o estado em que
achou a ilha, a falta de munições, de artilharia e de outras coisas para sua
defesa.
1663/09/03
O governador de Cabo-Verde diz das diferenças que havia entre os moradores e o governador
FRANCISCO DE FIGUEIROA, em razão do acompanhamento da bandeira da cidade, e sobre a queixa que se fez do ouvidor MANUEL DA COSTA DA PALMA.
1663/10/03
O ouvidor-geral das ilhas de Cabo-Verde escreve acerca dos sequestros feitos nos bens de
MANUEL ROIZ SALGADO e MANUEL DIAS
QUATRIM (COTRIM), ex-capitães da capitania de Cacheu.
1663/10/14
CONSULTA
DO CONSELHO ULTRAMARINO (14-10-1663)
SUMÁRIO-
Fortaleza e igreja de Cacheu-
Igreja matriz da Vila da Praia - Como
receber os navios das nações confederadas e amigas na sua passagem.
O Gouernador
de Cabo Verde Antonio Galvaõ, em resposta da carta de V. Magestade de 4 de
Nouembro do anno passado, porque lhe ordena, o informe
do estado, em que se achaão as obras da
fortaleza, e jgrejas de Cacheu; e juntamente das da Villa da Praya.
Dà
conta a V. Magestade em carta de 25 de Junho deste anno, que estes com a assistência do Capitaõ mor da dita
Villa, Antonio de Barros Bezerra, pessoa de satisfaçaões taõ acabadas, e somente
falta por fazer a Cappella mor; e que daquellas espera informação de pessoas
fidedignas, a quem a tem pedido. para satisfazer comoV. Magestade manda.
Que
por outra carta de 23 do dito mes, e anno, tem V. Magestade prohibido com
aperto ao Capitaõ e moradores da Ilha do Fogo (como tambem o fes ao Gouemador
seu antecessor), o comerçio cõ os jngleses, o que atégora se tem obseruado, sem
se permittir a algüs dos nauios daquella nação, que passâo para as suas
conquistas, mais larguesa que a e fazerem agua as, ne an ose es até os fructos
a erra, gue a mesma 1nc ue. Sem embargo da qual, por se não offereçer
inconueniente algü ao seruiço de V. Magestade, em se lhes dar o necessar10 de
refrescos, pella vtilidade que se segue aos moradores de se desfazerem de quatro
vacas e cabras; daquella nação, a que deuemos tanto amor, pella aliança, se não
escandalisar. Que pot esta tttesiiia razao alargou a hospedar em sua casa, cõ
toda a demostraçaõ de beneuolençia, a hii olandes que com sua mulher, efamília,
passando por gouernador de Betauia aportou naquela Ilha, em huã nao olandesa, a
que juntamente mandou dar todo o necessario de refrescos; assy por ser a
primeira embarcaçaõ de seu gouerno, que por aly passaua, depois da publicação
da paz, com aquelles Estados, cuja capitulação leuauaõ consigo, como por hir
para a Jndia, aonde a communicaçaõ vesinha das Conquistas de V. Magestade, fará
que seja com mayor firmesa, fazendo cazo do agasalho, que achou nos vassallos,
e terras de V. Magestade. De que lhe pareçeo dar conta a V. Magestade para lhe
mandar ordenar a forma em que se deue hauer sobre estes particulares, taõ
importantes a seu real seruiço.
Ao
Conselho pareçe, que V. Magestade deue mandar ordenar ao Gouernador Antonio Galuão, que na mesma forma, em que
atégora se fes, procure se vá continuando cõ as obras da Jgreja Matriz da Villa
da Praya, até com effeito se acabar; e
nas da de Cacheu, e sua forteficaçaõ, em razão da alteração que pode hauer em
sua mudança (de que esta para se dar conta a V. Magestade) não altere cousa
alguã, ate V. Magesta de lhe não mandar.
E
no tocante a serem adimittidos naquella Ilha, e nas mais de sua jurisdição os
nauios das naçoês confederadas (de que também dá conta), pareçe se não deue
prohibir, cõ clausula de que se lhes uendaõ (1), nem dem cauallos, nem os animais menores que custumao comprar, pela
consequençia que se segue aos açucares do Brazil, com os que se fabricaõ nas
Barbadas; mas somente os fructos da
terra e carnes; pois pede toda a boa razão que se não falte á diuida
conresponden ia destas nações aliadas; e a que o gouernador Antonio Galuaõ teue
com o Gouernador de Betauia, se lhe deue agradeçer. //
Em
Lisboa, a 14 de Outubro de 663. li
O
Conde / Mello I Miranda / Dourado / Falcaõ
[Despacho, à margem]: Como pareçe. E no que tocca a admitir estrangeiros, se escreua aos Gouemadores e
Capitães daquellas partes, que podendo ser com bom modo, e sem escandalo,
procurem euitar sua communicação; e quando seja neçessario admitillos, para que
não se escandalisem, o façaõ,
como de seu proprio moto, por amizade entre as naçoês, e por cortesia, sem
mostrarem que tem para isso minha ordem. li
Lisboa
28 de Nouembro de 663.
Rey.
AHU - Cód. 15, fls.
99v-100.
1663/10/23
ANTÓNIO GALVÃO mandou tirar inquirição contra ANTÓNIO DA FONSECA DE ORNELAS,
capitão de Cacheu.
1663-1664
RELAÇÃO DE FREI ANDRÉ
DE FARO SOBRE AS MISSÕES DA GUINÉ (1663-1664)
SUMÁRIO
— Relata a segunda missão dos Capuchinhos da Província da Piedade do Reino
de Portugal, nos anos de 1663 e 1664, na terra da Guiné, desde Cacheu e rio de
S. Domingos até ao rio do Nuno, rios do Deponga, rios dos Cáceres e rios da
Serra Leoa — Descreve não só o seu apostolado na conversão das almas daqueles
reinos, mas também alguns ritos e costumes dos gentios daquelas terras.
Capitulo
I
Como
os Religiosos Capuchos da prouinçia da piedade, sahirão de sua prouinçia e se
aiuntarão na Cidade de Lisboa p.ª se embarcarem p.a as ilhas do Cabo Verde, e
terra firme de guine.
Capitullo
I fol. I
Caminhando o Patriarca Iacob pera mezapotamia,
lançouçe a dormir, mal tinha pegado em o sono quando uio o Ceo abertto: uio
huma escada que posta em a terra cheguaua ao Çeo uio sobir e deser anjos uio
segredos grandes de Deos, acordou soubresaltadodizendo. Vere Dominus est in loco sancto isto et ego
neçiebam, non est hic aliud nizi domus dei et porta çeli. Uerdadeiramente
o snõr esta em este lugar sancto, e eu não no sabia, não he i s to outra coiza,
senão a caza do snõr, e a porta do Çeo. pois sancto presiozo, em uer hum fauor
tão grande do Ceo, temeis, e acordais soubresaltadonão temiens quando padesiens
trabalhos, não; por q nos fauores carregaua-çe o sancto de obrigações, e como
nellas poderia igualmente faltar, queria antes os trabalhos, aonde tinha
sertto, o merecimento, do q os fauores aonde se julgaua por ariscado. tais os
Religiozos da o r d em de meu seraphico padre s. françisco, da nossa prouinçia
Capucha da piedade: na qual não sô lograuão os fauores grandes de portugal, mas
o soçego, e quietação, da prouinçia, o Recolhimento dos conuentos, a quietação
das cellas: Postos digo em milhor paraizo que por homê adam; aonde possuem
e gozão mais brandos ares de deuação, mais caudelozos Rios do amor de Deos, e
do próximo, mais saborozos pomos de sacramentos, aonde possuem toda a
felicidade, e pro[s]peridade da uida, e todos os tizouros e Riquezas do Ceo
leuantados naquelle monte tabor da Religião, pera gozarem de Deos, a g l o r ia
de seu Rosto transfigurado: finalmente gozando huma morada, e caza de Deos, na
qual estão apartados do mundo, e de más ocazioens de q estão liures, e do uzo
comum dos bens temporaês, com q nada tem, e nada lhes falta: naquelle
Recolhimento, achão considerasões, e miditacoês de mistérios alttos, oração e
contemplação de coizas deuinas, suauidade dalma, consolações uerdadeiras,
liuros sanctos, e deuotos, exemplos Raros de seos irmãos de q se edeficão;
particular emparoe patrocínio dos sanctos, e da v i r g em com que se
consollão; quietação, segurança,
e esperança sertã, da saluação, pera a hora da morte, c om q uiuem; no meio de
todos estes fauores como digo, dezeiauão e querião antes maiores trabalhos,
aonde tiuessem maiores e sertos merecimentos, do q todos os fauores aonde se
enchião de obrigassõens. e uendo q alguus Religiozos ariscão muito sua saluação
emtregandose ao uiçio, da asidia, faltando em suas obrigassõens; que sam
grandes as que tem pera darê boa conta a Deos, e satisfação, e muitos seculares
se saluão, ocupados sempre em trabalhos, e exercícios corporaes, pera sua
sostentação; não faltando no q ordena, e obriga, a ley de Deos.
Satisfes
lhe Deos logo estes dezeios tão grandes, nos Religiozos, mandando o nosso
prouinçial frey f r a n . c o de serpa hüa patente por todos os conuentos, a
instancia da senãr Raynha Regête de portugal, Dona Luiza: Dizendo na dita
patente que todos os Religiozos, q quizessem ir pera as ilhas do Cabo Verde;
aonde na jlha de Santiago, bacesa de todas ellas, estaua ia edificado hum
conuento, q os frades da primeira missão tinhão ia a tres annos edificado: e
pera desta ilha descorrerem por todas as mais daquellas parttes; e dahi
passarem a terra firme de guine, na comuerssão dos gentios. Dizendo q os que
quizessem ir, se ouferesesem por suas cartas (troxe lhe Deos o q
tantodezeiauão.) e como os Religiozos tiuesem cartas dos f r a s . d e s da
primeira Missão, q o nosso prouinçial mandou, as ditas ilhas, e a terra firme
de guine, a instancia dei Rey de Portugal; Dom Ioão o quarto: no anno de 1657.
do grande fruito e seruiço q nas ditas parttes a Deos se fazia asim nas ditas
Ilhas, como na tterra firme de guine, na conuerssão dos gentios, aonde os ditos
Religiozos andauão, moueo isto tanto os ânimos, e uontades, a todos; q se
oufereseu grande número: (emtre os quaes fui eu o minimo delles) e de todos os
oufereçidos, se fes sô eleyção de doze; que tiue por grande sorte ser hum
delles: foi esta sorte pera m im dada pelas mãos de Deos; p o r q me cauzou
grande alegria, e consolação: porq quem quer ver b om l o g r o a seos
trabalhos, so a Deos deue seruir c om comfiança, pois sô e l l e he pontual em
a satisfação, não faltando a cada hum, c om q se deue a seu merecimento: e se
esta sorte me foi dada pellas mãos de Deos maiores obrigações me ficauão de
trabalhar m.t o por conseguir o bom fim, a q tiraua meu intento,porq como dis
s. augustinho. quid autem prodest bonum certamen, nisi sequatur uictoria ? que
emporta huma boa Ocazião de contêda, se se não conceguio a palma, e uictoria ?
no Ceo não se da coroa de g l o r i a ao q na meliçia espiritual pelejou; senão
ao que c om ualor e perseueranca chegou ao fim : como mostra Christo por .s.
Matheus. Qui perseuerauit usque in finem, hic saluus erit. somente a
perseueranca he coroada, e como eu estaua serto como dis s. joão
chrysostomo: nemo certare uolens, sine uulneribus coronari expectai.
O q entra na batalha não espera premio, e coroa
sem primeiro Receber feridas, e padeser trabalhos, e dezeiozos de os padeser se
partio cada hum de seu conuento aonde estauão, e nos fomos a cidade de Lisboa;
e por o r d em do nosso Prouinçial nos aiuntamos todos no aspiçio das cazas do
Duque de Cadaual; esperando ocazião de nauio pera todos nos embarcaremos: e
emtre os doze frades que uinhamos: hum era o comissário frey An.t o de azere, R
e l i g i o z o uelho de m.t o s annos de abeto, q tinha ia sido muitas vezes
prelado na prouinçia; uinha o V i g á r i o do conuento da Ilha de Santiago,
frey fran.c o de Chaves: vinha hum frade Leigo, (q asim lhe chama a Regra) frey
françisco de B r a g a : e todos os mais herão comfessores e pregadores: que
todos fazíamos o dito numero que tenho dito, e feita matolotagem q a snãr
Raynha mandou
fazer, como aos missionários: e despedidos da Cortte, e depois de tudo posto ê
uia pera nos embarcarmos, hum dia anttes fomos todos os Religiosos juntos
despedirmos das snãr Raynha; q neste tempo gouernaua.
E
todos c om grande alegria, por uerem que se prinçipiaua a executar seos
dezeios: sem temerê os grandes perigos do mar, e das malignas terras pera aonde
hião: Com esperança firme oufereçião suas uidas, por hum senhor q c om grande
amor deu p o r elles a sua.
Maiorem
hac dilectione (disse christo) nemo habet, ut animam suam ponat quis pro amicis
suis. não
pode auer maior amor, que o q cada hum mostra, em dar a uida pello amigo. Dis
clemente alexandrino.Liberalis est, ac magnificus, qui, quod maximum est,
suam pro nobis dat animam, magnifico e liberal se mostra, o que dà, e
oufereçe sua uida pello amigo, por ser a coiza de mais estima e ualor. os que
padesem trabalhos, sofrem tromêtos, e preseguissões, dando suas uidas por
christo, q Reconhecem por Deos e home, estes sam amigos uerdadeiros; e
propiamente mártires: porq como Dis S. Cypriano. Martyrem non façit paena
sed causa, a pena he comum a bons e a maos, nella nso se estima tanto o que
se padese! quanto o por quem se padese: e .S. Pedro... non tam mors quam fides, et deuotio martyrem
facit.não somente a morte, canoniza o mártir, por tal, mas
principalmente a fé, e deuação, que mostra por quem padece, e dezeios todos de
padeser trabalhos; e mostrandose mui agardeçidos ao fauor q Deos lhe fazia, nos
embarcamos em o pataxo de simão ferreira, em vinta cete de maio, da hera de
1662. e embarcados como digo ficamos aquella noite em o Rio sobre huma só
amarra, esperando por uento pera deitar pella barra fora, amanhecendo sahimos
todos em terra, e os mais passageiros que no pataxo hião clérigos, e çeculares,
e fomos a huma i g r . a que estaua defronte da embarcação, asima de Belém,
cuio horago hê, de nossa snãr do B om Suceço, na qual nos confessamos todos, e
dissemos missa, todas aplicadas ao Bom Suceço da Viagem; cantamos hüa missa, e
no f im delia contamos huma ladainha, a nossa snãr May de Deos, tomandoa por
luz e guia em nossa Viagem, e pera q por sua emtreceção achaçemos em Deus mais
serto o favor e despacho de nossos Requerimentos, e petissões: e só c om
inuocarmos seu auxilio e fauor, ia hiamos merecendo p a c om Deos, pello b om
sucesso que nos deu em a uiagem; Como se uera no proçeso da Relação.
Capitulo.
II.
em
como os frades sahirão pella Barra de Lisboa, e du suceço de sua Viagem, te
emtrarem na ylha de san tiago cabeça das ilhas de cabo Verde, e guine.
E
tornados a embarcar c om a mesma alegria: e considerando q não ha negocio, no
mundo nem pode auer tão importante como he a saluação das almas; asim q este sô
dezeiauão tratar deueras e antepor, a todos os do mundo, gostos, honrra e vida:
Tertuliano lhe da hum titallo; aos q asim se emtregão aos perigos, q me parece
mui conueniente a seu estado, chamando-lhe. Vita eteme candidattos.pretendentes da uida eterna, não da
maneira que o são os que uiuem neste desterro mas ia asinalados, e sertos do
premio, e coroa que, pella primeira uocação hião merecendo.
No dia seguinte, a tarde, leuamos ferro, e
sahimos pella Barra fora, nauegamos toda a noite e amanheçedo, auistamos huma
nao, a qual nos fes desuiar algum tanto, do caminho, mas como dezapareçeu, nos
tornamos a por no caminho de nosa deRota, e com prospero tempo, vento em poupa,
fomos continuando
a uiagem; e todos os dias antes de anoiteser Dizíamos todos a ladaynha de nossa
Senhora, e muitas uezes, se cantaua o Rozairo, por todos os q hião, no nauio, e
os marinheiros cantauão a seu modo os mandamentos e mais doutrina, como
custumão quando nauegão; e c om a perceuerança neste exercício, hiamos gozando
a prosperidade e bom sucesso da Viagem, aos oito dias dela auistamos as jlhas
das canárias, a p r a que auistamos foi a ilha de palma, ao outro dia, a ylha
do ferro, fomos continuando com a uiagem: aqui uimos muitos peixes uoadores, q
dão uôo como perdizes, e destes nos cahirão alguns no pataxo, auia neste mar
cantidade de toninhas, por q de dentro do pataxo tomamos huma c om q todos
tiuerão grande alegria: e tendo ia pasado o trópico, q he a paragem aonde o sol
fica em direitura soubre nos, este dia foi grandemente festeyado, asim dos
marinheiros, como de todos os pasageiros: aos quatorze dias, auistamos hüa
ilha, da boa uista q asim se chama, ilha ia, das de cabo Verde, e deseiozos de
chegar a ella, fizemos de nossa partte, mas por teremos o uemtto contrario, não
pudemos: no mesmo dia a tarde cheguamos a jlha do maio; e tomadas as uellas, e
deitado f e r r o foi o Batel a terra no qual forão dois frades, ia a este
tempo, o q asistia por maior, e gozaua esta jlha, por nome, o Cappitão Bras
Roiz, os estaua esperando iunto dagoa, e os recebeu c om grande alegria, e c om
os olhos no ceo, dando graças a Deos, de lhe trazer ó q tanto dezeiaua, logo se
meteu no batel e ueio a bordo, a uizitar os mais Religiozos: neste tempo uinhão
ia deçendo, muita gente da pouoação, com gado, e refresco q nos trazião,
querendoçe todos confesar, q auia tempos o não fazião: neste paso, aparece hum
nauio com todo o pano largo, uindo buscar o mesmo portto; tomounos de todo
dezaperçebidos, o Cappitão da jlha se comfessou dentro no pataxo, com pressa, e
o lãsarão em terra, leuarão ferro, e largo todo o pano nos puzemos em fugida,
ate emtrar a noitte, e nella deitamos ferro, na uilla da praia, jlha de
sanctiago, de cabo uerde. sempre nos acompanhou todo o caminho grande dor, e
çentimento de nos ficar toda aquella gente por confesar, e se nós hiamos com
todo este çentimento, não ficauão com menos, os moradores daquella ilha; pois
ficauão com as lagrimas nos olhos, por uer q lhe mostrava Deos o bem, sem o
gozarem; mas tem tam grande força, e ualor pera com Deos, as lagrimas, de hü
pecador aRependido, que não somente Regão o Ceo, lauão e purificam a terra,
apagão o fogo do inferno, anulam a sentença dada no consistório deuino contra
os pecados mortães; mas torna o pecador a recuperar a graça perdida, e asim recuperarão
estes logo, a perda que tiuerão: q como Deos a tudo acode, e Remedeia, e não
falta de sua parte a quem deseia por sua alma no caminho da saluação: sucedeu q
o nauio de quem nos fugiamos, hera português, q hia pera angola, o qual trazia
dois frades francezes, e lançando f e r r o no mesmo portto, aonde nos
estauamos, sahirão em terra e toda a gente confesarão: e nos da V i l la da
praya leuamos ferro aquella mesma noitte, e fomos amanhecer em o porto da
cidade da Ribeira grande da dita jlha, aonde emcoramos, em onze d o mes de
iunho da dita hera de 1662. Gastamos quinze dias na uiagem, c om a
prosperidade cono na R e l a c am se uey.
Capitulo III.
da emtrada e
Recebimento q nos fizerão. na cidade da ilha de Santiago, e do que os frades
aqui obraram, athe minha partida, a terra firme de guine.
Tanto q os frades que estauam no conuento da
dita cidade tiuerão noticia q heramos chegados ao porto, logo ueio o prelado do
conuento com alguns Religiozos,
ao pataxo, alegrandose grandemente c om nossa uinda; sahimos todos em terra, a
este tempo, estaua ia todo o pouo e nobreza delle, iunto dagoa esperando nos, e
fomos de todos recebidos c om grande uontade, e nos acompanharão ate o conuento
e c om grande alegria e ternos de charamellas, festeiauão nosa vinda: e se o
pouo nos rrecebia com grande uontade, cõ maior nos uinhamos nôs oufereçer, a
seruir a Deos, ê aquellas parttes: e conhecemos que não aseita Deos tamto a
obra, quanto a uontade, com q uayacompanhada, e quando asim não f o c e não se
consegueria nenhum merecimento: porque oferttas e sacraffiçios, oufereçidos sem
uontade, numqua chegão a Deos, pera delle, serem recebidos. B em estaua o p r o
f e c i a Rey, neste conhecimento, e assi falando c om Deos dizia. Voluntarié
sacrificabo tibi todos os sacraffiçios, q eu nos oufereçer, serão de boa
vontade, pois conheço q não aseitais tanto, o material da obra, quanto a
uontade c om que se ouferece, pois esta lhe da o ser p e r a merecer: por q de
pouca importância fora, o conhecimento de Deos, esposo de nossas almas,
Repetido huma e muitas uezes, ainda q acompanhado, c om obras se estas não são
de uontade.
Verdade
he infaliuel, a que Deos Dis p e l l o profeta Amós, que no dezerto numqua os
israelitas lhe ouferecerão sacraffiçios; ainda que consta da offerenda de
alguns, como estes não f o r ã o de uontade, senão c om temor do castigo, e
aperto em que se uião, foi o mesmo que não oufereçer, porq não aceita a obra,
quanto a uontade c om que uay acompanhada.
Bem
sabião os moradores deste pouo, auallar huma uontade, e se uia na estimação que
todos fazião de nossas uindas, conhecendo q c om a uinda dos Religiozos, se
hião atalhando grandes males, e danos em aquella terra, como hera uisto de
todos: e emtrádoem o conuento achamos a todos os Religiozos q lá estauão c om saúde,
q m.t o festejamos, no mesmo dia de nossa cheguada a noite. cantamos a ladajnha
de nossa senhora, com a ygreia aberta, â qual ueio muita gente do pouo, e
acabada a ladajnha lançarão muitos foguetes aporta da jgreia, e c om
xaramellas. o dia seguinte, q hera bespora de sancto Anttónio dissemos missa
cantada a nossa snãr, em acção de graças, do b om suceço da viagem, q todos
tiuemos: ao outro dia se fes a festa de Sancto Anttonio, fizemos a sua festa,
na qual pregou o irmão frey seBastião de monsancto, ao que acodio grande
auditório: , nos fes sua vizita, e
gantou (sic) con nosco esse dia; festejando muito nossas uindas:
fazendonos todos os fauores que na sua mão estauão,uindo muitas uezes iantar c
om nosco, e asistir todo o dia; heramos de contino uizitados, e asistidos, do
dito pouo, prouendo nos com particular cui[da]do de tudo o q nos hera
necesario. tratamos logo de executar, a grande uontade q trazíamos, de seruir a
Deos, e pôr por obra o único intento a que uinhamos: passados oito dias de
nossa cheguada, mandou logo o irmão comissário, frey Antonio de azere, Dois
frades pera as ilhas de balrrauento: por nome frey Manuel de Alter, e f r e y
Ioão de eiras, ambos comfessores: os quaês embarcarão em hum pataxo, e nas dittas
ilhas de Balrrauento, se exercitarão em comfessar, e Bauttizar, fazendo suas
praticas, e doutrinando touda aquella gente: mas não puderão assistir em estas
parttes, mais q quinze dias; por Rezão da embarcação q não podia esperar, e
asim se embarcarão outra ues p . a a jlha de santiago, ao dito conuento. Mas
Recolhidos estes mandou logo o dito irmão comissário: outros Dois Religiozos
pera a jlha do f o g o : hum delles frey Antonio de Giras, Religiozo de feição,
e de grande Vertude, de mais de trinta annos de Religião: seu companheiro, era
frey Anttonio de ourega ambos
confessores: os quaes embarcarão em huma sumaca, e na jlha do fogo estiuerão
oito mezes: fazendo grandes seruiços a Deos e grande fruito nas almas: no f im
dos oito mezes: mandou o prelado do conuento, em huma embarcação q se oufereçeu
outros dois frades: hum delles frei Manoel de Alter, e frey Manoel de coya: os
quaes chegados a ilha do fogo, na mesma embarcação, uierão os q lá estauão
Recolherçe ao conuento: e deste modo andão sempre os Religiozos de cabo v e r d
e : huns asistindo na ylha do fogo, outros nas ilhas do Balrrauento: e outros
metidos pella mesma ilha de santiago: outros postos na terra firme de guine, na
conuerssão dos gentios: ficando sempre Religiozos no conuento pera Rezarem o offiçio deuino em o coro, exerçicio q se frequenta com particular cuidado:
pregadores q de contino andão pregando quaresmas, festas, asim na cidade, como
pella ilha: comfessores, q de contino estão confessando: por q neste cõuento,
não se passa dia nenhum, sem q aia muitas confições. Neste tempo tratou o irmão
comissário de querer fazer sua uizita, pera q feita ella, e feitto o capitallo
aos frades, se tornar a hir pera portugal, p . a o q me illegeu a mim, p e r
seu secratario, em a ditta uizita, a qual depois de acabada, tratou de fazer
capitallo, a todos os frades iuntos: dando lhe em tudo a ordem, e apontamentos,
que auião de guardar: e no tempo do dito capitallo, me nomeou a mim por porteiro do dito conuento, por sua patente: à qual nomeação: Dei minhas
desculpas, e escuzas grandes: Dis Çeneca. nil tã necessária quã pretiü
imponere Rebus. nenhuma coiza ha de maior emportançia, q saber o preço, e
ualor das coizas pera nam comprar com tanto engano; emganado ficara nesta
ocazião, se não conhecera, o presso, e ualor, q huma portaria tê e a s im emtre
as escuzas q lhe dei, lhe diçe q eu não uiera passar marés pera abrir portarias
de hum conuento: mas pera abrir, o caminho da saluação a muitas almas, q tão
neçeçitadas uiuem de Remédio: e pois Deos me fizera tanta mercê de me trazer
aquellas partes, ao q me deuia mostrar muito agardeçido, a tão grande fauvor,
por obrigação me corria buscar outro meio mais conuenientte pera o amar e
seruir, e q o meu único intento, a q eu uiera a cabo verde, hera de pasar a
terra firme de guine, a conuerssão dos gentios: pera naquelle grande campo
aiudar a semear a sementeira do Euangelho; exercitar me, na conuerssão, de
tantos milhões de almas: e dizendo lhe a muita Rezão q teue, a Magestade dei R
e y D om i õ ã o o quartto, pera com tanto zello principiar a mandar obreiros,
Religiozos, capuchos da prouinçia da piedade, para que como liures dos
interesses do mundo, e dezarregados dos ngoçios delle pudessem milhor
principiar a coltiuar tamanha uinha de christo: e que os meus deseios herão
ocupar-me nella, todo o tempo que andase fora da minha prouinçia. aqui conheci
claramente que q u em fala a tempo necessário, e conueniente, por m e i o da
língua grãgea grande bem. Reprehendeu o profeta Nathão, a Dauid, do adultério,
e homeçidio, que cometeu: e cahindo no mal, que tinha feito, a-Rependido, pedio
perdão. Pecaui. pequei: no ponto que a lingoa prenumciou esta breue
palaura, composta de três sillabas, logo Nathão em nome de Deos, lhe perdoou a
culpa, e liurou da morte; Dominus quoque transtulit peccatum tuum à te, nom
moriêris. Velos confição; mais o foi a mezinha; pecou c om a obra; e c õ a
palaura se aRependeu, aseitou Deos a penitencia; logo chegou a saúde dalma,
ficando em sua graça e amizade, são grandes os bens, que se grãgeão, e alcanção
por m e i o da lingoa; uzando, delia a seu tempo, ou calando quando conuem nam
foi pequeno bem, o q alcancei com minhas palauras, e Requerimentos, porq a
Reposta q o irmão comissário me deu foi : qelle me daua sua palavra de me
mandar a missão q eu intentaua: pera cuio i f e i to me deu l o g o huma
patente, e obediência de sua mão p e r a poder hir n o p r i m e i r o nauio q
se oufereçesse, e se m e daria companheiro no ditto comuento, todas as uezes q
o pedisse, com o qual poderia hir a partte aonde me parecesse poderia fazer
mais seruissos a Deos nosso Senhor: mas q por emquantto se não oufereçia nauio
para ir seruice o cargo de porteiro : o q eu então aseitei uisto ter ia
na mão, o despacho q tanto dezeiaua.
Viuendo
ia tão contente por posuir: como acautelado por esperar: foi tanta minha
alegria q só comteria a patente na minha mão pera poder hir, me parecia q
estaua ia logrando, a execução da obra — tam quam nil habentes et omnia
possidentes. Dificultozo texto he este de s. Paulo, se heide posuir tudo;
como não heide possuir nada; e se heide ter nada; como heide possuir tudo ? deixo a intrepetação comua, q he de posuir as coizas sem afecto, q quem logra
sem afeição, ainda q possua tudo, hase como se não tiuera nada, que tanto uai
huma afeição, q sem e l la he tudo nada, e c om e l la he o nada tudo: e tão
grande hera a afeição q tinha de seruir a Deos, nas partes de guine, terras dos
gentios, q só c om a licença q tinha; me parecia q ia posuhia tudo. face
christo prezente a Magdalena, mas não cõçente q lhe toque, noli me tangere
nondum enim ascendi ad patrem meum. dalhe hum gosto de prezente de o uer e
hüa esperança de fu[tu]ro de o tocar, pera q pello gosto de prezente a
consolase, e a esperança de futuro a fizesse mais deseioza, do q em parte ia
lograua, e em parte pertendia. asim q a esperança q eu tinhade futuro me fazia,
cada uez mais dezeiozo, do q pertendia.
E
tendo o irmão comissário ia f e i to todas suas coizas, e postas em seu lugar,
tratou de se embarcar pera portugal, e de leuar em sua companhia, os frades que
auia ia quatro annos, q estalão em cabo uerde, deixando ficar no conuento
todos, os q de nouo tinhão uindo: a este tempo estauão dois navios portuguezes,
emcorados no porto da cidade, da dita ilha, os quaes hião em direitura pera
Lisboa, e tendo ia os Religiozos posto suas coizas, e matolotagem em o nauio
maior, em o qual se querião todos embarcar: lhe disseram em hü dia pella menhã,
q o tal nauio, fazia muita agoa, e q todo o dia estauão a dar a bonba: c om
esta noua (que não hera nada boa) tratarão logo os Religiozos, no mesmo dia
atarde de t i r a r o q tinhão em o nauio, e o embarcarão logo, n o nauio mais
pequeno, (e sabendo-se a uerdade o nauio não fazia a agoa q se dezia) no mesmo
dia em q os Religiosos tinham f e i to esta diligencia, na noite se
leuantou tão grande tempestade, e tão grandiozos mares, que o s nauios ambos,
largarão as amarras pella mão, e se fizerão ao mar, c om grade trabalho,
perdidos da uista de terra; e no dia seguinte, querendo o nauio maior uir
buscar amarra, ao porto, aonde estaua emcorado, como o uento hera grande, deu
com o nauvio em a ponta de hua roxa da dita ilha; e se foi a pique, sem escapar
delle, mais q s ao gemte, por milagre. todos ficamos com grande sentimento, da
perda do nauio, e claramente conhecemos o quanto Deos fauorece, a uinda dos
Religiozos a estas terras: pois querendose ia embarcar em este nauio, e tendo
ia as suas coizas dentro nelle: premetio q as tiraçem pr.° fora, pera f i c a r
em livres do perigo. Bendito seia Deos, quam grande et incomprehensiuel he sua
sabedoria: pois pera que todos uiçem, o quantto Deos fauorece, a quem c om
ifficazia, feruor, e deuação o serue; primetio q os Religiozos se tirasem, de
hum nauio, em q ia se querião todos embarcar, e se embarcasem em outro mais
pequeno, pera os leuar a saluam.t o a portugal, com prospera viagem.
Como
ao depois tiuemos cartas, e sso quarenta e dois dias, gastamos na vuagem.
Depois de partidos pera portugal os Religiozos, em companhia do irmão
comissário: os q ficamos em o conuento, tratamos de exercitar nossos
ministérios: eu ocupado em o offiçio q me hera encarregado, de porteiro
: os mais em comfessar, pregar, emsinara doutrina, entendendo em todas as obras
de mizericorde, e bem dos próximos, c om tanta edifficação das almas, e c om
tanto mais fructo, quanto a tal terra por falta de obreiros semelhantes, e de
doutrina, estaua mais neçeçitada: não se pode facilmente declarar, os cazos
particulares do seruiço de Deos q nisto sucederão, o concurço da gentes as
pregações: principalmente as doutrinas: p o r q em algumas que eu fis, asim no
pulpeto da sé, da dita cidade, como na igreia de nossa snaf da Consepsão hera
tão grande o auditório, cabido e clerezia: O numero das Almas q por meio destes
exercícios, e das confições se tornauão a Deos; os pecados que se tirarão: os
malles q se empedirão: as neçeçidades esperituaes, e corporaes, q se
rremediarão:os abuzos e superstissões grandes, q se arrancarão: que querellos
aqui contar pello meudo seria hum processo sem fim:
Viuiasse
em tanta largueza ia nesta jlha q se passaua a quaresma, e a maior parte da
gente se não vinhão comfessar, nem dezoubrigar senão pello sam ioão: esta isto
tão diferente com a uinda dos Religiozos, q não somente se confessão pella
obrigação da quaresma, mas muitas uezes pelos dias das indulgências, comçedidas
a nossa ordem; que os Religiozos mandão publicar, os dias q as hà: e no dia da
indulgência, da perciuncula, foi tão grande o concurso da gente, às comficões,
q c om serem todos os Religiozos a confesar, não podião dar despedição, e asim
sahirão aquelle dia muito tarde: pregou o irmão frey Sebastião de monsanto, q
todos folgauão de o ouuir alem de ser Religiozo de grande exemplo e uertude
seguiçe logo a festa. de nosso seraphico padre sam frãcisco, na qual ouue
também grande concurso de gente, em a qual festa pregou o irmão frey Luis de
chaues, q todos estauão, edificados; e satisfeitos, de seu bom modo de pregar,
emtre os muitos abuzos q nesta terra auia, he não darem o sanctissimo
sacramento , a todos os emfermos, saluo aos mães graues, e dauão huma Rezão, q
o snõr os não auia hir buscar a elles, a
suas cazas: e como muita partte da cidade são cazas de palha, dizião q o snõr
não auia hir as cazas de palha, a isto acodirão os frades, e os tirarão
daquella opinião tão eRada, e asim ia oie se da o snõr a todos, asim brancos,
como pretos; a Ricos, e a pobres: aos graues e aos q não são graues. nestes
exerçiçios, andão sempre ocupados, os Religiosos, q asistem no conuento: muitas
uezes fazendo amizades no pouo, os moradores huns com outros, comsertandoos e
compondoos, em seus negócios, não ha duuida q os q se empregão em semelhantes
exerçiçios, de q tenho feito menção fugindo aos uicios, merecerão muito com
Deos, e alcançarão prémio deuino mui superior, a seos merecimentos: e he tanto
o q Deos estima o cuidado, das almas dos próximos, q premite, q sô c om estas
armas, alcancem uictorias dos enemigos dalma, e grandes coroas de gloria.
Passados dois mezes, de nossa cheguada, logo o
malino clima da terra nos uizitou a todos com suas custumadas doenças, e quase todos os q de nouo uiemos, adoecemos,
c om malinas doenssas; adoessemos todos, num mesmo tempo, e todos leuarão de
trinta sangrias para sima foi a minha doença neste mesmo tempo, descomfiado do
medico, e dos Religiozos de poder escapar com uida; estaua a este tempo com
quarenta e tantas sangrias, q tantas leuei em os braços, e pês, e com
uarios medicamentos:
todos os emfermos estauamos com grande animo e fortaleza, Refreando os temores,
q impedem a sanctidade: mostrandoçe com singular pasiençia nestes trabalhos e
graues emfermidades que padeçião, mostando sempre, grande prudência, e valor
comformandoçe em todas ellas com a uontade de Deos: nam passo mais adiante,
referindo trabalhos corporaês q padecerão, porque me parece que faço agrauo, em
Relatar trabalhos particulares: quando sua vinda foi somente pera os padeser:
este tempo hera o mais doentio em que toda a gente desta cidade adoesia; e
morre muita delia, e os q escapão c om uida, todos os mezes do anno estão
pagando trebuto de sangrias: muitos dos
ceculares q em nossa companhia uierão de portugal em o mesmo nauio morrerão
neste tempo: a nôs foi Deos seruido Restituímos a saúde para se seruir de
nos, aqui se uei mais claramente o quanto Deos se serue q os Religiosos andem
por estas parttes: pois de doze frades q de nouo uiemos, emtrando no mais
trabalhozo tempo, q hera o das agoas todos adoeserão e todos escaparão com
uida.
E depois de conualeçido de tão larga e perigosa
doença: chegou ao porto da cidade huma carauella das partes de guine; noua
pera mim de grande alegria, tratei de por logo em execução minha partida, pera
cuio ifeito fis petição ao Reuerendo cabido pera q a mim, e a meu companheiro
nos conçedece em tudo sua autoridade não somente para absoluer dos cazos
Reseruados ao dito Bispado; mas pera Bautizar: confessar: fazer cazamentos:
exercitar tudo quanto os curas, e parrochos exerçitão em suas parrochias: o q
tudo consederão com grande uontade: Logo pedi companheiro, ao irmão Viagrio do
conuento deBaxo de cuia obediência estauamos: e me deu por companheiro ao irmão
frey Saluador de taueiro, confessor, tudo na forma da patemte que se me tinha
concedido: e no tempo da partida não
faltauão empedimentos de todas as partes, porque os moradores do pouo querião q
nos ocupasemos, em a jlha em q estalão moradores, outros q não comuinha
embarcarmos em a tal embarcação por ser muito uelha, e podre.e falta de muitas
coizas q lhe herão neçesarias q todos iulgauão ser tumba dos q nella se
embarcasem: os Religiozos por outra partte querião que lhe aiudasemos em o
trabalho do conuêto: no meio de todas estas contradissões: conhecia mais
claramente a excellencia, e grandeza da coiza q emprehendia, por q as coisas
boas, principalmente as de Deos sempre tiuerão em o prençipio deficuldades: e
posto q nesta hora nos avallauão, a ida comforme os intemtos, e iuizos de cada
hum querendo a por caminhos escondidos empedir, nem por isso perdi nada de
ualor, e esperanças q tinha em Deos. Conhecendo q coiza tão boa q eu intentaua,
não conçestia em o iuizo emganosso, e falça opinião dos homens, senão em a
estima e pezo que tem diante de Deos e asim premetio que a vertude ficaçe
conhecida e Respeitada, ainda daquelles que nesta ocazião a perçeguirão, depois
q a paixão lhe deu lugar ao entendimento, pera penetrar o que a mà vontade
queria escurecer, e conhecidas as coizas: L o g o o irmão V i g á r i o do
conuento me emtregou huma obediência por elle feita, e asinada, e celada c om o
sello do conuento: pera q nas terras de guine pudesse hir as parttes aonde me
pareçese poderia fazer mais seruiço a Deos nosso senhor, e em tudo me concedia
a autoridade do irmão prouinçial, na forma q lhe hera comçedida pera asim o
poder fazer aos missionários: no q se uei claramente que pode a uertude ser
combatida mas não destruída: porq em as contradissões, e preçeguições, q aqui
tiuemos mais uio Deos a pasiençia com que
sofríamos, pera a premiar: q a maliçia dos q preceguião pera escurecer, e assim
nos despedimos todos os frades q ficauão no conuento de todos em geral e de
cada hum em particular, c om as lagrimas nos olhos, sahimos despedidos do conuento, eu frey Andre de Faro, frey Saluador de
Taueiro meu companheiro: e frey Francisco de Braga: L e i g o : daqui nos
fomos despedir do gouernador: e do Cabbido: e de todo o pouo, e acompanhados de
toda a nobreza delle, ate o porto aonde estaua a embarcação, hião pello caminho
Raprezentando, o sentimento com q todos ficauão pois dezeiando mais frades na
sua terra, se hião pera missão tão larga: e
despedidos de todos como tenho dito nos embarcamos os tres Religiozos, hü
sábado a tarde aos noue dias do mes de março: pella menhâ que era Domingo de Lazaro, nos fizemos a uella, e com a
embarcação ser tão uelha e destrosada, cheia de todos os perigos que por si nos
hia, ameaçando: foi Deos seruido darnos tão boa viagem, como tão largo uento, e
esse em poupa e o mar bonança que em oito dias cheguamos a Cacheu. — mas
antes que trate de minha viagem he Rezão q dei aqui hüa Breue noticia desta
ilha de Santiago, e das mais ilhas suas vezinhas.
He
esta ilha de sanctiago de dezoito legoas de comprido; e de des de largo, esta
em quatorze grãos e meio: mui fragoza e de mui altos serros, e de mui groça
penedia, tem ualles muito fundos e abafadiços, nos quais ha uarias castas de
fruitas em abundância, mas todas mui pouco sadias: dâ esta ilha açúcar em boa
cantidade, mas não se f a z em engenhos grandes como no brasil: ha galinhas em
grande numero asim massas como do mato, carnes muitas e baratas; não choue
nestas terras senão nos mezes de iulho, agosto, e setembro, q he o seu inuerno,
e ordinariamentte andão todos os annos fazendoprocissões por agoa, e asim lhe
falta alguns annos o milho q he o único mantimento destas parttes: o clima he
pouco sadio — a cidade esta tão mal situada q esta metida emtre dois serros,
tão altos, e a pique, que p e l l o tempo das agoas se despedem pedras tão
grandes do mais alto delles e uem a dar algumas em os telhados da cidade, q
parece se dispara grosa artelharia, e corre algumas cazas grande risco:
asim q toda a cidade fica cincoenta braças debaxo da terra, q tanto poderá ser
a altura dos ditos serros, tão Regurozas calmas se padese nella e tão abafadisa
fica, q tendo o mar largo de fronte, não se uei delle mais q quanto os ditos
serros lhe dão lugar, como uma fresta: e c om esta terra ser falta dos
mantimentos de portugal, como são farinhas, vinho e azeite, e outras coizas
numca lhe falta, pellos nauios q de contino uem de portugal e das ilhas
treseiras, e os estrangeiros do nortte, fica esta ilha no caminho do Brazil, e
das ilhas das Barbadas, e de outras, pello q todo o anno portão nella nauios, e
ahi se Refrescão fazem auguada, e se Refazê do neçesario: e como nesta asiste o
gouernador e he cabeça de todas as outras ilhas de cabo verde, e da terra firme
de guine: por essa Rezão fundarão os nosos frades aqui o conuento, pera delle
descorrerem por todas as parttes, o qual custa muito trabalho e despendio,
pelos materiaes uirem de portugal, como he cal, madeira, telha, portaes, e
cantarias, o que não ha em estas parttes, pello que qualquer coiza de obra
custa muito, ao q tudo os moradores de sua partte acodem, c om tudo o neçesario
asim pera as obras, como pera sustento dos Religiozos : que na uerdade
uer a deuação tão grande q todos os moradores desta ilha nos tem que parece que
quer Deos q esta missão ua em aumento.
Tem esta ilha por uezinhas, outras noue ilhas a que chamão as ilhas do
balrrauêto: que são a do mayo: Boauista: Sam Niculao: Sancto Antão: Sam
Vicente: sancta Luzia: ilha do Sal: em todas ellas ha criação de gados brauos,
e de contino andão casadores tirandoa espingarda q tem por offiçio fazerem carnes chacinas, e coirama, q se leua pera diuersas parttes: e na ilha
do maio, e na boa vista, V em os estrangeiros e os hereges do norte, a fazer
escalla pera diuersas partes: e como nestas ilhas ha cantidade de sal, q a
natureza cria, sem se lhe fazer beneffiçio algum, uem de contino os ingrezes
carregar de sal e uarias nassões, q leuão pera as suas terras, principalmente
pera as ilhas das barbadas sem auer quem lho impida: estão mais ao poente
outros duas ilhas q sam a do fogo, e logo a ilha braua, a do fogo se esta uendo
da ilha de sanctiago de noite he farol dos nauegantes por rezão do fogo q por
um pico muito alto esta lançando sem parar, laça este fogo pedras tão altas,
acezas em braza, uiua como borra de f e r r e i r o , e dando humas nas outras
caem p e l l o pico do serro abaxo: também por duas partes mais tem arebentado
o fogo, e emtrado mais de trinta lanças pello mar querem dizer ser esta ilha
mais sadia, e de melhores ares, na qual ha boas vinhas, as mais destas ilhas
não tem ministros do euangelho nem saserdote algum q lhe asista, pello q em
todas ellas auendo obreiros se fara muito fruito nas almas q tão neçeçitadas
uiuem de Remédio,chamam lhe a todas estas ilhas, as ilhas do cabo verde por q
da parte mais occidental de africa q chamão guine sae huma grande ponta de
terra ao mar, a que chemão cabo verde, q fas Rosto ao poente e a ilha de
sanctiago, e as demais suas uezinhas, pello q todas ellas se chamão as
ilhas do Cabo Verde.
Capitulo.
IIII.
de
nossa emtrada em guine como fomos Recebidos na pouoação de Cacheu e da primeira
sabida q fizemos do Reyno dos bânhus, terra de gentios, e o mais q aquiobramos,
ate minha partida a Rio do nuno
Cheguamos a Cacheu a dezacete de março Domingo de ramos a tarde: fomos Recebidos do Cappitão mor Anttonio da Foncequa Dornelles,
e de toda a gente da pouoação c om grande amor e alegria por uerem o que tanto
dezeiauão: os dois Religioyos q auia
tres anos q la estauão hum delles nos ueio logo buscar a embarcação por nome f
r e y Sebastião de sam Vicente: seu companheiro frey Paullo de Lordello, estaua
a este tempo em o Reynodos banhus edificando huma igreia pera os christãos
q, naquellas parttes ele tinha Bautizado: mas tanto q teue noticia de nossa
cheguada logo se meteu em huma embarcação e nos ueio agazalhar em o aspicio q
tinha feito na dita pouoação; e c om tão grande alegria festeiauão todos nossauinda:
quam grande hera a neceçidade q auia de obreiros pera coltiuar tamanha vinha de
christo: e como esta pouoação he aonde asistem os portuguezes q v em a fazer
negocio as parttes de guine, e nos emtraçemos em a somana sancta, todos os q
nos achamos fizemos as endoensas. fes se sepulchro, e com toda a solenidade se
f i z e r ã o os officios : e se fizerão duas procissões huma foi a das
emdoenssas, outra a do enterro do snõr na cesta feira a noite a qual sahio do
nosso aspiçio e se Recolheo em a ygreja da pouoação, quatro Religiozos
leuamos o senhor, ficando o irmão frey Paullo do Lordello, pera pregar, o qual
assimem huma como em outra procissão pregou com grade satisfação e aplauzo, com
o q todos ficarão mui edificados: os christãos mui contentes de uerem que no
meio da maior gentilidade, se fazião as coizas do culto deuino com tanta
perfeição e solenidade: passadas as
oitauas da festa da páscoa, me embarquei
em companhia do irmão Frey Paullo de Lordello; e frey Francisco de Braga, frade
Leygo, e pello R i o adentro hum dia de Viagem, fomos ao Reyno dos panhüs, aonde no porto de Quinguim, estaua o irmão f
r e y paullo acabando de fazer huma igreya c om duas cellas pera os Religiozos
q nella asistissem: foi esta a primeira saida que fis e a primeira terra de
gentios aonde pús os pes — Recolhemanos em a caza de hum christão os tres
Religiozos na qual caza tinhamos armado nosso altar, e todos os dias deziamos
missa; fazíamos doutrina aos q herão ia Bautizados: asistia a este têpo no dito sitio Dois portuguezes mercadores,
que estauão aqui trattando de seos negócios estando nos huma noite na maior
quietação; se leuantarão quanti[da]de de
gentios com armas comtra hum dos dittos mercadores, soubre duuidas de seos
negosios: aos gritos, e brados, acodimos os Religiozos a v e r se podíamos
aquietar e apaziguar a briga, hera tão grande a fúria dos gentios, e tantos os traçados, flexas e azagaias, q
cahirão soubre os portuguezes e soubre nos, q todos estiuemos arriscados a m o
r t t e : porq o irmão frey paullo de l o r d e l l o por liurar os portuguezes
do p e r i g o em q estauão, ficou metido nelle, e assim sahio ferido em huma
mão: o irmão frey francisco por menos acautelado leuou por duas uezes c om hum
traçado, das mãos de hum gentio, hum dos portuguezes leuou hüa alfangada pellas
costas, eu escapei por milagre, os portuguezes se uierão meter em caza aonde
estauamos deixando as suas em q tinhão suas fazendas, e tornouçe asender de
nouo a bulha, os gentios tornando a buscar aos portugues[es] c om armas, e
grandes uozes e alaridos, prometendo q nenhü auia de ficar c om uida: não auia
aqui outro Remédio mais q Recorrer a Deos, o irmão frey francisco de Braga
se pos em giolhos diantte de huma imagem de nossa snãr, e hü christo
crucificado, c om as lagrimas nos olhos continuaua a oração, pera q Deos
aquietasse aquella gentilidade, e todos pedíamos a Deos a pas e quietação,
pondo em elle todas nossas esperanças; mostrando nos sempre c om grande
fortaleza, e animo, em estes trabalhos q padecíamos tendo em pouco todos os
malles e perdas desta uida p o r graues q fosem, não temendoas aduerçidades, n
em ainda a mortte, p o r estar firmes e seguros em o bem. sofrendo sempre c om
pasiençia os trabalhos e apertos, q o tempo, e ocazião, nos oufereçià, sofrendo
e padesendo pello mesmo senhor, não so as emiurias prezenttes, mas armando nos
e dispondonos pera quaes quer outras aduerçidades q se podem oufereçer, nas
uidas dos sanctos padres se conta, que Rogando serto ermitão a hum uelho
sancto, que lhe emsinaçe alguma coiza c om q pudesse alcãsar a uida eterna.
Respondeu o sancto uelho si potuéris contumeliam pati, et sustinere, magnum
est hoc, et super omnes Virtutes! se c om pasiençia poderes sofrer e
sostentar, as iniurias que o tempo e ocazião oufereçe, he esta obra grandioza,
e p o em o Risco soubre todas as uertudes, e he a q grangea e emcaminha almas a
Deos.
Sempre os Religiozos estiuemos c om grande animo
não somente pera sofrer de uontade as jniurias prezentes, mas aparelhados pera
sofrer outras q o tempo podia ocazionar, porq a fortaleza nam conçiste tanto em
as forças corporaes, e ualor de braço, quanto em a uertude, e esforço de animo.
Como aduerte sancto Anbrozio. non in uiribus corporis, et laçertis (dis
e l l e ) tantumòdo fortitudinis gloria est, sed magis, uirtute animi Dis
sam Bernardo que não se pode chamar uarão fortte, o q não c o b r a maior
animo, na ocazião, e empreza
mais difficultoza. non est uir fortis, cui non crescit animus, in ipsa rerum
difficultate.
Grande
forteza de animo, mostrarão aqui os Religiozos, pois tanto q amanheceu nos puzemos a caminho, e fomos hüa legoa pela
terra a dentro a fazer nossa uizita ao Rey, em nossa companhia forão os dois
portuguezes, a nos os Religiozos como tínhamos uindo de nouo, nos festejou
muito, e folgou de nos uer em o seu Reyno: este Rey se chama Dom Diogo, hera christão e seus irmãos e parêttes o
herão também, e na uerdade me pareseu bom christão pello q ui em seu modo,
e em seu falar e no amor com q nos Recebeu, e o quanto folgaua de uer frades no
seu Reyno: e depois de lhe fazermos nossa vizita, e de poremos nossa pratica,
por xalona que pera isso leuauamos, q uem ser o mesmo q imterpetre, e de lhe
dizeremos o fim, aqui uinhamos ao seu Reyno, e as parttes de guine, ao q a tudo
e l l e Respõdeu c om palavras mui cortezes cheias de grande alegria: e no tempo da despedida
lhe fizemos duas petissõens: a primeira nos auia de dar licença pera tiraremos
huma china solene, q estaua pertto da igreia que estauamos fazendo em o seu
Reyno, no porto e sitio de Quinguim, pois não
hera b em q aonde se havia de celebrar se estiuesse ao Redor da igreia fazendo
adorações ao diabo (china uem a ser o mesmo q idallo) e adoração q lhe custumão fazer neste Reyno he deitarem todo o corpo
estendido no chão de burços, em os lugares aonde t em estas chinas, e lhe
aprezentão em panellas, e testos, sangue de galinha e de outros animais,
untando as c om farinha de arros vinho de palma, e outras seremonias, e traças
diabólicas, a segunda petição nos auia de dar licença pera desmanxar huma caza
q estaua iunto da i g r a q fazíamos, porq não uiesse morar nella algum gentio:
ao q respondeu, q quanto a caza, que desemos alguma coiza de dadiua a seu dono,
ainda que fosse huma barra de ferro, e q a derribasemos l o g o : e nos asim o
fizemos sem nenhuma dilação:Disse mais q quanto o tirar a china do lugar aonde
estaua, q isso hera coiza dos gentios seos uaçallos moradores naquelle sítio;
mas q pella menhã mandaria logo seos fidalgos, e toda a sua gente, c om recado
seu aos moradores do sitio aonde estava a china, pera q logo a tirassem dali
fora : com isto nos despedimos mui contenttes e elle se despedio de nos c
om grandes cortezias a seu modo: e na despedida nos mandou dar huma vaca q he a
maior dadiva emtre elles. Recolhemanos aquella tarde, a caza onde estauamos
pouzados q hera aonde se fazia a j g r . a q hera como tenho dito espaço de
huma legoa; e os portuguezes se tornarão em nossa companhia depois q
Reprezentarão ao Rey a descortezia q seos vaçallos lhe tinhão feito.
Ao dia seguinte mandou logo o Rey a seos
fidalgos, e toda sua gente, com recado aos moradores aonde estaua a china q
logo a tira sem q não hera b em q aonde se fazia huma igreia estiuese hum
idallo tão perto: e como neste
lugar estava hü homem poderozo, por nome Xacô Braga, e todos daquellas partes
se gouernauão pello q e l l e dezia, e ordenaua, este tal se pos c om quanto
pode e em sua mão estaua, a defender a q se n ã o tirase a china, induzindo e
amotinando a muitos, iurando e prometendo, c om todos os q estauão delia sua partte
q se se tiraua a china q os frades os auimos de pagar, e q nenhum de nôs
auiamos de ficar c om uida, pois heramos causadores de se lhe f a z e r em
aquellas afrontas as suas coizas, forão tantas as inquietações, e Rezões q de
partte a partte ouue nesta ocazião, q os
fidalgos e mandados do R e y c om u i r em c om todas suas armas se não
atreuerão a nada e se tornarão a hir c om Reposta ao R ey de tudo o q tinham
uisto, e tinha sucedido, e c om as coizas estarê nestes termos, e nesta altura, nem p
o r isso dezestimos da pertenção, antes c om dobrado animo nos hiamos metendo
cada uez mais nos perigos: pedindo sempre a Deos nos aclaraçe, e apuraçe, o
entendimento pera q com prudência pudéssemos buscar o meio mais cõuiniente pera
leuar a o cabo o q intentauamos, porq por agudo e sutil, que seia o humano,
sempre t em neceçidade da lux d o Çeo, onde a nossa uulgata dis. da mihi
intellectü. le s. ieronymo do hebreu.
Doce
me. e
euthimio da palaura grega, prudentem façito. uos senhor sois uerdadeiro
mestre de quem ei de aprehender não somente uertudes mas prudência, pera o b om
asertto no caminho da saluação: bem emtemdia dauid isto pois sendo mestre, e
doutor agraduado pella siençia de Deos pera emsinar os homens, sempre foi
desipollo mui sujeito pera aprender de Deos, e asim tratauamos de consultar sô
c õ Deos este negocio pedindo lhe seu fauor e aiuda, dissemos huns aos outros q
pois nos tínhamos sacrafficado a seruir a Deos logo dessa hora nos
sacrafficamos a padeser: e nam temendo perigos nos tornamos outra uez p o r n o
caminho, e fomos buscar ao R e y as suas
cazas, e lhe demos comta de tudo o q tinha sucedido — Dizendo lhe q se a
china se não tiraua do lugar em q estaua posta q nôs nos auiamos de hir; e os
portuguezes, e não auia de tornar a emtrar nenhum mais em seu R e y n o a fazer
negócios e outras muitas Rezões q lhe demos; ouuindoas todas c om muita tenção,
tomou em cazo de honrra tudo o q lhe dissemos: e nos prometeu, e Deu sua palaura; de mandar ao o u t r o dia
gente em forma, e q a china não f i c a r ia no lugar em q estaua, c om esta
palaura nos uiemos mui contentes pera caza, esperando ao outro dia uiesse a
gente do Rey: neste passo estauão os mercadores portuguezes, sem animo e tão
temerozos do sucesso q auia de auer, por u e r em q todos os moradores destas
parttes estauão amotinados, e p o r cabessa do m o t im o poderozo Xacô Braga,
todos se querião hir embora por se não acharem na ocazião. — mandarão logo por canoas nagoa pera fugirem
nellas. cuidando por serem brancos caheria também soubre elles partte da
uingança dos gentios, e asim andauão dizendo a todos, q elles se não metião em
nada: e a nos uinhão dizer q não fossemos cauza delles perderem sua fazenda,
e q não auiamos de leuar ao cabo o querermos tirar lhe os seos idallos dos
lugares em q ha muitos annos os tinhão postos e na uerdade nos também
cuidauamos não escapar nesta ocazião c om uida pella grande inqui[e]tação q se
ia armando, e leuantamento que se hia fazendo emtre os gentios: mas todos estes
combates, e trabalhos ordinariamente uem acompanhados c om traça, e ardil do
diabo; e asim como aqui as batalhas e contendas dos Christão são mais
apertadas, e dificultozas, também a Victoria que se alcança fica sendo de maior
ualor e estima.
Premetio Deos q uindo ao o u t r o dia a gentte
q o Rey mandaua, temendo todos o poder; se aquietarão c om as armas, contudo
não deixou de auer grandes gritos, e alaridos, e das molheres q todas se
aiuntarão em hum c o r p o : mas a gente
do R e y c om poder lançou fora a china; q asim se chama na sua lingoa, aos
idallos destas parttes. seia o snõr bendito e louuado, q todas as coizas de
seu serviço obradas com spirito, quanto mais dificultozas parece tanto mais
facilmente se executão: tanto que o s portuguezes uirão que hera
passada a ocazião de maior perigo, uierão logo dar c om nosco a caza aonde
deziamos missa; Logo o irmão frey Paullo se Rauestio cõ soubrepelis e estolla,
os portuguezes com suas uellas acezas, o irmão frey francisco c om hüa grande
cruz adiante, os mais ministros, c om agoa beta, outro tangendo huma campa,
todos os christãos se aiuntarão, e logo no mesmo dia fizemos esta proçição eu
seruia de a hir consertando e guiando, ao
lugar aonde tinha estado a china, q hera na Rua lugar mais publico daquelle
sitio; e com catheçismos e Bênçãos, benzemos aquelle lugar, q estaua dedicado
ao diabo, e nelle puzemos huma fremoza cruz e emquanto se fazia a coua em q
se auia de p o r catamos muitos salmos, e c om te Deum laudamus cantado,
logo fomos todos de dois em dois, adorar
a sancta crux: e nos tornamos a recolher pella mesma ordem: os christãos
ficarão tão alegres, e contentes, os portuguezes dando grandes uiuas, e fazendo
varias acções de alegria, nos não sesando de dar graças a Deos, pois na
primeira sahida que fizemos, nos mostrou todas aquellas dificuldades; pera por
este modo nos f a c i l i t a r o caminho de saluação das almas q buscauamos.
E
como os meus deseios herão o Repartirmos pellos Reynos de guine pera desta
sortte poderemos grangear mais almas pera Deos. — por quem quer mostrar o grande
amor q t em a christo, deueo mostrar no afecto, e feruor, c om q procura trazer
almas, a fê, e iugo de sua i g r . a por q como dis são gregorio. Me in
amore Dei est maior, qui ad illius amorem plurimos attrahit. a que lhe he
mais creçido no amor, q mais almas grangea pera delia ser o senhor seruido, e
amado, por cuia Rezão nos tornamos a
embarcar pera cacheu, pera q em hum pataxo, q ahi estaua me embarcar com meu
companheiro frey saluador de taueiro, pera as parttes do sul: e tanto q
cheguamos a pouoação de Cacheu, a mim me deu huma febre cauzada das grandes
calmas q nestas parttes se padesse, e pella presa da embarcação não tiue lugar
de me sangrar mais q duas uezes, e cabado de sangrar, com a mesma febre me
embarquei em o pa[ta]xo com meu
companheiro, pera o rio do Nuno q hera o porto pera aonde o nauio hia.
Não
me esquece de contar os fauores q nesta pouoação nos fizerão, e o principal de
todos foi q não tendo eu, nem meu companheiro, ornamento pera dizeremos missa,
aqui nolo emprestarão os deuotos: com o q fomos com grã consolação, a huma por
teremos ia ornamêtto com q selebrar: a outra por hiremos pera parte aonde
podíamos fazer muitos seruicos e Deos nosso senhor como hera no r r io do nuno
ahonde hauia muitos tempos não hia sacerdote, ministro do euangelho. e
despedidos de todos os quaes ficauão com sentimento de me uerem embarcar tão
emfermo e doente: disto nada me dezanimaua, por q quem se dillibera a seruir a
Deos. salta deficuldades, atropella duuidas, e uence inposiuens: e como a
acouardia numca foi uista, nem ouuida, tomei alento; e me embarquei aos dezaseis de abril.
Capitulo.
V.
Do
sucesso de nossa viagem: e de como estiuemos em a jlha do Bissao: e de nossa
cheguada ao Rio do nuno, e do ã ahi obramos, ate minha partida a Serra Leoa
Em dezaseis de abril nos fizemos a uela, seguimos nosa viagem, aos quatro dias
delia, deitamos ferro no porto da ilha de Bissao, sahimos em terra, os
christãos q auia nos uierão Receber, ueio também o padre frey João de Peralta, missionário apostólico, e Religiozo capucho da nação castelha[na]o
qual o trazião em humacadeira por estar tolhido de pés, e mãos, por cuia cauza não
dizia missa a m.t o têpo, nem podia administrar os sacramentos: fomos todos ate
a j g r e i a q estaua perto do porto aonde dezenbarcamos, e depois de
fazeremos todos oração e darmos graças a Deos do bom sucesso da uiagem q ate
aquelle porto troxemos, logo nos leuou o R e l i g i o z o a sua caza a qual
estaua perto, na qual nos agazalhou o tempo q aqui estiuemos, no dia seguinte
mandamos tanger huma campa pellas cazas p . a q acodisem a j g r e i a neste
dia pella menhã comfesamos muita gentes: a
tarde fomos uizitar ao Rey o qual se chamava O Équende ficauão as suas
quaze huma legoa pella terra adentro, e
nos aconpanhou muita gente emtre a qual hião alguns brancos q aqui fazião seu
negocio, foi também ê nossa companhia o dito frey Ioão de peralta, q por
estar tolhido e nos querer acompanhar o leuarão em huma cadeira: O Rey nos
estaua ia esperando c om toda, a fidalguia, e asim os q la estauão, como os q
hião c om nosco, herão maes de sem homens, depois de feitas nossas cortezias
lhe fizemos nossa pratida por chalona q pera isso leuauamos, qual lhe dissemos
o muito q dezeiauamos ficar em o seu Reyno:
e como estauamos agardecidos dos muitos fauores q aos brancos fazia,
estimou o Rey grandemente a nossa vizita, e nos Respondeu pello mesmo imterpete
com os mais subidos comprimentos q mais ui entre gentios dizendo emtre as
muitas coizas q disse, q nos heramos o Rey de seu Reyno, e q os brancos q nelle
ficauão seriam Rey c om elle iuntamente, e q
não tinha maior alegria q ter brancos no seu Reyno e que essa hera a sua maior
honrra: e persuadindo nos muitas uezes quizesemos aqui ficar, e q não
fossemos com a uiagem por diante, e depois de todas estas praticas mandou, por
meza na rrua aonde todos estauamos e se seguio hü banquete de uarias iguarias,
com muitas galinhas e fruitas de sua terra todos comerão por q elle se não
enojaçe durou a uizita ate perto da noite, na
despedida falamos ao Rey sobre o se fazer christão, e não obstante as muitas
Rezoêns q pera isso lhe demos: Respondeu q por hora não podia dizer nada q f
icase a coiza pera outra dia: porem q não empedia a nimguem de seu Reyno
que se qui[ze]sse Bautizar, e fazer christão: pedimos lhe licença pera bautizar a sua mulher maior, a qual nos
tínhamos catechizado, Respondeu q não empedia a ninguém ainda q fosem todos de
sua caza despedimonos Com isto dando as mãos q he cortezia q entre elles se
uza, e nos uiemos Recolhendo os mesmos q tínhamos ido: ao dia
seguinte q hera domingo em a[ma]nhecendo nos puzemos logo na igreia a confessar
e c om a gente que tínhamos ia confesado fes numero de cento e trinta pessoas e
depois de dizeremos missa e dar a comunhão: Bautizamos treze pessoas emtre as
quaes Bautizamos a hü que c om nosco linha no pa[ta]xo, asim q todo o trabalho
deste dia foi muito grande, pois não descansamos em todo elle. ficando todos
tão comtentes, como sentidos, na despedida, pois não sabião quando lhe passaria
por aquellas parttes outro bem tão grande de saserdottes. E como a embarcação não podia esperar, por não perder a ocazião do
tempo: a outro dia nos embarcamos despedindonos de todos e apartandonos c
om grande sentimento, por uer o grande campo q aqui auia pera a sementeira do
euangelho: e pera c om muita facilidade se conuerte r em muitas almas mas como
nos dezeiauamos metermos em maiores trabalhos, q so com elles se alcança
maiores merecimentos, e acodir a parttes tão neceçitadas logo nos embarcamos,
mas anttes, q prosigua a Relação de nossa derrota, he bem dei aqui hüa breue noticia
desta ilha do bissafo] e de alguns Rittos, e custumes da gente delia.
He
esta ilha do Bissao m.t o grande a qual emcerra em si hü Reyno, linpa de
mattos: por cuia Rezão não tem tantos bichos ferozes emtre as muitas coizas
notaueis q ui nesta ilha q todas não posso escreuer a mais Barbara e temerária
he q quando morre o Rey, matão todas
suas molheres, fidalgos, e ualidos, e fazem numero de quarenta pera sima; e
todos enterrarão no mesmo dia c om outras mais coizas q cá na vida uzão:
dizendo a isto q tudo lhe he necesario, pera seruirem ao Rey la na outra uida.
Iunto a j g r e i a que
os christãos aqui tem q esta iunto do mar, t em estes gentios hüa china geral,
posta debaixo de huma aruore cuberta com huma cabana pequena: onde uão fazer
sua adoração em sertos dias do anno: e não pode nimguem semear arros, sem
primeiro ir ouferecer a esta china o seu arado, e fazer huns tantos regos
defronte em ofertta, e o Rey he o primeiro q uai fazer esta seremonia, e da licença aos
outros, muito dezegei tirar aquella
china, daquelle lugar tão perto da j g r e i a : mas não poude ser por q nos
faltaua o tempo pella pressa da embarcação q queria partir e não podia esperar
mais:
Defronte
desta paragem da igreia distanta de meia
legoa de mar, esta hum ilheo, cheio de altos mattos, e todo elle sera do
tamanho, de outra meia legoa, no qual
fazem estes gentios, em sertto dia do anno, sua iunta e sinagoga: aiuntaçe no
tal dia a maior partte da gente do Reyno: e são tantas as canoas carrega
das de gente q sempre naquelle dia se
uirão muitas e se afoga muita gente: O
Rey he o primeiro q uay, numa canoa, com sua gente, e leua consigo huma negra,
a qual no caminho a deita ao mar, e se afoga fazendo delia oferta ao diabo,
pera q o mar esteia quieto: emirados todos no dito ilheo, depois de feitos seus banquetes, e pagodes, uão todos a hü lugar, aonde
fazem adorasões ao diabo, e por arte delle mesmo, estão uendo sahir hum f e r r
o da terra, pouco, a pouco^e ali lhe dis o diabo, conforme o ferro sahe, se hà
de auer aquelle anno muitos arros, e mais mantimentos da terra: e soubre
isto fazem muitas seremonias de gentios.
Com
tudo isto dezegei de ficar nestas parttes: porq se aqui ouuera ministros do
euangelho se auia hir tirando pouco, a pouco, estas tão brutaês herronias: pois
auia ia muita gente christam mas como
hiamos acodir a outra partte, tão neceçitada, nos partimos logo, e fomos
seguindo nossa uiagem, despedidos deste porto, ao treseirodia nos ueio hüa
tempestade, com tão grandes mares, e maiores uentos, q toda a noite estiuemos
soubre f e r r o , emtrandonos muita agoa por todas as parttes do pataxo: o
uerdadeiro remédio nesta ocazião hera, recorrer a Deos, e asim muitos se
confesarão: e com serem tão apertados os combates dos mares; e continua bataria
dos uêtos, não perdiamos nada do animo: antes com maior ualor, e firmeza, nos
conformauamos com a uontade do senhor, quando fosse seruido q ali fosse, o f im
de nossas uidas: mas o mesmo senhor premetio q amanhecendo, sesaçe, a
tempestade, e ficasemos com uida,pera c om ella andaremos em hüa continua luta,
e contenda; com estes gentios: grangeando com esta prelongada batalha, grandes
merecimentos: e muitas almas pera o Çeo; e pera trazeremos a fê, com a lux de
sua doutrina, e exemplo, tantos homens perdidos, conuencendoos de seos erros, e
emganos.
Fomos
continuando com a uiagem, chegamos ao
Rio do Nuno, a trinta de abril, os christãos q neste porto estauão, tanto q
tiuerão noticia, que heramos cheguados, nos uierão buscar ao pataxo, e sahindo em terra ficamos, com grande
sentimento por acharemos quemada, huma i g r . a que neste sitio auia, do
horago de nossa senhora da graça: tinhamse também quemado muitas cazas, por hum
descuido que ouue com o fogo e c om as cazas em todo este guine, são de
palha, estão sogeitas a estas desgraças os mais dos annos: e como o dia
seguinte depois de nossa cheguada, hera dia sancto de S. felipe; e sanctiago,
armamos hum altar, a porta da mesma igreia, consertado o milhor q podia ser, no
qual dissemos missa, à qual acodio muita
gente christã, que de varias parttes estauão naquelle porto, fazendo ceos
negócios, aqui lhe fiz huma larga pratica, Reprezentando-lhe ao q uinhamos;
Emtrou logo nelles tanto a deuação, q c om palauras, e obras mostrauão a grande
alegria, que tinhão de nosa uinda,e asim todos iuntos, em breues dias fizerão,
no mesmo lugar em que dantes estaua, a jgreia, e acabada ella: f i z e r am
huma caza, em q nos estiuesemos.
Logo que comesou a hir conffesando muita gente q
ao todo serião mais de cento e cincoenta christãos, moradores nesta pouoação do
R i o do Nuno: na ygreja Bautizamos cincoenta e quatro pessoas, todos os
sábados cantauamos ladainha de nossa senhora, â qual, todos Respondião: no f im
da qual auia, sempre pratica: todos os domingos e dia sanctos, fazíamos
doutrinas, às quaês se aiuntaua toda a gente que auia, todos os domingos ao
tempo da missa auia pratica: por meio dos quaês exercícios muitos se tornauão a
Deos, e muitos se Bautizauão, estauão todos tão edificados, e contentes, como
se uia na uontade, c om q nos aiudauão c om suas esmollas, com aquillo q a
pobreza da terra podia dar de si. pasado hum mes de nossa asistençia, estando
eu ia preparado para ir a humas aldeãs de gentios; as quaes, chamão Benar:
egilbonte: me apalpou a terra com os achaques de guine, sangreme seis uezes, e
tomei purgas; mas nem por isso meos achaques herão cauza, de se faltar ao
exercício esperitual, e conuersão das almas: por q hora eu, quando me sentia
melhor: hora meu companheiro não faltauamos, asim aos christãos, com ê
catiquizar aos gentios, passados dois mezes de nosa asistençia chegou ao porto
hüa nao ingreza, a qual hia pera a serra Leoa: e como eu tiueçe noticia dos
Religiozos q tinhão ido a dita serra: frey paullo de l o r d e l l o : e seu
companheiro frey sebastião de S. Vicente: do grande seruiço q a Deos naquellas
parttes se fazia, por ser mais manco o gentio, e se poderião, comuerter muitas
almas, c om mais facilidade, por todos tomarem aquillo que se lhe dis, e se
lhes emsina; (como eu tudo experimentei e tudo achei na uerdade) o q uisto a
informação tão boa, q me tinhão dado: que na uerdade parece que Deos me chamaua
pera aquellas parttes, tão Remotas, pera que não aquietando, em hum lugar,
imitase aos verdadeiros missionários, não aquietando nem sosegando, em hü
lugar; como o fazia hü .s. Andre Apostolo, q pera grangear tantas almas pera o
Çeo, pasou em a prouinçia de çitia não aquietando, nem sosegando, em hü lugar
donde pasou a epiro, e a traçia buscando almas, e não esperaua que as almas o
buscasem a elle, e conuerteu innumeraiel multidão, de infiéis a fée, de
christo, obrando grandes milagres, em confirmação de sua doutrina, ate q foi
prezo, não se conta menos de s. Bertolameu apostolo, o qual padeseu grandes
trabalhos, pera grangear tanta multidão de infiéis a fé, e amor de christo; em
licaonia, prouinçia de azia, não sosegando em húm lugar, pasando na india
Citérior, ou maior arménia: deRibando
templos, quebrando idallos, prendendo o Diabo, q os gentios adorauão em hum idallo chamado Astarot, tão solto em guiar
almas pera o inferno: despindo a pelle de seu corpo fazendo delia escudo,
pera asegurar a uictoria e triunfo dalma. e dezeiozo, de imitar, aos
verdadeiros missionários, e com perçeuerança e firmeza, ensinar a doutrina,
acompanhada de pureza, e conçiençia; e de mostrar cõ palaura, e exemplo;
firmeza, e perseuerança, na guarda da ley de Deos me embarquei logo no dito
pataxo, por q doutro modo, nem fizera o q deuia, nem fora ser missionário,
antes f o r a ser morador se gozara p socego e descanço em hüa sô caza. meu
companheiro se ficou em este lugar continuando com seos ministérios, e
cultiuando estas terras, ate nos tornarmos a iuntar;e despedido de todos, demos uella a dezoito de iunho, com
muita alegria, porq nôs, os religiozos capuchinhos com os leues trajos da
pobreza, nos fas mui façeis as uiagens, e muito mais seguros, os caminhos, mas anttes q trate de minha viagem a serra
Leoa he Rezão q dei aqui huma breue
noticia deste Reyno do R i o do Nuno e de alguns Rittos e costumes da gêtte
delia.
He
este Rey donde esta a pouoação
christão, q os frades tinhão Bautizado, seu
nome heDom Vicente a quem anttes chamauão may Chauella: Com o qual faley
algumas uezes e quando vinha a aldeã aonde nos estauamos moradores, (por morar
fora delia distancia de huma legoa) a primeira coiza de todas q fazia hera ir a
ygreya a fazer oração, e depois hia a sua caza, e nos uizitaua na nossa c om
grande amor e alegria, estimando muito a nossa asistençia no seu Reyno, e festeiaua grandemente todos os brancos e
portuguezes que nelle quizesem asistir, a tratar de çeos negócios, como ao
prezente muitos asistem neste R i o do nuno c om suas cazas, e nelle carregão
suas embarcassões de tintas, marfim, e negros, e os ingrezes tem oie f e i
to caza neste Rio na qual uendem suas fazendas, a troco de marfim, e sera. a
gente destes Reynos lhe chamão landomazes, falão lingoa quase como sapés, são grandes frecheiros, todas suas frexas
sam eruadas, c om huma casta de Erua tão fina, q em tocando e fazendo sangue,
(se não ouuer quem lhe acuda com huma contra erua, q so eles sabem, e conhecem)
l o g o dentro em tres horas morre, e querendoo emterrar, se lhe pegão por hum
braço, larga o braço, se lhe pegão por hüa perna larga a perna, e pedaço, e
pedaço, se esta quebrando, que tão fino he o veneno da erua: esta nação adora
mais casta de chinas e mais uariedade de erronias que nenhuma outra nação, por
que cada hum adora aquillo que quer. Se morre algum emterramno a porta da
rua e aquelle dia com tambores, e bombalões, e toda a casta de instrumentos,
com ferros e mais estrondos, f a z em toda aquella noite, e todo o dia tão
grande alarido, c om toda a sua perenteira, sem pararem nem sosegarem, e dahi a
quatro ou cinco dias, se aiuntão todos
os parentes e amigos a fazerem hum choro, o qual he balhando e cantando com
instrumentos, e tudo dura dois, tres dias, c om grandes uozes de dia, e de
noite, sem pararem; no que gastão muito uinho de palma que he de cor de leite,
e muito uinho de mel, e os mais graues matão suas vacas nestes dias, e sempre
durão estes choros todos os anos, por aquelle tempo.
Padesese nestas terras, grandes uentanias, e
trouoadas grandíssimas, esta muito sogeita, a pedras de corisco, e grandiozos
Rayos de f o g o que caem no tempo das agoas: e em hum dia amanhecerão tres elephantes
morttos de hum Rayo q soubre elles cahio, nesta
paragem ha grande multidão de elephantes, e aqui foi a primeira
uez q comi carne de elephante, da melhor partte delia q he o pè e a tronba; os
negros da terra, desfazem em huma hora hum elephante em postas com c o i r o e
tudo, e poemno ao fumo, e desta sorte o uão comendo. Muitos afirmão ser este
animal o maior de corpo, forças e destinto natural que na terra se sabe: hum
que eu vi mortto tinha cete couados de comprido: e o i t o de altura: e de grossura
quatorze: o c o i r o do corpo he grosso asparo, cheio de uerrugas, tem o
cabelo mui espalhado, e Roim, q parece pelado, a cor de cinza escura, que o fas
pareser mui feo: a cabesa he grandíssima e as orelhas são compridas tres
palmos; e hum, e meio, de largas; as quais moue e auana de contino: na testa
tem toda sua força: os olhos são uiuos, mas pequenos, o oulhar sorrateiro como
de p o r c o : a boca fassanhoza, e nella não tem mais que dois dentes, q lhe
saem fora huma uara, e a m . t o s duas uaras: nesta pouoação do R i o do nuno,
ui eu dentes de elephantte que cada hum pezou seis aRobas e meia, e ui pezar
cantidade de quatro arobas cada hum: iulgem agora os leitores q grandeza serra
de animaes que tem taês dentes, e estes são o marfim de que os estrangeiros do
norte carregão suas naos: tornamdo ao meu intento, a tromba deste animal que
lhe serue de naris, com a qual leua o comer a boca, tem de comprimento quatro
couados, em cuio remate tem dois buracos que são as ventas, e huma mosca, ou
formiga q em ellas lhe entr[ando] o fas andar doido: em algumas parttes aonde
amanção elephantes leuão na tronba grade pezo, como huma pessa de artilharia,
ou outros semelhantes: O pescosso tem tão curto que se não sabe, onde comessa
ou acaba: o uentre he mui largo : e as costas mais altas que todo o corpo e
cabeça: o Rabo de dois palmos: os pês, e maos, são Redondos grossos e
disformes, em tanto que no acento delles tem tres palmos, e quatro, e cinco ê
redondo, e muitas uezes hindo eu pellos caminhos hia medindo as pegadas, q auia
cantidade e achaua muitas desta medida: muitos louuão a este animal seu
destinto e prodençia: e he tanta a cantidade q ha delles nesttas terras de
guine principalmente nestes Reynos doRio do Nuno, que não ha dia que se não
matem Elephantes, aqui ou mais pella terra a dentro.
Os negros que tem por offiçio serem casadores de elephantes ordenariamente são feitiseiros, e andão por todo o
corpo cheios de chinas, e de Erronias: matamnos c om flexas, eruadas com tal
calidade de erua, que aos o i t o ou des passos cahê logo, e se não fes bom
tiro, e foi cahir na terra de outro Rey, a partte q cahio no chão, fica sendo
do Rey da terra.
Capitulo.
VI.
Do
çucesso da minha viagem a Serra Leoâ. e do que obrei no seruiço de Deos, no
descurso de Des mezes, q naquelas partes andey.
Partimos do Rio do Nuno a dezoito de iunho, e estando iunto â barra esperando por uento,
pera deitaremos fora, chegou a bordo do pataxo huma canoa, em a qual uinha hü
gentio graue, acompanhado com seu interpetre, pera falar com migo, e auia ia
tempos andaua esperando aquella ocazião, o qual se queria fazer christão, e
estandoo eu instruindo nas coizas da feê: Como
todos os q hião no pataxo herão hereges ingrezes, temdo o cappitão noticia q eu
queria Bautizar, mandou com muita presa leuar ferro, e largar uellas,
dizendo q se fosse o homem Bautizar, aonde ficaua meu companheiro, q não no
queria conçentir no seu nauio, e como o nauio ia andando, temerozo o gentio, q
o ingres o leuaçe para longe, onde não podeçe tornar a sua terra, c om a maior
preça q poude saltou dentro na sua canoa, e foi
pello Rio asima â buscar meu companheiro q fica[va] mais de uinte legoas pera
q o Bautizaçe, e como no nauio eu hia selutario, e não auia mais christão
algum, não poude mais q sô ficar c om ô sentimento da descortezia q o ingres
fizera: e asim premitio Deos q não lauaçe a f im a iagem sem grandes trabalhos,
por que aos cete dias delia ueio tão grande tempestade, na qual perderão a
barca, a outro dia não podendo ia as as amarras sustentar a tromenta, aRabentou
a melhor, e se perdeu, e iuntamente o ferro, sempre cuidei q nesta ocazião, o
mar comese a embarcação, e a nos todos, mas como Deos tem muito de
mezericordiozo e não castiga podendo, antes com sua poderoza mão liura de todas
as tempestades, e perigos deste mundo asim aquietou a tromenta, e fomos
seguindo a uiagem.
Cheguamos a Serra Leoa,
a dois do mes de iulho, e tendo eu noticia q no porto de Tumba q ficaua huma legoa do porto da serra Leoa, estaua
hü frade capucho castelhano, missionário apostólico, l o g o me meti em huma
canoa para o hir buscar, e como fazem os uentos grandes, e a chuua muita, as
canoas não sam nada seguras, fomos a Deos mizeridorde, ate chegar ao porto,
onde o dito frade nos estaua ia esperando: o qual se chamaua frey agostinho de
la Ronda: e depois de fazeremos oração em a j g r . a em q elle dizia missa, me
leuou a sua caza, e aqui estiue exercitando, em sua companhia, os ministérios a
q hia aquellas parttes: Comfessando e Bautizando os mais dos dias em a jgreia,
e administrando os mais sacramentos.
Passados quinze dias de minha cheguada, me
embarquei em huma canoa em companhia do ditto Religiozo, a fizemos a primeira
sahida, a huma aldeã dos gentios, q estaua duas legoas pelo Rio adentro, o maior q moraua nesta aldeã hera hü
fidalgo, ia christão, o nome q tinha de gentio antes de se Bautizar hera Longo,
por cuia rezão lhe chamuão a aldeã de Longo, cheguados a dita aldeã, o
fidalgo christão nos Recebeu c om cortezia: aqui estiuemos alguns dias, nos
quaes catechizamos, a muitos e Bautizamos aos principaés: tiramos hum idallo q estaua no meio daldea: o qual estaua com toda a
solenidade, de Baxo de hum limoeiro, e debaxo de huma cabanazinha que c om suas
traças tinhão feito, amdamos dois dias lidando pera conuençeremos, e poderemos
ti rar: aqui se emcherão os gentios de odio contra mim, por ser eu o
primeiro q lancei mão pera o derubar, e depois de desmanxado, puzemos huma
crus, no meio desta aldeã, a qual todos os christãos forão adorar, e beijar
com grande Reuerençia, q na uerdade fiquei contente do fruito que nesta aldeã
fizemos; e como as cazas são pequenas e redondas, ficou o Religiozo q com migo
hia numa caza da aldeã, e eu me apartei delle, e me fui agazalhar, na caza de
um gentio o qual estaua auzente daldea,indo a Recolherme na caza c om hum mosso
q c om migo hia, ueyo dêtro nella duas
chinas, huma a cabeceira da cama aonde o gentio dormia e outra em a parede, q
ficaua defronte, todas postas e armadas por arte do Diabo, ao modo gentio: e
asim dise logo: não heide eu dormir numa caza, aonde se fazem adorações ao
diabo, e logo em companhia do mosso q c om migo estaua, trabalhamos aquella
noite, e quebramos e deribamos todos aquelles idallos, nos quaes aqueles
gentios adorauão ao diabo, e depois de lançaremos tudo nos matos, e outra parte
no fogo, quis por humas cruzes no lugar aonde estauão estes idallos, mas ui q
não conuinha por ser caza de hentio, e se poderia fazer algum dezacato as
cruzes, e como isto se não fizesse c om tanta cautella, pois logo na mesma
noite o souberão os gentios, os quaes t em por brio defender
as cazas de seos parêtes, e de seos uezinhos e auzentes; e tanto q souberão o q
se auia feito, quizerão dezempenhar esta afronta, ouue grande inquietação em à
aldeã, e todos em hum corpo se leuantarão em guerra, comtra quem fizera o
dezacato, e derribara e zombara de seos idallos, e todos cercando a cazinha em
q eu estaua, c om arcos, e çetas o mosso q c om migo estaua f o g i o e se
escondeu ficando sô eu em caza, o outro Religiozo não sabia de nada, por
estar a caza em q se agazalhaua longe desta: sempre imaginei que aqui desem f
im meos dezeios, e se executasse o que eu tanto dezeiaua; e mais ainda pois
imitaua a hum .s. Bertolameu apostollo, que por deribar templos: e quebrar
idollos lhe despirão a pelle de seu corpo:
Mas
consideraua não ter merecimentos, pera alcançar hum tão grande mimo, e fauor de
Deos q morreçe de mãos de tiranos, a poder de cetas, que só isso foi concedido,
aquelle famozo defensor da fe, zelador da honrra de Deos, mártir inuençiuel s.
sebastião, pondose c om tanto esforço contra hü tirano, de quem alcansou
gloriosas victorias, e se as cetas lhe cauzarão naquella batalha espiritual
tantas dores, e tormentos, ellas mesmas lhe ficarão seruindo de palmas, e
coroas deuidas a seu amor, e grande merecimento.Dis .s. Anbrózio Ubi passus, ibi coronatus. aonde este mártir recebeo a ferida, e
padeseu o tormento, ahi lhe f i c ou logo a palma e coroa da victoria, e
memoria, e lembrança deste g l o r i o z o sancto, me animaua nesta ocazião, e
asim me ualla de seu fauor pera c om D e o s : pois que elle apêuedo, pos o
peito as cetas do enemigo, aparecendo, depois c om tantos golpes, e feridas em
sinal que não f o g i o c om o corpo na batalha, à fúria dos tiranos, ate o
ultimo alento da uida me alcançaçe, a q na ocazião prezente me não faltaçe o
valor. Mas Deos nosso senhor premetio, que eu escapaçe c om uida, pera c om e l
la grangear merecimentos, na continua bataria, exerçicios, em q nestas terras
andaua; por q no tempo em q eu estaua cercado do maior p e r i g o : sahio o fidalgo, christão: q hera o maior
daquella aldeã, c ô todos seos filhos armados, e f o r ã o aquietando a pulha,
pello milhor modo q puderão, e como todos, a este tinhão respeito, se
aquietarão ficado todos cheios de odio contra mim e outro Religiozo, sabendo
tudo o q tinha sucedido, se foi embarcar na canoa pera nos hiremos; por q ainda
q nos quizessemos meter mais pella terra ademtro, hera de inuerno e de muita
chuua; asim nos tornamos a Recolher aop
o r t o de Tumba, aonde dizendo missa, confessando e doutrinando, aquella
gente, fomos gastando algüs dias; sem t e r hum dia de descanço: aqui me uinha
a memoria, e não s em lagrimas nos o l h o s : quantos saserdottes andão
ociozos no Reyno de Portugal aonde neste largo campo, puderão fazer grandes
serviços a Deos, e acodir a muitas almas tão necessitadas de Remédio: Alguns
Religiozos aRiscão muito sua saluação, entregandoçe ao Vicioda preguiça, faltando a suas obrigações, que sam grandes! as
que t em p e r a darem boa conta, e satisfação a Deus; e muitos seculares se
saluão, occupados sempre em trabalhos, e exerçicios corporaes pera sua
sustentação, não falktando no que ordena e obriga a ley de Deos.
Em huma carta, que.s. Mártir ignacio.
escreue aos tarçenses, lhe fas esta lembrança. Nemo inter uos otiosus sit, mater enim egestatis inertia;nenhum
de uós se emtregue a oçiozidade, porq a preguissa, e floxidão, he cauza de
grandes malles, e danos, como também aduerte são bernardo. Cauendum est (dis e l l e ) otium in otio fugienda otiositas mater
nugarum, nouerca Virtutum. muita cautela deuem ter, os que
passão a uida sem trabalho, q
nese descanço fugão a oçiozidade, como may de mentiras, e uaidades, e madrasta
das Vertudes. dizia catão. Nihil agêdo, mole agere ducimus. o que esta c
om huma mão, soubre outra, sem ter alguma ocupação, nessa ociosidade aprende a
fazer mal, e pello contrario, no exercício e trabalho se aprende a b em o b r a
r : e asim trataua, de não estar hum dia oçiozo, nem sosegar nas coizas de meos
exercícios, e obrigações,e ainda que o quisse[se] fazer, não podia porq sempre
andaua passando mares, e atrauesando Rios:
Depois que emtrey nesta serra Leoa, logo me
achei b em de meos achaques, e parece que f o i Deos seruido dar m e saúde;
pera poder com os trabalhos, q nestas partes padesi, por q em toda esta uolta,
tão larga, os não padeci maiores, que nestes Rios, e portos da serra Leoa. mas
quando consideraua o q c om os trabalhos, e mizerias, se grangea, me esforcaua
cada uez mais a padesellos, e uiuia mais alegre, no maior tromento, pois uia q
c om e l l e se se aseguraua maior merecimento, q he serto q sempre Deos
fauoreçe a quê t em perseverança nos trabalhos, e mortificassões, sofrendo tudo
com pasiençia;q este he o p r i m e i r o grao de perfeição, desimulando
iniurias, Vencêdo c om fortaleza, e paciência, o impeto dezordenado deste
gentio; este grão de patientia teue saul quando comessou a Reynar, o qual
desimulou iniurias, e afrontas dando a entender q as não ouvia: não forão
pequenas as que padeci neste porto, e sitio de Tumba, no decurso de Dois mezes
e meio que n e l l e estiue, não fallo nas entradas que fazia pella terra a
dentro, padeci muito Roiz dias e piores noites, por ser tempo de inuerno e d e
grande cuua, e tanta a pobreza nestas parttes, que não ha nella, quem uos possa
dar huma migalhas de arros, cozido nagoa, q he o sustento que somente ha nestas
terras, e como no d i t o sitio não ha aldeã, mais que so duas cazas, de huma
me dauão todos os dias hum pratinho de arros, e muitas uezes cozido nagoa;
dizendo que o não podia dar mais, nê tantas uezes, e como eu não podia passar
daqui pera outras parttes, por estar o
mar de premeio, hera pera m im grande tromento,uendome selutario, emtre gente
tão ingrata, e cruel, q cuidei me dessem aqui pessonha, uisto eu não t e r
pasagem pera sahir daqui fora, porq uzão esta maldade so por seu Regallo, e
sem lhe fazerem nenhum agrauo, o estão fazendo e tantto que u i r ã o que eu me
h ia dilatando, se Rezoluerão alcançar me fora do sitio, como de i f e i to o
fizerão, e c õ Regurozas palauras, o executarão, e q auia de ser logo, logo,
porq não tornace outra uez, a ficar aly; e como aquelle lugar são tudo matos
mui altos, e serrados, e não auia mais lugar, q onde estauão estas cazas, iunto
dagoa; e uendome selutario sem companheiro, nem mosso, dezemparado de todo o
humano Remédio: sô trazia ao pescoço huma imagem do senhor crucificado, a uista
de t o d o s: q era a minha única companhia, e todo o meu a l i v io em meos
trabalhos; e uendo q não tinha aonde me
poder Recolher, asim dos Rigores do tempo enuernozo, como dos muitos animaes
ferozes q ha nestas parttes. H um homem preto q sabia falar português, movido
de piedade, me meteu numa canoa, e pelo R i o asima me leuou a hum ilheo, aonde
os ingrezes t em cazas feitas para o negocio e trato do marfim, q estão
comprando: aqui me uinha cada hora a memoria o q a u i r g em may d e Deos
passou, chegandose a hora do seu uirginal parto, andando em companhia de seu
espozo iose, buscando aonde se recolher, e dis e texto sagrado:quia non erat
ei locus indeuersorio. nem em huma estalagem publica, achou a senhora
lugar, e asim se foi Recolher em huns pardieiros, onde se recolhião animaês, os
quaes estauão fora da cidade: isto me consolaua quando
uia que a imitação da snra, andaua de
caza em caza, sem achar christão, nem gêtio q me Recolheçem, asim me fui
Recolher em hum ilheo, distante deste çitio, pardieiros e cazas, q se não sam d
animaes inRaçionaes; são por taês tidos, na opinião dos christãos, p e l l o e
r r o da Erégia q profeção, e c om s e r em ingrezes me rrecolherão com grande
uontade no exterior, mas antes q prossiga a Relação do q neste ilheo' me
sucedeu, e das sahidas q delle fis a terra dos gentios, he bem dei huma breue
noticia desta terra e çitio de Tumba.
He
esta terra, do Reyno de Coià, a
gente ainda q no nome são bagas,
todos falão lingoa de sapés, o seu Rey
lhe chamão Dom Thome, christão — he R e y d e Coià e de toda a Serra Leoa em todas as partes de seu Reyno, se uza
muito adoração das chinas: a maldade q mais reina, e maiores raizes t em
lançado, he auer grande numero de feiticeiros, e muitos q t em pacto c om o
diabo, e lhe fala uiziuelmente, e se
uza tanto o dar pesonha, e Reyna tanto este uiçio, e maldade q ate os Rapazes
maes pequenos o sabem ia uzar.
Frey
Agostinho de la Ronda. Este R e l i g i
o z o Castellano tinha em sua caza hum Rapas preto, q o seruia, e pello querer
castigar por seos erros, o d i t o moso em companhia de outros, lhe puzerão
ueneno em hum caminho por onde o dito Religioso auia de pasar: e foi t ão
grande o excesso das dores q o dito padeseu, tomandoo o ueneno por entre as
unhas das mãos, ate q permitio Deos, q o ditto mosso o uiesse descobrir e
declarar o modo e traça do diabo, c om q estaua feitto; e sacodinho dos dedos,
os pos uenenozos, se uia claramente sahir de entre asunhas, e a carne os ditos
pos ouuiaçe a sertas horas huma uós que dizia chaxô, xo, pq esta era a uós c õ
q o diabo chamava ao nosso, todas as uezes q lhe queria falar, e descuberto
tudo pelo ditto mosso, se lhe deu o
catigo q merecia,e se mandou degradado pera outro reyno.
Neste porto estaua pouzado em caza do dito Religiozo, e nos uinha hum
pequeno de arros cozidos, de caza de uma molher q moraua neste porto das
principaês desta Serra Leoa, quatro escrauas suas se consultarão, e comunicarão
ao diabo, pera com artes, e uenenos, matarem a dita sua senhora, e c om arte
diabólica, lhe i r em comendo o corpo, não no fizerão co tanta sutileza, por q
logo forão descubertas, e cendo prezas em grilhões, e mais ferros, forão
descobrindo a maldade diabólica, e o caminho e traças por onde o diabo as
leuaua a todas: em todo este guine ha
grande copia de feiticeiras, e se uza muito dar ueneno, principalmente neste
porto de Tumba, aonde se matão cada hora huns aos outros, e se alguns brancos
escapão entre esta gente he por milagre, são grandes os trabalhos q nesta serra
Leoa se padesem perigos de feiticeiras, emfermidades p e l l o R o im clima da
terra, fomes, agoas pesonhentas, e perigos em q cada hora uos uedes dos animaes
tão ferozes, e bicharia pessonhenta de que morre muita gente; principalmente dos grandiosos lagartos
que andão iunto dagoa esttando huma preta lauandoçe ueio hü grande lagarto, e
lançando lhe p r i m e i r o muita agoa em o rosto, se lançou a ella e a tragou
sem mais apareser, dahi a quatro dias em o dito porto sahio hum lagarto em
terra e a muito correr lhe escaparão duas pretas: dahi a oito dias estando
eu na igreia pera dizer missa, a qual esta iunto ao mar; chegarão a terra dois
pretos Remando numa canoa, e trazião a raboque delia por humas cordas hum
lagarto grande o qual, tinhão apanhado dentro
numa camboa, q he huma arte descaria iunto de terra, em q os negros pescão
peixe: eu o fui uer e mandei medir, o qual tinha dezaseis palmos de comprido,
feio e disforme monstro, e por isto não se atreve ninguém chegar iunto dagoa;
uiuese de tudo c om tanta cautella nestas terras, nimguem como coiza alguma sê
q primeiro a coma quem lha da, ou quem a fas.
Capitulo.
VII
Do
q me sucedeu em o ilheo do Toso, na companhia dos ingrezes e nas entradas que
fis nas terras dos gentios
E
posto neste ilheo me recolherão os ingrezes com grande uontade: Mas eu aqui
nesta companhia me ui b em penozo, e desconsolado, por duas rezões: a primeira por me uer num ilheo prezo, sem
auer hum so chrostão: mais q so esta gente de tão sego e escuro entendimento;
como disse S. Paulo tenebris
obscuratum habentes intellectum. homens q tem treuas e
obscuridade, no entendimento, e os olhos segos pera não uerem os herros, e
faltas próprias em q uiuem: a segunda he: quanto mais dezeiava de não perder
hum dia de exercitar o intento a que uinha, que he tirar a estes gentios de
seos erros, e emganos em q uiuem, e emcaminhallos ao conhecimento de Christo,
me uia neste ilheo prezo, a imitação do Bautista, s.,quando prezo naquella
fortaleza chamada Maquero, inexpunauel por arte e natureza, situada em a
prouincia de galilea q alexandre Magno edificou, esse aquella hera inexpugnauel
por artte e natureza, esta também o he por natureza, sercada de mar sem delia poder
sahir, p a partte alguma, esperando por embarcação que me pudesse daqui tirar:
não auia aqui outro Remédio mais q ter pasiencia nos trabalhos e aduerçidades,
que se oufereçem, como são Bernardo escreve a sua irmã. Soror Venerabilis sine, ferro mártir esse
poteris, si patientiam animo ueratiter conseruaueris. uenerauel
irmã sem f e r r o podeis ser mártir, se em vosso Coração conseruaveis
uerdadeira pasiencia.
Nos
trabalhos apertos e aflições, punha cada hora os olhos no meu Christo
crucificado, e dezia c om .s. Bernardo. Utrum q es Mihi Domine iesu, et speculum
patientiendi, et premium parientis. Humae outra coiza sois pera mim, senhor iesu,
espelho de paciência, e premio do q padesso: este exemplo me seruia de guia c
om que os trabalhos me ficauão suaves e faseis de sofrer, ainda que sempre
trazia o peito c h e i o de ç e n t i m . t o s o coração de penas o
entendimento de lenbranças, a uontade de tristezas, e auida sempre cheia de
tromentos:andaua senpre desuelado por me uer só emtre tal gente, e asim cuidaua
dormindo e dormia cuidando, hera o meu descansar inquieto, só em imaginar como
me poderia ver fora dessa prizão.
E passados vinte dias na minha estada neste
ilheo, chegou huma nao de inglaterra e lansou erro no porto delle, iunto
as cazas, o qual porto se chama, o Taso,
a qual nao ueio a tomar carga de marfim, e sera, a dita caza, dos ingrezes, na barca q ueio me embarquei e fui ao navio
é cuia emtrada me receberão com grande cortezia, e muitos delles me beijarão o
abeto.aqui deliberadamente me Resolui a embarcar nesta nao pera ingalaterra, e
dahi pasar a portugal, e Recolherme a minha prouincia e religião, e logo me
consertei c om o Cappitão o qual me leuaua com grandessiçima uontade, e depois
de teremos consertado e assentado o q auia de ser me recolhi outra vez a terra,
e como este navio fizesse mais de quinze dias de dilação em tomar a carga que
uinha buscar: todo este tempo foi pera mim de grande tormenta, e de maior dor
por que uia q o q acometerra hera matéria
grande pera mim, e que hera nesesario considerarce p r i m e i r o antes de me
resolver: e depois de me resoluer tornalo a considerar.
Porq
se o fazia por me uer prezo, e dezeiar de me uer soltto: isso fora então
faltarme a esperança, quando eu tenho por tão sertãs sempre; e seguras as
esperanças em Deos; e falças, emganosas, as q se p o em em os homens, huma
coiza disse aristotelles, e a meu uer müi bem conçiderada. iuuenes uiuunt in
spe: senes autem in memoriis. os mancebos começão, e uão passando a uida
com esperança; os uelhos acabão em lembranças: bê estaua o profeta Rey, no
conhecimento, de quam incertas, e emganosas, são as esperanças q se p o em em
os homens, e asim falando c om Deos, Dezia. Dominespes meá à iuuentute mea. senhor
uos sois minha esperança, em uos a pus sempre do prençipio de meos annos, te a
jdade e tempo presente, como primeira uerdade que não emgana nem pode ser
emganada, nella ueuirei até tomar posse de uos, q sois meu infinito.
E
se o fazia por m e uer aliuiado da dor, q no coração tinha por me uer posto
neste lugar, isso fora faltarme a paciência, e esquecerme do q dis são martinho
Bispo. Dolor patientia vincitur. Com a paciência se aleuia e uence a
dor. O mesmo dis seneca. Cuis dolori, remedium est patientia. a qualquer
dor por grave q seia, o maior Remédio he a paciência, asim andaua como
fluctuando de huma Rezão, pera outra, falando comigo mesmo e andando sô como
pensatiuo.
E
dilatado nestas comsiderações conheci claramente hera tudo traça e inuenção do
diabo, sô a f im de me t i r a r de t ão b om exercício em q andava q hera
tirar lhe tantas almas das unhas, e grangeallas pera Deos: Dis S. Cipriano, aduerssarius
vetus est, et hostis antiquus, cum quo preliü gerimus. este adversário com
quem andamos em geurra, he enemigo uelho, e antigo, nella são passados ia seis
mil annos, desdo tempo, q começou a conquistar ao homem, com a experiência de
tão largo tempo aprêdeo todo género de tentações e artes pera nos derribar,
principalmente aquellas q uê que c om perseuerança e firmeza ensinão a
doutrina, p o r q estes são os q lhe fazem maior guerra, estes são os maiores
na c o r t e selestial, como disse Christo por .S. Matheus, qui autem
fecerit et docuerit hic magnus vocabitur in Regno celorum. e por uentura
que c o m o taes, tem mais ilustre Aureola de gloria, q os marteres; pello
muito q trabalharão c om palavra, e exemplo, mostrando firmeza em sua doutrina,
e perseuerança na guarda da L e y de Deos. aperfeisoando a hns em a vertude, e
animando outros ao martirio; a Alma do próximo he de maior estima e ualor, q a
vida temporal o missionário q conuerte almas e as melhora pera Deos ouferece
ioJa de maior presso, que sua própria uida temporal, e fas uentagem o
missionário ao mártir, em tratar matéria de mais importância, q são as Almas do
próximo.
Dis são gregorio. nullum Deo tale sacrifiçium
sicut zelus animarum. nenhum sacraficio he mais agradauel a Deos, q o zello
e cuidado q o missionários mostra da saluação das almas, e dionizio areopagita.
Diuinarü omniü perfectiorü, diuinissima est, Dey cooperatorê esse in reductione animarum ad creatorumde
todas as perfeisões mais sobidas a que mais cheira a deuina he ser o homem
obreiro iuntamente com Deos, em Reduzir e emcaminhar almas a seu criador, mais
empenhado se mostra Deos, c om o missionário que como anJo' alumia, aperfeisoa,
e guia tantas almas pera o Çeo, q com o mártir oufecendo a cabeça ao cutelo dos
tiranos, pera grangear coroa de g l o r i a asi mesmo. Dis. S. Bernardo. Pro domino Mori, martirum est, in domino
altem mori confesorum. Dos mártires he próprio morrer por Deos, dos
confessores morrer em Deos,trabalhando e uiuendo sempre em um continuo
martirio, desfazendose a si mesmos pera melhorar, e saluar almas, grangeando
por este caminho uma boa morte, a q se çiga ilustre coroa de gloria.
Esse
tanto merecimento e ualor tem pera com Deos, o offiçio de missionário,
clraram.t e . V im logo a conheser, q
era tentação do Diabo, o quererme tirar, de exerçisio, q tanta guera lhe
fazia. S. Bertolameu, como ministro de Deos soube ter a este diabo prezo com
cadeas de fogo, tratei de inuocar seu emparo; pera q com elle, e minha
cautella, me poder uer liure de tal tentação, e izento de seos golpes: q como
tão ardilozo sempre correrão perigo nossas almas. E assim me deliberei firmemente de não seguir a uiagem q tinha
intentado e desfazer tudo o q tinha feito, e liure dos engagos, e enredos,
do diabo, me ocupar todo em seruir a Deos e merecer sua graça.
Um
dia antes da partida da nao, em companhia do ingres, em cuia caza eu estaua, q
he o feitor e maior entre elles, por nome Duarte
Mixili, falamos ao cappitão da nao, por nome Rodrigo Parcar dizendolhe, q
suposto que eu tinha consertado, de ir pera ingalaterra, q tinha negocio de
maior importância, pello qual me hera nesesario ficar em guine, não deixou
de ficar c om sentimento o Cappitão, em ter q, desfazia o q tinha intentado, a
noite q estaua pera partir me disserão q c om a sua gente uiera a terra buscarme, pera me embarcar em o nauio, e considerando
fazia agrauo ao feitor, em cuia caza eu estaua e como seu hospede, não conuinha
fazer tal agrauo: e desta sorte fiquei dezembaraçado, desta ocazião, q
tanta pena me daua; pera q asim liure delia, e dezembarasado das coizas do
mundo, me poder emtregar todo a Deos e o ter sempre prezente; e c om seu
auxilio e fauor, exersitarme em obras de vertüde e sanctidade. Dise Deos
antiguamente ao patriarca abrahão. Ambula
coram me et esto perfectusConsideraiuos sempre em minha prezensa, e
sereis perfeito e consumado na uertude: e q consi[d]erar a Deos prezente, he
serto q não o ofendera nem cahira de sua graça antes se conservara sempre
nella: e bem se uei que quando S. Pedro ficou longe da prezensade christo. Petrus uero sequebatur eum à longe; logo
cahio e o ofendeo negandoo tres uezes: e por isso, em todas minhas obras e
acssões, asim corporaes, como espirituaes, consideraua a Deos prezente pêra em
todas ellas ter b om aserto, e ao mesmo Deos por companheiro, pera me fauorecer
e aiudar, e b em se v io logo, por q dezeiando eu de me tirar, e fugir da
companhia em q estaua; como dis Antonio abade. Fugienda sunt málorum
amicitae, et bonorü inimicitae. Auemos de fugir da amizade dos maos, temer
e recear a inimizade dos bons.
E mandando os ingrezes
huma chalupa ao Reyno dos lagozes, a buscar mantimento de arros, logo me
embarquei nella, e em três dias de viagem, tudo por Rios mui dilatados,
chegamos ao dito Reyno: e saindo em t e r ra em huma aldeã q estaua p e r t t o
do mar: de nome aldeã dos lagozes: aonde achei huma egreia feita, na qual
merrecolhi todo o tempo q aqui estiue: alguns que herão christaos se aiuntarão
na jgreia, na qual lhe fis huma pratica do q o snõr me inspirou:
O dia seguinte em companhia de hum homem, dos
principaes daldea, q auia muitos annos hera christão, e sabia falar português,
fomos por todas as cazas e outras muitas pella terra adentro, ate onde pudemos
chegar, e fomos catechizando muitos gentios, e gastamos neste exercício cinco
dias no fim dos quaes
Bautizei a Vinte e cinco pessoas, e em doze dias q gastei nesta aldeã, comfesei
a muitos christaos: e querendo a chalupa uoltar, me tornei a embarcar nella.
Neste lugar asistio
muito tempo hum frade capucho castelhano por nome frey Serafim de Leam que se serafim foi n o
nome; hum serafim foi na uida: o lugar
aonde serrecolhia hera a sancristia da jgreia na qual eu emtrei muitas uezes,
que parecia mais sepultura de morto, q abitação de uiuo: sem ter outra caza,
nem morada, nem outra porta, mais que sô a da i g r e y a : e asim foi Deos
seruido, quando se lhe h ia acabando o tempo de sua uida, de o leuar a pouoação de Cacheu, pera ali lhe dar huã boa mortte em
pago de huã boa uida: e assim morreo acompanhado de saserdotes, c om todos
os sacramentos, seu corpo esta sepultado
em ajgreia de .S. Anttonio da dita pouoação.
Este
soube aprehender a b em uiuer, em a caza da doutrina, que he a y g r e i a de
christo: este soube grangear o bem, e iuitar o q he periudicial; porq pouco
importara falar b em das uertudes; conhecer e saber, deuedir suas espeçias se
em propia pessoa ouuera falta de taes uertudes; porque de pouca importância he passar
muito adiante em as ciências, ficando atras no conhecimento do q se ha de
fazer, e emmendar; este religiozo se pode chamar sabeo, pois teue ciência das
coizas onestas pera o b om uso delias, e conheceu as periudiçiaês pera se
abier: este tal foi sabeo e moderado, por q a verdadeira sciençia consiste, em
conhecer o bê para o seguir: e o mal pera o iuitar. Dis aristoteles. nec de
uirtude scire sat est, sed éntêdü est, ipsã habere, ac uti. não h e
bastante a sciençia, e conhecimento da uertude, he necessário fazer muito pella
grangear, e ter em própria pessoa, pera adquerir bondade, e huma boa mortte,
por meio do seu exerçiçio. tudo isto teue este religiozo: e asim se
uio como Deos lhe deo no f im a paga: pois tendo andado tantos annos por estes
matos, selutario no meio destes gentios, pregando e conuertendo tanttas almas:
o leuou aonde lhe desse huma boa morte, de q sempre auera memoria na uida.
He
esta terra dos lagozes, império, o seu
emperador he christão, por nome Dom Feliphe a quem antes chamauão, Bolô Farê,
este asiste numa aldeã grande pella terra dentro maês de noue legoas, a gente
toda de seu império fala lingua de sape: estes
taes adorão chinas, e uarias castas de herronias, q huns não entende, o q os
outros adorão, tudo traças e inuenssões, que o diabo lhes ensina, este
emperador nomeia mais de trinta e tantos Reis, q todos fição debaxo de seu
poder, os quaes uem a seu império tomar barrete, e o nome q lhe da de Rey,
e cada hum em seu Reyno, tem deferente nação, e deferente lingoa.
Embarcados na chalupa, uindo nos ia recolhendo, nos sahio ao caminho, huma canoa, em a qual
trazia hum pay a seu filho pera q lho Bautizaçe: que me estaua naquelle lugar
esperando, porq lhe diserão q eu tinha p o r ali passado: e como a gente q hia
na chalupa, herão só ingrezes, os quaes não concentem, q dentro em suas
embarcações, se admenistre sacramento algum, eu c om o sentimento lhe chamei a
todos, desgraçiados: homens que se prezão de que tudo sabem, e alcanção: e
ignorão e desconhecem as coizas de Deos: sabeo e bem avêturado, se podia
aquelle homem chamar, q sendo ha pouco tempo gentio, trazia seu filho a
Bautizar, confessando e conhecendo a Deos: ainda q fosse ignorante de tudo o
mais.est enim consumai
sapientia, (Dis Briziano) cognoscere Deum, et uiuere secundam uoluntatem eius.
a
uerdadeira e perfeita sabedoria, conçiste em conhecer a Deos, e uiuer conforme
a sua uontade, ficarão cõ estas Rezões e
outras muitas que ouue entre nos, odiados contra mim todos os ingrezes, mas
nem por isso deixei de trazer em minha companhia o home c om seu filho athe
dentro ao ilheo, e na caza em q eu estava o Bautizei, c om q ficou mui
conssolado, porq como todo o caminho, o uim catechizando, e instruído sabia ia
o q recebia, o pay se despedio de mim, com muita alegria.
Capitulo. VIII.
de como me tornei a
embarcar pera o Reyno dos Boylões e do q me sucedeu em o seruiço de Deos
E uendo os ingrezes q
na caza q me tinhão dado, pera me Recolher estaua os mais dos dias,
administrando sacramentos, Bautizando a muitos, e confesando a todos os
christãos, q uinhão negociar c om elles: me tomarão tãm grade odio que me não
podião uer, e andauam buscando traças, e modo, por onde me pudesem lançar fora: mas como Deos sempre
nas maiores neceçidades e apertos acode antes q elles executacem os maos
intentos, q tinhão: chegou ao porto huma
canoa c om gente do Rey dos boilões, na qual me embarquei: e com maior uontade:
pois uia q Deos me ia hia afeituando.e fauoreçendo meos Dezeios em seu seruiço,
e no descurço de hü dia fomos portar a huma aldeia do d i t o Reyno q esta
iunto ao mar, na qual moraua o Rey q
hera christão mas raros de seos uasallos o herão: este Rey p o r nome, Dom
Miguei, me recebeu c om grande uontade: mas e ra tanta sua pobreza, e de seos uaçallos, q se não podião
sustentar pella limitação da terra, e em companhia desta gente forão grandes as
mizerias e fomes q padeci, porq ainda q esta gente não sabe q coiza he Deos nem
q coiza seia dar esmola, ainda q o souberão não auia hü que o podese fazer,
pella muita pobreza e mizeria em q uiuem, mas Deos não se descuidaua c om sua
aiuda, e fauor, porq quanto maiores herão os trabalhos e aperttos da fome,
tanto maior hera em m im a uontade com q os padecia: conçiderando qo o f f i ç
i o de missionário he huma toxa aceza, q pera dar lux e alumiar aos outros, se
uai desfazendo asi, mesma, gastando sera e pauio, q he sua sustância.
E
nestas maiores fomes fazia de meu c o r p o escudo, querendo padeser nelle, o
Rigor da penna, por não emcorrer em o mal da culpa:muitos ha q nos apertos e
trabalhos fazem escudo dalma p . a defender o corpo: huns uendose apertados da
fome tratão de furtar; outros uendose em mizerias, e aperttos, poem a honrra em
pregão: o missionário por seu o f f i ç i o he o b r i g a d o padecer os
golpes das necessidades em o corpo, pera asegurar a uictoria, e triunfo dalma,
pois o simbollo do missionário, he huma tocha aceza soubre hum castisal, c om
esta letra —Offiçio mihi offiçio— com o o f f i ç i o de dat lux, e
melhorar aos outros me desfaço, e consumo a m im mesmo: esta he a obrigação do
uerdadeiro e legitimo pastor, desfazerce asi e não tratar de si, pera dar pasto
corporal e espiritual a suas ouelhas: grande pastor se mostrou Christo, pois
padesendo fomes no deserto, não quis fazer de pedras pão pera se sustentar a si
mesmo: e uendo a necessidade q padeçiao cinco mil homens c om c i n c o panis
os sustentou a todos; asim foi em muitas ocaziões, dando saúde a enfermos, e
uida a mortos, c om a sua propia quis remediar as nossas.
Asim eu padecia com grande uontade por uer o
muito fruito que hia fazendo em esta nação dos b o i l õ e s : a qual he huma
das mais dispostas genttes destas partes da serra Leoa, pera receberem nossa
sancta fee, porq alem
de serem estes gentios muito mancos, e comçenti r em c om grande uontade que lhe
entrem brancos no seu Reyno,são de muito bons entendimentos, posto q pera os
que n ã o entendem sua lingoa, seião tidos por boçães como elles também a nôs p
o r não entenderem a nossa, e asim trabalhão os frades muito por levarem c om
sigo boas chalonas, q uem ser o mesmo q interpetres: e indo aprendendo a lingoa
e entendendose c om elles nenhuma dificuldade auera em os f a z e r em a todos
christãos porq aos des dias de minha asistençia Bautizei a uinte e duas
pessoas.
Estando
huma noite a horas de me recolher, me uierão buscar dois gentios graves, a hum
p o r nome Bebure, e ao outro Bombo, e depois de t e r em com migo
palauras de cortezia a seu modo, me diserão q elles se querião fazer christãos,
e suas molheres, filhos, e todos seos parentes, mas q não ouzavão a executar
esta vontade que tinhão p o r m e d o de
hum f i d a l g o seu parente, ao qual chamauão (Bexari) e como hera gentio e f
i d a l g o poderozo, e elles todos uinhão debaxo de seu emparo, se não
atreuião a fazer nada sê seu conçentimento:ao q eu lhe respondi, q
estiuesem firmes na uontade, e dezeios q tinhão de ser christãos, q eu lhe dava
palaura de hir logo, ao outro dia, uizitar ao f i d a l g o Bexari, e de lhe
mostrar a lepra da falçidade, e emgano, q tinha no entendimento; e a elles lhe
disse o bem q grangeauão, e ganhauão, em se f a z e r em christãos, e outras
muitas rezões q não escrevo por não ser importuno na relação, corri q se
despedirão mui contentes, e eu ui nelles hirem mui satisfeitos de minhas
palauras.
Toda
a noite q se seguio, não fiz outra coiza mais q imaginar porque artte e modo
poderia conuencer aquelle gentio, pois de sua cõuerssão, se seguia o bem de
tantas almas que estauão pera se Bautizar, não achei outro meio milhor mais que
Recorrer a Deos, e asim falando c om e l le disse — Vos senhor sois o
verdadeiro mestre que aueis de ensinar, e de quem eide aprender, pois eu não
hera capas, nem suficiente pera eleger hum offiçio tão autorizado como he
o de dar lux e emcaminhar almas, Vos senhor fostes o que me elegestes: .S. I o
ã o no seu Apocalipse pinta uarios esquadrões de sanctos, mártires, confessore,
virgens, e mostrando o que guiaua a todos elles seruia de tocha. Dis a s i : Lucerna
eius, est agnus. o cordeiro q he o mesmo Deos, tomou a sua conta este o f f
i ç i o de dar lux, e guiar sanctos, que ia não p o d em sesar do acto de seu
amor. Vede senhor, que Requezitos são nessessarios, que grandeza, que vertude,
que prudência, que exemplo, pera dar lux, e encaminhar gentios tão cegos, e
obstinados em seus erros, e tão pegados, as erronias e traças do diabo: — se
vos senhor com vosso fauor e aiuda de uosso poderoso braço, me não aiudareis e
soccorrereis nesta ocazião, de m im conheço e confeso que nada posso;
Com
estas palauras, e c om os olhos no ceo, o pensamento em Deos, sahi fora Daldea acompanhado de duas
chalonas, e hum rapas que me seruia de acolito, fui a buscar o fidalgo, q
moraua pouco espasso fora Daldea: imitando nisto aquella famoza iudih.
Quando sahio fora da cidade acompanhada de sua criada, a buscar ao Cappitão
Lufernes, a sua tenda pera lhe cortar a cabeça e liurar a cidade do aperto em
que estaua do exercito do mesmo Cappitão:
Mas eu não buscaua ao f i d a l g o pera o matar
mas pera lhe dar uida, e lhe tirar a alma das mãos e poder do diabo, que tão
aferrada a tinha em suas garras; e liurar a tantos parentes, da sogeição e
catiueiro do mesmo diabo.
Cheguamos a caza do
fidalgo e c om tanta aspereza me Recebeu, que não quis que me assentaçe, e em
pe me recebeu a vizita, aqui lhe fis minha pratica, dizendo lhe q u e tanto que
chegara aquelle Reyno, e tiuera noticia, ser e l le o maior fidalgo delle, o
vinha buscar asim pera lhe fazer minha uizita, como pera lhe d a r conta ao que
uinha aquellas terras; e q os dias q tinha estado nella tinha Bautizado a muita
gente grave, e pois o seu R e y hera christão, se e l l e também se quizeçe
fazer, e Receber a agoa do sancto Bautizo: seria hum dos ditosos, e gozaria das
felicidades que gozauão os christãos, e se l he aseguraria por m e i o de
Bautizo, hüa ditoza e segura sobida ao Ç e o : e se de boa uontade se quizese
fazer christão, e deixar, e apartarçe das chinas, e traças c om q o diabo o
enganaua, seria agradauel a Deos, e sentiria logo noua consolação, e alegria,
em sua alma, porque Deos hera o q me mandaua a sua caza a buscallo e aviziallo
:
A Reposta que m e deu a
estas e muitas Rezões que lhe dei foi a indignarçe com grande hira contra as
chalonas q c om migo hião: e uindoçe a m im me pos tres empuxões tão grandes q
do t r e ç e i r o me pos da parte de fora, e fechou a porta, e c om grandes
gritos e uozes, q se lhe tornaua outra ues a sua caza, q me auia de tirara a
uida, e a todos os que c om m i g o fosem; mas asim afrontados, não deszesti da
empreza: Mas antes considerando, os milhores meios por onde pudese conseguir o
b om f im a q tiraua meu intento, e asim me pareseu milhor calarme naquella
ocazião, e Recolherme a aldeã, pera falar a seu têpo, e quando uiçe q
conuinha.E se eu nesta ocazião fora dotado da uertude da prudência,pudera uzar
como dis .S. Augustinho, prudentia docet quomodo presentia ordines, quomodo
preteritorum recordéris, et quomodo futura prouideas. a prudência emsina de
que maneira se ande Dispor as coizas prezentes: de que modo nos auemos de
lembrar das passadas: e como auemos de preuenir as futuras. Dis cicero. Ut
medicina valetudinis sic viuendi ars. est prudentia. asim como a mezinha he
Remédio, com q se alcança a saúde, assi também a prudência he artte que ensina
a b em o b r a r : e ainda que esta em m im faltaua, nem p o r isso me
dezanimaua, nem menos minha insuficiência me acouardaua: porq como sempre
consideraua, a Deos prezente, e por companheiro
em tão preçioza empreza; estaua serto que auia de suprir o q em m im
faltaua.
Ao outro dia fui a caza do Rey Dom Miguei, e lhe dei conta do que me
tinha sucedido c om o fidalgo Bexari: e sentindo o Rey muito a des cortezia que
me fizera mandou a tres fidalgos de sua caza q fosem em minha companhia a caza
do d i to fidalgo; e lhe dissessem de sua parte, q elle nam obrigaua a nenhum de
seos uasalos a ser christão: p o r em que eu hera hospede no seu Reyno, que se
soubese que se me fazia algum agrauo, que e l l e o auia de dezempenhar: e asim mandaua q me ouviçe minhas palauras, e
as ellas respondesse o q lhe pareseçe: fomos todos a sua caza e dandolhe os
fidalgos o recado da partte do Rey c om outras muitas Rezões que c om elle
tiuerão, se abrandou de tal sorte, que e l l e mesmo me ueio falar mas não quis
consentir que eu lhe entraçe em sua caza, e na partte de fora nos asentamos todos,
e estiuemos toda huma tarde falando: e ia o sf hia espertando (interiormente) c
om sua graça e este gétio, como eu hia uendo no deferente modo com q ia me
falava: e asim como grandes chagas, e feridas, tem neceçidade de iguaês
Remédios, e emfermidade deste gentio, hera grande e dificultoza, e requeria
maior e mais prelongada cura: por q o que esta cativo do pecado, neceçita de
maior graça e mizericordea do Senhor, e assim o fui entretendo
aquella tarde c om prelongada pratica; na qual lhe disse o bem infinito que
ganhaua em se fazer christão, e sem nenhuma comparação maior que todos os bens,
por cuia possessão se deuem dar, e deixar todas as coizas do mundo: e asim o
que recebe a agoa de .S. Bautiszo logo sente grande dosura, e sanctidade, e
huma pureza limpissima liure de toda a macula, e de todo o pecado, e
immundiçia: e se e l l e queria salvar
sua alma por este caminho: auia de deixar todas as suas chinas e idallos
falços, q tudo herão traças dos diabos, c om as quaês lhe q u e r i am leuar
sua alma aos infernos, pera nella como Leões executarem seu furor com Rigurozos
tromêtos, e se e l l e se quizese apartar de todos estes erros e emganos em que
estaua, e se quizesse perfeitam.t e saluar sua alma.
Auia
de crer que não ha mais que sô hum Deos Verdadeiro, ao qual se ordenão todas as
coizas, porque elle he cauza de tudo, e criou o mundo de nada, e enserra em si
todas as perfeições posiueis, e não ha nem pode auer coiza igual a elle: e asim
não ha muitos Deozes, senão hum sô, porem esse Deos que he hum sô; pella
infinita perfeição de seu ser, não he sô huma pessoa: senão tres em tudo
iguais, a quem chamão Padre, Filho, spiritu-sancto, que sam três pessoas
distintas, e todas tres hum sô Deos Verdadeiro: asim que auia de crer q he
spirito-sancto auia de crer q he criador, auia de crer em hum so Deos todo
poderozo, auia de crer q he pay, auia de crer q he filho, auia de crer q he
spirito sancto, auia de crer q he criador, auia de crer q he saluador; auia de
c r e r que he glorificador, e esta segunda pessoa, q, he ô filho, foi
concebido do spiritu-sancto: esta pessoa do filho naseu de Maria a Virgem, e se
fes homem o filho de Deos, pera nos liurar com sua morte, do pecado e desterro
do Çeo; o qual padeseu de Baxo do poder de pontio pilatos, grandes tromentos ate
morrer preguado em huma crus: asim e do mesmo modo que esta j m a g em do
senhor Crucificado que eu trago aqui ao pescoso: este senhor depois de mortto,
Reçucitou, e sobio aos çeos, elle nos hã de dar a gloria, elle nos hã de iulgar
de nossas culpas.
E
se elle queria que sua alma fose ao Çeo, a gozar da uista deste senhor, e de
sua gloria, auia de deixar todos os seus falços idallos e traças do diabo; e
auia de amar de todo o seu coração a hum sô Deos todo poderozo, que criou os
ceos, e a terra, e a este sô auiade seruir, e adorar: a esta palaura pos elle
os olhos no Çeo, e disse na sua lingoa, ah Padre quem me dera ir uer aquelle
Çeo, e quem fas bolir aquellas coizas, o sol, a lua, e as estrellas: nas quaês
palauras ui que ia Deos o hia alumiando, e asim lhe Respondi pelo mesmo
interpetre, que se elle queria hir uer aquelle Çeo, auia de crer em a fê
Catholica, e todas aquellas coizas que eu lhe tinha dito; e se todas as quizese
crer, e as quizese fielmente confesar: e athe o f im firmemête guardar; fazendo
tudo de boa uontade, porque Deos, não me mandaua que eu o trouxeçe por forca,
ao caminho de suasaluação: mas como ministro de Deos, lhe mostraçe o caminho
direito, pera que querendo de sua uontade seguillo, alcansaria tudo, quãto
podia dezeiar, ao q merrespondeo que
elle tinha ouido tudo muito bem: e q por ora as coizas que eu lhe dezia me não
podia Responder, por alem de estarem prezentes os fidalgos q hera tambê a
uizita sua: que elle queria falar comigo sô, e daua sua palavra de me uir
buscar a minha caza, e folgara muito de fallar comigo aquella tarde com cuias
palauras fiquei mui contente, e nos despedimos hum do outro com palauras de
cortezia, dando as mãos que he o uzo entre elles.
Logo
nos Recolhemos a aldeã dando pello csminho mui.t as graças a Deos. Dizendo —
Vos senhor publicastes q não uinheis buscar iustos senão chamar pecadores, non
ueni uocare iustos sed pecatores. o mesmo sois sem mudar de natureza, e
condição e assim creio, q agora estaés chamando Do Çeo, os que então buscaueis
em a terra: mouido desta lembrança uos pesso q como medico de nossas almas,
cureis, e sareis aquelle êfermo, esforceis aquelle fraco, alumieis aquelle
Cego: sô em uos senhor esta o Remédio de todos seos malles, como fonte mançial
de todos os bens. Cheguamos a aldeia logo os fidalgos derão conta ao Rey de
tudo o que auia passado.
O dia seguinte ueio o
fidalgo Bexari, a uizitar ao Rey Dom Miguei, e dar satisfação de si e taês
praticas tiuerão emtre ambos q tantto q acabou a uizita, me ueio buscar a caza
aonde eu estaua, ia a horas de noite: e me dice que elle se tinha deliberado a
ser Christão:
e daquella hora cria, e cõfesaua a sancta fê. catholica, e nella queria uiuer e
morrer, e asim confessaua a Iesu christo por Rey e senhor da gloria, e que n e
l le esperaua salvar sua alma, e gozar de sua V i s t a eternamente: e que e l
l e estaua muito arrependido, e lhe pezaua da descortezia que me fizera da
primeira ues q eu fui a sua caza.
Bendito
seia o senhor; q pera se salvar o b om ladrão, foi uentura sua morrer em huma
crus em o caluario iunto a christo, em tempo que estauão aberttos, e patentes
os tezouros da mizericordia: mas o sol da Iustiça christo, desse Ceo empirio
com os Rayos de sua diuindade, de improuizo acodio com hum auxilio
efficassisimo, alumiando o entêdimento deste gentio; e abrazando lhe a uontade,
cõ qie se coinuerteu em huma hora: e tanto obrou a lux da graça em sua alma que
logo Confessou a christo por Rey e senhor da gloria.
A
maior partte daquella noitte, gastei em cathequizallo, e instruilo nas coizas
de fê, e tudo aseitaua e tomaua com grande uontade: por que elle hera de bom entendimento do milhor dos
gentios que encomtrei nesta Serra Leoa: ficou commigo de que pella menhã se
auia de Bautizar, e o Rey auia de ser seu padrinho, que e l l e lhe tinha ia
falado pera isso.
Pella
menhã ueio logo à aldeã, uestido de nouo ao uzo de sua terra e c om seu
acompanhamento foi buscar ao R e y a sua caza: em companhia do qual uierão a
Igreya com grande festa, tangendo bombalões q he huma casta de instromêtos de
pao q se tange c om dois paos: e outros q se uzão na terra, e a porta da I g r
e i a fizeram grandes festas todo aquelle dia.
E porq emquanto a ferida he fresca, e esta c om
sangue, he mais fácil a cura: p o r em se esta se dilata, custa ao depois mais
trabalho, e he mais dificultoso o Remédio. Como Dis o trágico. — serum est
cauendi tempus in mediis malis. he também condição necessária q o pecador
se aparte primeiro da ocazião: Como fes .S. Pedro, saindo da companhia dos
soldados, que f o r ã o cauza de negar tres uezes a seu mestre, et egressas
foras fleuit amare, porq emquanto se não deixa a ocazião e tropesso, não
pode ser nenhuma obra que fizer agradauel a Deos: e asim falando c om o fidalgo lhe diçe que se elle queria Receber o sancto
Bautismo, pois estaua ia aparelhado pera isso: auia primeiro lançar fora todos
os idallos, chinas e coizas falças que adoraua, e apartarçe da uizinhãca que c
om e l l e tinha o Diabo enemigo de nossas almas, pera que o não pudeçe
mais ofender: por q doutro modo se não podia fazer Christão: ao que e l le
Respondeu muito alegre q não somente se queria apartar delias, mas que todasmas
queria emtregar em minhas mãos, pera q delias eu fizese o que me paraceçe: e logo me mandou emtregar tudo o q elle antes mais
estimaua, e tudo quanto trazia ao pescoço, que e ra uarias castas e de nominas,
e bolças de c o i r o do tamanho de huma mão, e outras de tres cantos, muito
bem feitas por suas traças, e muitos xifres c om muitos lauores: e depois de me ter
emtregue tudo: tratei de o Bautizar e lhe
pus o nome Ventura. e na uerdade emquanto o estiue Bautizando, estando o
Bautisterio em as mãos, não podia ter as lagrimas que de alegria me uinhão aos
olhos: por uer alegria tão grande e uontade, c om que se fazia christão,
estando ao prícipio tão duro e pertinas.
Logo lhe pus humas contas ao pescoço, com sua medalha, c om que f i c ou
muito contente, que he a sua insígnia por onde são conhecidos dos outros
christãos. e cabando de o Bautizar, me pus a dar graças aquelle soberano e
sapientíssimo medico, o qual ueio a terra a curar as emfermidades de nossas
almas: e sabindo ao Çeo deixou em a
mistirioza botica da Igreia, mezinhas saudaueis pera curar nossas chagas, e
pois como Pastor supremo Recolheo aquella ouelha perdida, a curaçe e c om sua
deuina graça a guiaçe, pellos pastos saudaueis deste ualle de lagrimas, ate
chegar a essa morada, de sua eterna gloria.
Depois
de merrecolher na caza aonde eu estaua pouzado: logo os dois gentios por nome
Bebure e outro Bombo, parentes do fidalgo q se tinha Bautizado me uierão
buscar, dizendo, que elles querião executar a uontade, e dezeios grandes q
tinhão de se fazerê christãos, e toda a gente de suas cazas em prezêsa dos
quais, e d e outros muitos gentios, que estauão prezentes, fui quebrando os idollos, e chinas do fidalgo e c om huma faca fui
cortando as nominas, e as bolças, em humas tinha uarias castas de enguentos: em
outras tinha papeis escritos com regras as auessas, q os mandingas lhe tinhão
dado, que são huma casta de negros feiticeiros a quem elles reuerenceiam por
seos padres em outra tinha casta de Gruas: e dentro em os xifres estauão huns panos c om sangue tão fesco, como se o
tiuerão posto aquella hora: de dentro destes xifres. (confesou elle) q o diabo
lhe falaua, e auendo mister alguma coiza logo hia falar c om aquelles xifres e
lherrespondião. os gentios que estauão prezentes, uendo como despadasaua e
quebraua aquellas erronias do diabo, dizião huns aos outros q aquella noite
auia eu de morrer, e os diabos me auião de buscar, e uendo eu como elles falauão
aquillo c om tanta confiança, pus tudo em o fogo diante delles; não deixou esta
acção de seruir de dezenganos a muitos, por uerem ficara eu c om vida e saúde,
e não tinhão aquellas coizas força nem poder pera nada; ficarão os que se
querião fazer christãos muito cõtentes de uerem isto.
Pedio Iacob. os Idalos q Rachel, furtou a seu
Pay Labão, c om intento de Reformar sua caza da idolatria: e dis o texto
sagrado, que tendoos em seu poder, mandou abrir huma coua muito alta aonde os
enterrou, at Me infodit ea subter therebintum, quae est post urbem sichem. em
boa theologia poderá iacob. desfazer estes idallos e aplicar o metal, ouro,
prata, e vestidos, a qualquer outro uzo: mas f o i prudente, e acautelado, em
os emterrar, porque nam ficasem prendas, e lembranças do pecado, as quaes dão
punhaladas em ceco em huma alma matando a c om torpes penssamentos que se
aualião e condenão por obras ainda que f a l te a execução = aqui fis huma
pratica aquelles que se querião fazer christãos: que primeiro que auião de
atalhar danos, e males semelhantes dando perpetua sepultura não sô aos Deozes
falços mas ainda as memorias e prendas, dos idallos que adorauão: empregando
todo seu amor em hum sô Deos, todo poderozo que c r i ou os Ceos
e a terra pedindo lhe com ificazia, que os fauoresa, aiude, e lhe dei sua graça
e amizade. = por meio do quaês exercícios muitos se tornarão a Deos: e asim fui
Bautizado depois disto, a muita gente e a todos os parentesdo fidalgo, e asim
huns; Como outros forão trinta e cete pessoas, q c om uinte e duas que ia tinha
Bautizado, f a z em çimcoenta e nove, que Bautizei nestas terras do Reyno dos
boiloês.
Pudera fazer aqui huma
relação muito larga, do que quebrey de chinas, e Idallos, e muitas uarias
coizas que estes gentios adorauão: porque cada hum delles adora o que quer, e o
q o diabo lhes ensina;
muito dezegei de asistir, muito tempo nesta terra; s em embargo do muito que
nella tinha padecido de m i z e r i a s : mas não auia huma pessoa q me pudese
dar huma esmolla: nem huma migalha de arros porque o não tinhão pera si: e
chegou tanta a minha neceçidade que da farinha que leuaua pera hóstias, passei
muitos dias sem ter outra coiza p e l l o que passados quarenta dias de minha asustêçia, tratei de me tornar a
embarcar pera outra partte. e estando ia despedido do Rey e dos mais
christãos, chegou nouas a aldeã que o
fidalgo, que eu tinha Bautizado por nome Boayentura: hera mortto de huma doença
que lhe dera: aqui me ficou motiuo grande de dar graças a Deos, auallando a
este uentura, por uentura ditoza, e feliçe, pois aos oito dias, depois de se
fazer christão, o leuou Deos pera si, quam festeiada seria sua alma em os
Çeos, pois mais estimão osa Anyos, a conuerssão de hum pecador: que a
perseuerança de nouenta e noue Iustos. — fui logo a sua caza acompanhados de
alguns christãos e o amortalhamos e troxemos a igreya e nella o emterrei com
todas as seremonias que se custumão fazer aos christãos, c om o q ficarão mui
edificados, e contentes de uer como aquillo se fazia.
E
estando ia despedido pera me recolher chegou ao porto huma canoa com gente da
Serra Leoa na qual uinhão dois christãos, e chegado a mim, e depois de nos
saudaremos a seu modo dado as
mãos huns aos outros, lhe preguntei daonde erão, e perra aonde hião: ao que me
responderão q asistentes na serra Leoa, e que hião pera suas cazas: E como
todos meos dezeios herão dar m.t o s passos adiante no caminho, e seruiço do
Senhor e conuerssão das Almas: e uendo que se me antissipaua o ifeito, ao
dezeio, pois Deos me abria o caminho por onde auia de caminhar, e as
embarcações me buscauão a m im antes de eu as procurar, pois mal eu tinha
pronumçiado pella boca, que queria ir em sua companhia, no mesmo tempo todos c
om igual alegria disserão que sim: e os mais que não herão christãos mostrarão
tanta uontade, q me fazião acreçentar a que eu tinha; e estando pera ir c om
elles me fui despedir do Rey desta terra dos boyloês, Dom Miguel e dos fidalgos
de sua caza: e dando-lhe conta de minha ida, procurou c om rezões tirarme deste
pensamento que tinha de acometer coiza tão árdua, lembrandome quam pouco auia
sahira de tantas mizerias, e perigos: e quererme auenturar tão cedo a outras
maiores parecia coiza temerária: ao q eu lhe respondi que nada disso me
emtresteçia, antes daua m.t as graças a Deos por asim o premitir: e tornamdome
a reprezentar os trabalhos grandes que auia de padecer, pois me hia meter no
coração da Serra Leoa, aonde todos os que entrauão naquelle Reyno, se escapauão
com uida hera por milagre.
E não fazendo cazo de todas estas rezões e uendo
q ao prezente tinha caminho aberto pera poder dar a execução huns dezeios
grandíssimos q sempre tiue, lancey mão desta boa ocazião, e bem hera, que pois
Deos me daua
saúde, e me liurara de perigos tão grandes dando me tantas uezes uida, em tempo
que eu não fazia ia cazo delia, agora a soubesse aRiscar por seu amor e
seruiço, oufereçendo me a perdella, que então seria ella bem ganhada quando só
p e l l o seruir fosse perdida.
Capitulo. IX.
de como me embarquei
pera a Serra Leoa e do q nella me susedeu
Embarqueime
em a canoa e fomos pello Rio asima que corre pello pe da Serra Leoa e tendo
andado huma noite, e parte do outro dia, cheguamos a hum porto aonde estauão
quatro cazas de gentios, e saindo em terra ao lugar aonde estauão as cazas, mal
tinha cheguado me ui rodeado e sercado de muitos gentios, molheres e meninos,
que como admirados me uinhão a uer preguntando cada hum o que hera seu gosto e
uontade, eu a tudo mudo, e alguns me tinhão por tal, e uendome naquelle estado,
como quem em outros semelhantes se tinha ia achado; nisto chegarão os dois
christãos que c om migo vinhão na canoa, estes como sabião a lingoa, elles lhe
forão dizendo quem eu hera, todos
estauão pasmados ouuindo o q deziam e respondiam que eu lhes uinha fazer algum
grande mal: e que alguma roina grande auia de suceder na sua terra aquelle anno
e q lhes auia de faltar o mantimento e auião de morrer de fome: Logo punhão
os olhos no abeto de burel que eu leuaua: e dezião huns pera os outros que eu não lhes parecia português no trajo:
nem elles sabião de que nação pudeçe ser: por ia mais uerem outro semelhante e
uendo ser aquillo huma nouidade pera elles tão grande: forão dar conta ao seu
maior que morava fora daldea; o qual sahio l o g o c om alguns homes (ainda que
poucos) mas armados com seos arcos e coldes, quando ui uir aquella gente com
tanta fúria, aparteime de todos, e uirando me contra elles, pus os olhos no Çeo
e disse, ponde Senhor em mim os de Vossa mizericordea: adiantei-me de todos
e fui receber os que uinhão, c om a angustia e dezeioque nosso Senhor sabe,
neste passo correrão os que com migo uinhão dizendo algumas palauras na sua
lingoa com toda a humildade possiuel, e se lansarão a seos pés, e leuantando-se uierão a mim, e disserão,
padre uamanos pera a canoa e sigamos nossa uiagem, por que dizem, que todos
auemos de morrer se logo não despeyaremos a sua terra: e asim me leuarão pera a
canoa, e fomos seguindo o rio, p e l l o pé daquella tão alta e medonha
serra, triste pela muita obscuridade que nella ha, cauzada das grandes neuoas q
ordinariamen., e ha: não ui em toda esta serra aldeã alguma mais q aonde duas
cazas, meia legoa humas das outras, terra
na uerdade sô pera animaês ferozes: por ser de tão espessos bosques, e altos
matos e se alguns gentios uiuem nella uiuem como os mesmos animaês: por que
andão nus, e dorme em a terra, as cazas são de folhas de palmeira e não morão
senão metidos em matos maês serrados, pera que nimguem saiba delles, ocultão as
estradas, e tapão os caminhos; e indo seguindo nossa derrota cheguamos em
breve tempo ao porto aonde morauão os que me leuauão na canoa, e chegando hü
dia amanhecendo, sahimos em terra e emtramos no lugar, que teria cinco ou seis
cazas, e falando por chalona que leuaua, a alguns dos que ali morauão: me ui
com arta pena, e sentimento, por uer a gente tão incapas de se poder fazer
fruto em suas Almas; e serem todos tão brutos, e e tão serrados emtendimentos,
que nenhumas obras, nem palauras fazião em elles mossa.
E estando asim de
sentim.t o chegou a mim hum homem branco, com os olhos alegres, e daua mostras
de alegria por me uer e tomandome a mão disse: Padre quem uos troxe a esta
terra tão longe, e tão remota e selutaria: quando eu ouui falar português em
parte que menos o esperaua; faltou me a uós pera lhe responder, e cheio de alegria;
fiquei sem ella pera lhe poder falar, e ainda agora cuido bastarão poucas palauras
pera dar a entender e sentir, o que eu naquelle breue tempo sentiria, porque as
coizas que chegão a Alma, mais se sentem sem contalas, do que com dizellas se
emtendem, emfim abrasou me este português, dizendo que não temeçe, pois uiera
dar aonde elle estaua, despedio os mais que com e l l e uinhão: e ambos iuntos
nos fomos à caza em que elle moraua, e iunta toda sua familia me preguntou como
eu fora dar naquelas partes, e que coiza me leuaua a ellas: dei lhe conta de
algumas coizas q passara, e do fruito que tinha feito nas almas, nos Reynos que
atras ficauão, e asim como eu lhe hia contando minha uida e sucessos, elle hos
hia explicando a toda sua gente, e maês homens, que prezentes estauão; estauão
todos pasmados de ouuirem mas de tudo o q eu lhes disse mostrarão maês espanto,
como quando contou ser eu Padre saserdote dós christãos: e que de meu aBetto
auia muitos, asim em Portugal, como em muitas parttes do mundo: Guio offiçio
hera uiuer de esmollas pedindo de porta em porta pello amor de Deos, sem por
isso deixaremos de ser amados e estimados dos princepes e Reys do mundo, antes
heramos de todos tratados com cortezia e respeito: e que muitos auia q deixauão
riquezas, titallos, e estados, sô por seruirem a nosso Senhor naquelle homilde
aBeto, e apos estas coizas, outras semelhantes: não apartauão todos de mim os
olhos, nem falauão palaura alguma, por não enterromperem as que o português
falaua, q tanto folgauão ouuir, e como
hera gente que estaua debaixos do domenio e mando deste português, por isso
consentião q eu ahi estiuese, e fazião tudo o q elle lhes mandaua:e
uirandosse pera mim, disse Padre eu estiue ia muito tempo em Portugal: e mais
deuagar espero falar com Vossa Paternidade, por que Deos he q o trouxe a este
lugar, e que me manda vizitar: agora contei a esta gente que coiza são frades,
e portanto estão asi pasmados :=por hora não tenho lugar pera mais, descansara
Vossa paternidade esta noite por que amenhã tenho hü negocio q tratar c om
uossa Paternidade, de grade importância, pera o nos auemos de achar sós, porque
este negocio deuo de tratar de ueras, e antepor a todos os da uida, gosto,
honrra e fazenda.
Pareseu
me este home em as praticas que c om migo teue muito auizado: e muito lido, por
que as rezões que daua herão de homem entendido, alem de ser muito cortezão.
Leuanteime
e sahi fora de caza busquei aquelles homens que com migo vierão, e tomando a hum de parte lhe preguntei, que
home português hera aquelle que me leuou a sua caza: e me respondeu que hera
filho de portugal, e que passaua de uinte annos q moraua ao pê daquella Serra,
em sitio tão escondido, e ratirado, pera q nimguem soubesse delle, o qual ueuia
a ley dos gentios da terra, e tinha noue molheres e muitos filhos, e por
serttos sucessos que tiuera em sua terra uiera fogindo delia: daqui não passo
nem eu direi mais, por que menos palauras que estas bastão, pêra os bem
emtendidos; que ha coizas q ainda que seia bem relatallas se não acha modo pera
dizellas.
E ia a este tempo, vinha o português preguntando
aonde eu estaua; e declarando iuntamente attodos, quanto estimara minha vinda,
e o mostraua na alegria
com que o afirmaua: — tornamonos a iuntar, e indo falando commigo, me disse que
eu fora o primeiro saserdote que cheguara aquelles parttes, e que confiaua em
Deos dali por diante, não lhe faltar uentura, pois a sua fora tal que em seu
tempo, lhe uiera a que tinha prezente: pediume quizesse aseitar sua caza pera
nella morar, os dias que ali estiuesse, que dado que a mais gente que nella
moraua fossem gentias, a uontade com que todos a ofereçião hera christã,
agardeçi lhe c om boas palauras, as suas, dizendo que sim, q pois naquella
terra achara hum português não hera b em o deixasse. Mostraua este português ser de Idade de cincoenta annos, na condição
manco como todos o gabauão, de rosto alegre, na pratica graue, nos meneos
modesto, e finalmente para representar hü português perfeito, só lhe faltaua o
uiuer como verdadeiro cristão.
E
tornados pera caza me deu conta de toda sua uida, e q auia mais de uinte annos ueuia naquelles mattos, por sucessos da
fortuna: e que no descurço de todo este tempo nunca tiuera, agora que Deos
lhe fizera merçe queria fazer huma confissão geral de sua uida: dizendo isto c
om tanta alegria, que nella daua mostras e resplandecia a que tinha nalma, e
coração: e asim dezia Padre em quanto não tiue aqui a uossa paternidade em
minha caza, ueuia nella receozo: mas agora contente e descançado, pois nella
tenho muros que a guardem, e em Vossa Paternidade soldados que a defendão: e se
Vossa Paternidade me quizer fazer esta merçe tão grande de se deter quatro dias
nesta terra, eu me obrigo a o mandar leuar c om a minha gente aonde Vossa
paternidade quizer ir: porque por hora me quero aproueitar da merçe que Deos me
fes: ao que eu respondi, que não só quatro dias, mas que todos quantos fossem
necessários.
Emtre
algumas praticas que em a noite tiuemos, o que mais a cada passo o magoaua,
hera, as saudosas lembranças do nosso Portugal: e cheguada a menhã disse que se
queria confessar pera o q armamos logo fora de caza huma ermida de madeira toda
forrada de esteiras, que as fazem nestas parttes muito boas, e b em lauradas,
na qual armei hum altar, e depois de se confessar disse missa, e lhe ei a comunhão:
no mesmo dia a tarde escolheo huma
molher das que tinha para se receber com ella, a qual Bautizei, e lhe pus nome
Maria, e os cazei a ambos e depois de recebidos, ficarão tão alegres, e
contentes, como se deixauão manefestar, nas lagrimas que derramauão de seos
olhos.
Fis
dilação neste sitio de dezanoue dias, nos
quaês cataquizei a toda a gente desta caza que forão vintacete pessoas, e todas
Bautizei; dando por bem empregados meos passos, e a entrada que por este r
i o a dentro fis, e asim não sesava de dar graças a Deos, pois me leuaua a
parttes tão remotas pera leuantar a hum cahido, de quem o diabo hia ja tomando
posse, e emlodando em uiçios, e torpezas; querendo o sogeitar a ley dos
gentios; mas este se se não leuantaua hera porque lhe faltaua menist[r]o; que
lhe desse a mão pera se leuantar: Mas
oie nestes nossos tempos, ueio com meos olhos, tantos portugueses, metidos
pelos mattos deste guine, tratando com negros, q ainda que no bautismo são
christãos de tal sorte uiuem como se fossem os mesmos gentios, e peor porque
passão uinte e mais annos sem se confessarem tão esquecidos de Deos e de sua
saluação somente emgolfados em o trato dos negros.
Tratei de me despedir deste português, o qual me
mandou dar canoa gente, e auiamento pera o caminho: e despedindose de mim cõ as
lagrimas nos
olhos: dizendo que os malles pera elle, e os trabalhos; sempre lhe forão de
dura: e os bens que logo lhe passauão, e ia que pera elle lhe passaua com tanta
breuidade este bem tão grande e sua fortuna lho não queria deixar lograr por
mais tempo:me pedia lhe deixasse huma carta de minha mão, pella qual se algum
português: ou religiozo de meu aBetto ali cheguase em algum tempo, por ella
conheçesem não ser fingida a uontade que tinha de seruir a todos: e por ella
soubesem, ser elle, e toda a gente de sua caza Christãos: a qual eu logo fis, e
dando lha na sua mão me abrassou quaze pellos pés, e c om os olhos no chão, me
dise, que ficaua tão contente, como obrigado e catiuo, do termo que tiuera com
elle, o qual o tinha feito tanto meu efeiçoado: que em tendia faria treyssão ao
amor, se com aquellas mostras delle, mo não manefestasse:agardesilhe quanto em
mim foi esta boa aparecia, porque conhecia que herão todas suas rezões naçidas
do coração. — e despedidos me embarquei
em a canoa, e tornamos pello mesmo Ryo abaxo, e por Rezão do uento, em tres
dias e duas noites, uim outra ues emtrar no Ilheo dos ingrezes.
Capitulo: .X.
do que me sucedeu no
dito ilheo, tanto que nelle emtrei: e como aqui me encontrei com meu
companheiro: e de alguãs coizas notaueis q nesta terra ui
E
pera que de todo não tiuesse huma hora de quietação, e sempre andasse huma Roda
uiua: tanto que cheguei a caza dos Ingrezes, nella achei Dois portuguezes dos q custumão uiuer nestas partes, em companhia dos
negros, tanto a sua uontade, como contra a deuina: que muitas uezes a
liberdade he cauza de grandes atreuimentos: estes portuguezes custumados a
andar metidos pellos matos, negociando com os negros, tinhão uindo a esta caza
dos ingrezes, a uender o marfim que tinhão iunto: trazião c om sigo cinco negros pera os uender, e como estaua posta e
publicada huma excomunhão do reuerendo cabido de Cabo Verde, pera que nenhum
português uendoce negros aos ingrezes, nem a outros hereyes.
Tanto
que me uirão naquellas parttes, suspenderão a uenda e disserão aos ingrezes que
não querião vender os negros, os
ingrezes que sabião da excomunhão, se leuantarão em uozes contra mim, dizendo
que eu lhes uinha empedir o negocio a sua caza; que os portuguezes estauão ia
pera lhes uender os negros e tanto que me uirão não quizerão: que eu uisto
estar em sua caza lhes auia de dar licensa pera lhos uenderem: e por mais
escuzas q eu lhes dei, dizendo, que não estaua na mão dar a tal licença, não
auia remédio de quererem se [?] aquietar: antes se consultauão todos que se por
b em o não quizesse fazer, que o auião leuar por mal; grandes são
verdadeiramente os trabalhos de quem anda metido entre Ereges, e gentios.
Julgue cada hum agora a pena que eu aqui teria
uendome metido só em hum ilheo: aonde não auia mais caza que que a destes
Ereges: Cuidando eu que neste sitio poderia descansar algum pequeno [tempo] dos
trabalhos passados: dos quaes se ouuesse de escrever as miudezas, e ânsias que
passei: as procelozas tempestades que me combaterão: os perigos de que escapei:
as calmas que passei tão grandes, trabalhozas e insofriueis, quando os
queixumes daquelles que cada dia as passão, nos dão verdadeiro testemunho
delias: e finalmente tudo quanto nestes trabalhozos caminhos padeci: c r e i o
outro tanto tenpo não bastara somente pera se lerem: Mas baste saber que os
iuizos de Deos são marauilhozos: elle só sabe a rezão de minha
derota, não t e r o f im que eu tanto deseiaua, tendo me uisto tantas vezes tão
p e r t o da morte, e l l e o por que f o i seruido de me liurar de tantos
perigos o sabe, a elle seião c om tudo dadasgraças infinitas.
E
como Deos nosso senhor ia de longe me guiaua premitio fosse toda esta
inquietação pera maior bem, porque na noite que se seguio: tomei de parte aos
portuguezes: os quais forão commigo a caza em que eu me recolhia e contritos se
confessarão, dando muitas graças a Deos pellas merçes que delle auião recebido:
e com rezão pois não ha coiza que mais emduressa o coração de Deos que a
ingratidão: nem que mais o abrande que o conhecimento dos Benefícios recebidos:
não f o r ã o pequenos, os que estes portuguezes receberão, pois uierão achar o
remédio pera sua saluação em parte onde menos o esperauão, pera se confessarem,
o q auia muito tempo não fazião, e asim o fizerão com tanto sentimento, e
tristeza, da memoria e lembrança dos malles passados: que f o r am cauza para
se regarem com suas lagrimas: que ellas puderão ser eternas testemunhas desta
uerdade: que e m f im so lagrimas sabem ser as uerdadeiras das angustias
passadas: não disse missa pera lhes dar a comunhão, porque não estaua em sitio
pera isso: mas assim muito alegres se despedirão de mim, e se embarcarão em
suas canoas leuando consigo os negros que trouxerão.
Neste
passo ficarão os ingrezes quaés outros Leões rayvosos, Dezeiozos de executar o
rigor de sua ira, e soberba: aqui não tiue outro remédio mais que lançar mão da
humildade a qual fas os homens semelhantes aos Anyos e aos Sanctos: e a soberba
de Anyos fas demónios: nesta uertude conheci tinha armas mui seguras para me
defender da soberba de tal gente: porque Contraria, Contrariis Curantur. Com
hum contrario, se cura e remedeia, outro contrario: c om actos de humildade, se
remediarão malles da soberba: e assim dizendo com dauid. paratum cor meum
Deus,: paratum cor meum. uedesme aqui senhor aparelhado pera cumprir uossa
uontade: ex aqui meu coração disposto pera o que lhe ordenareis.
E asim fui aonde os ingrezes estauão, e tãoto se endinarão contra mim;
que sempre cudei ali fosse meu ultimo f i m : (Mas ainda que o tenhão todas as coizas da
uida, nao notem aquellas que uão fundadas no amor, e seruiço de Deos.) e emtre
as muitas razõesque me derão, foi
dizerme que l o g o me sahisse daquelle ilheo, e que se logo o não despeiava me
auião mandar lançar na terra que ficaua de fronte, a qual hera de gentios maos,
que não consentem entrarem brancos no seu Reyno; aonde a natureza pos a mais
bruta gente, e menos domestica, por serem faltos de entendimento e alheios de
rezão: e uendo-me tão apertado de todas as partes dezeioso de me uer f o ra
desta gente: que as Rezões que dauão pareçião homens alheios de seu Iuizo, e
entendimento: mas não he muito que os que de Deos e da saluação de sua alma se
apartão que as potencias delia em serto modo se apartem e abzentem também delles.
Muitas uezes he auentura curta aquelles que mais a pertendem, e por lares
alheios a buscão, a estes comumente lhe falta: mas quem não pertende outra mais
que de seruir a Deos: parece que elle mesmo lhe antesipa o ifeito ao dezeio:
porque estando eu inditriminado no que faria, e baralhado em penssamentos,
confuzo em o maior mal; m e mostrou Deos e me trouxe o maior bem, passando de
hum extremo de pennas a outro extremo de alegria; porque no dia seguinte amanhecendo de ianeiro Be[s]pora da ipiphania chegou huma
barca ao ilheo, na qual uinha meu companheiro frey Saluador de Taueiro: que no Ryo do Nuno me tinha
delle apartado:
e auia oito mezes não sabíamos hum d o outro: e tendo noticia de sua uinda me
fui iunto do mar a recebello: e abraçandonos hum ao outro: c om as lagrimas nos
olhos cauzadas da muita alegria: pois c om sua uinha não-grangeaua o bem de
sahir deste ilheo: mas grangeava colher o dezeiado fruto: esperitual pasto: e
recreação, e aliuio de nossas almas.
Não
ha duuida q alcansar em semelhante ocazião, tão grande bem foi promissão
deuina: e b em se uei serê meos trabalhos de tanto ifeito; quanto foi o z e l
lo e uontade c om que comesey esta missão, — Recolhemanos ambos na caza aonde
eu estava e nella lhe dey conta de meos sucessos: e elle a mim do grande fruito
e seruiço que a Deos tinha feito em a pouoação do Rio do Nuno, e em seos Reynos
mais uezinhos na primeira sahida que fizera a aldeã de gilbonto aonde
conuerteu, e Bautizou Cincoenta e quatro pessoas: a segunda saida que fes f o i
á aldeã a onde o R e y grande moraua e converteu muitos a fè de christo,
Bautizou neste lugar a vinta tres pessoas:nobres aqui mesmo Bautizou a hum
fidalgo muito grande. Rico, e muito poderozo, o qual tinha mais de sasenta
homens de sua guarda emtre escrauos e criados, o qual não tinha mais oficio q andar pelos caminhos apanhando negros, e
uendendo aos brancos, este tinha por nome farim, Salim; mas os portuguezes
lhe chamauão salteador, a este Bautizou e lhe pos nome Francisco, sendo dali
por diante tão deferente na uida q muittos a seu exemplo se tornarão a Deos e
se Bautizarão. — não faltando numca e todos os dias c om a doutrinaaquelles ia
Bautizando: e na pouoação com particular cuidado, assistindo c om missa
praticas, e nas conffissões aos christãos: daqui se embarcou pera as partes do
de ponga que fica da partte do sul, aonde em seus Rios gastou tres mezes, com
grande fruito na conuerção dos gentios aqui Bautizou a muita gente: aonde tendo
noticia que eu estaua no ilheo do Tasso,
ao pe da Serra Leoa; dezeiozo de se emcontrar commigo; como eu penozo de não
saber nouas delle: mas por sima de tudo não posso negar, que em algummodo fui
eu o mais ditozo: o dia seguinte que hera da Epiphania nos conffessamos
dissemos missa: no mesmo dia Bautizei a duas pessoas, que auia ia muitos dias
tinha catechizado; q com as muitas que tinha Bautizado dentro da mesma caza em
que moraua fazem quarenta e seis pessoas: nam Relato a muita gente portugueza
que aqui mesmo confessei: no dia seguítte nos embarcamos na mesma barca, que
hera de portuguezes: pera sahiremos destes Rios e lançarmos pella Barra fora:
mas antes que trate dessa nossa uiagem, he bem dar aqui huma breue noticia das
coizas que ui com meus olhos nesta Serra Leoa.
Hestes Rios da Serra Leoa, principião e emtrão
por huma barra, aonde esta hüa Rebeira de agoa doce, a que chamão, à anguada,
por Rezão de que todas as naos que passão pera a mina, e pera a india oriental,
e pera outras parttes, fazem aqui auguada, e se refrescão, pello que este porto
he sabido de todos os nauegantes: no qual ha humas grandes pedras, nas quaês
todos os cappitanês das Naos, escreuem nellas seos nomes, deste lugar principia
a Serra Leoa e emtra muitas legoas pella terra a dentro: do mesmo lugar emtrão
çeos Rios, os quaes se repartem em muitos braços; de muitas Legoas dilatados;
em toda a Serra e destrito de seos Rios, ha grande multidão de casa, e muita
uariedade de animaes: como são, bufaros: porcos: gazellas: e são tanttos os
bichos pessonhentos que poem espanto: aqui
ha huma casta de cobras, a que os negros da terra chamão (irans) as quaes são
tão grandes, q comem hum
vaca inteira ate a cabeça, e não podendo emgolir a cornadura, buscão hum lugar
aonde não aia fromigas, e ali se p o em athe que apodressa a cabessa da uaca, e
a deixa ali ficar: e esta casta de cobras as comem os negros, e guardão em
postas ao fumo: não fallo na mais cantidade de cobras que nestas parttes hà, os
muitos tigres e onssas, q matãomuitas uezes aos mesmos negros da terra, ha
uariedade de pássaros, diferentes na espeçia, e muito fermozos: a muita
cantidade de bogios, que com os negros comerem aos que podem apanhar, não há
Remédio poderem se liurar delles e asim lhe fazem grande estrago no arros que
semeão: alem destes bogios ha outra casta deles grandes deferente [na] casta
andão ordinariamente em Dois pés, aos
quaês chamão dari, e muitas uezes na estrada Remetem com a gente, ha nestas
parttes grande cãtidade de fromigas a
que chamão framengas estando eu Recolhido em caza de hum
Religiozocapuchinho frey agostinho de larronda, pellas onze horas da noite
entrou dentro em caza tanta cantidade de fromigas, q num instante emcheu toda a
caza, e nos cobrio a todos, e não ouue mais Remédio que largar a caza e
poremmonos todo narrua, pello que custuma a gente ter fogo toda a noite no meio
das cazas, pera com elle atalharem as fromigas; e as cobras que de noite lhe
entrão: alem destas ha outra casta a modo de fromigas brancas, as quaês no nome da terra lhe chamão bagâuága, as quaes fazem pellas estradas e pelos
mattos tão altos montes da terra, como grandes cazas por dentro t em seos
Rapartimentos, e tem seu Rey, e faltando-lhe o rey se uãopera outra parte;
estas comem as madeiras das cazas e em breue tempo dão c om ellas em terra,
quem quer ter alguma coisa em sua caza pendura no ar e asim mesmo as arcas, e
tudo o maes; porque em huma noite que ellas emtrem demtro, não deixão coiza
inteira.
A
coiza que me cauzou maior admiração e eu com meos olhos ui. foi que uindo huma
nao ingreza, a tomar a cargua de marfim,
na caza que aqui tem nesta serra, a minha uista embarcarão Vinte, e oito, mil
dentes de marfim, e ui pezar muitos dentes que cadahum pezaua quatro aRobas, e
alguns ui q chegauarão a pezar seis aRobas, e outros a m.t o menos comforme
herão: todos os anos uem hüa nao buscar outra tanta carga, Iulguem agora por
aqui o que se matarão de eLephantes todos os annos, por que cada hum não tem
mais que Dois dentes, e pera se fazer a dita contia, he nesesario matarem cada ano quatorze mil, eLephantes: não fallo
no marfim que comprão em outros Ryos de guine, aonde tem cazas feitas os quaes
carregão em outras naos: e os framengos também comprão, nas escalas que fazem,
pellos portos destes R i o s : pello que são maes os Elephantes neste guine do
que as uacas em toda a Europa. todas as pessoas que negoçeão por estas parttes;
fazem seu negocio com grande trabalho, e Risco de suas uidas: e c om darem
dadiuas grandes aos Reys das terras: e outras aos fidalgos das aldeãs, nem c om
tudo isso podem contentallos, porque ia em eles he grande sua maldade: — no anno de cincoenta e noue, se aiuntarão
quatro centos negros, huns [com] flexas, outros c om azagayas, e adargas, que
são as armas de que uzão, e todos iuntos puzerão fogo a esta caza dos ingrezes,
a qual estaua posta no Reyno da Serra de Leoa, e lhe Roubarão muitas e boas
fazendas, que nella tinhão, e asim mizerauelmente se v i e r ã o por no ilheo
em que o i e morão, athe que de ingalaterra os tornarão a prouer do que lhes
hera nessesario.
O
mesmo fizerão o anno passado de seis centos e sasenta e tres, a caza dos
framengos, q estaua dentro nestes Rios da mesma Serra, à qual puzerão fogo, e
lherroubarão as fazenda que nella tinhão: pello q tratão agora os ingrezes de f
a z e r em cazas de pedrae cal c om artelharia pera se defenderem: e ha poucos tempos, q os mesmos negros
matarão a mais de quinze portuguezes, em o sitio do de Ponga, que f i ca daqui
perto pera a partte do norte.
E
se a estes que que lhe trazem o ferro, pera cortarem os matos, e coltiuarem a terra, pera semearem seu
arros, pois não t em outro mantimento: e lhe trazem a Roupa pera se uestirem,
tratão desta sorte, e c o r r em tantto Risco, Iulge cada hum agora que fara os missionários que somente seruimos de
lhe derribar suas chinas, e quebrar seos idallos falssos que adorão, e
tirallos do E r r o e emgano em que uiuem: — não ha duuida que p o d e r em os
missionários c om os trabalhos de guine: e
terem animo pera asistir em terras abitadas do diabo: he que a clemência
deuina mostra, a muita que c om nosco tem, liurãdo nos a cada passo, de tão notaueis
e iuidentes perigos, pera mais se seruir de nos.
Emtre
as muitas fruitas que nestas terras ha, ui
humas figueiras de que ha cantidade e estão os matos cheios: no nome da terra
lhe chamão (Bananeira), e ouui a m.t o s chamar lhe, Pomum paradysi, cuio
fruito afirmão muitos ser o que f o i uedado a nossos primeiros Padres, e desta
openião he sancto Agostinho e graues autores, e se iulga por mui prouauel
porque alem do f r u i to ser excelente, bastão duas folhas desta aruore, pera
cobrirem huma pessoa da cabessa, aos pés, e muitas são tamanhas, e maiores que
dois homens; e isto he o que Dis o génesis, aiuntarão folhas de figueira, e c o
b r i r am se com ellas, não d ã o no anno mais que hum so Ramo delles, que
pouco mais ou menos, tera oitenta, ou hum cento, pegados todos a hum tallo
grosso em cuio remate naçe huma flor Roxa, que se quer pareser c om pinha,
sendo os figos maduros, logo a figueira çeca, e do pe delia nasem outras sem as
plantarem: ha destas figueiras duas castas, humas que chamão da terra e t em os
figos do comprimento de hum p a l m o : — outras a que chamão de Samthome, t em
os figos do tamanho de meio palmo, os quaes cortandoos c om huma faca, quantas
talhadas fizeram ate ao pé, em cada huma delia fica huma crux, com a imagem do
Senhor — Crucificado: de cuias aruores ha cantidade em esta Serra Leoa, e em
toda terra firme de guine, e também ha muitas delias em Cabo Verde, na Ilha de
Santiago, e nas mais ilhas suas Vezinhas.
Capitulo
XI
De
como me embarquei: e meu Companheiro pa os rios Dos cárceres: e de que Obrei
por tempo de quatro mezes
Embarcados na mesma barca a qual hera de
portuguezes, tiuemos por nouas que no porto, da auguada estauão duas naos
olandezas foinos forsado esperar pela noite, pera sahiremmos por parte, aonde
não desem de nos f è : amanheseunos na costa da dita serra: na qual cheguamos a
hum p o r t o : em o qual cõ muito trabalho sahimos em terra; por ser esta
costa muito braba, e aRiscada; pelo que molhados das grossas hondas sahimos em
a praya: e sobindo por huma serra asima, emtramos em huma aldeã, na qual moraua
hum negro Rico e poderozo, o qual hera irmão do Rey grande daquelle Reyno: ao qual chamão (Caraba) este nos
Recebeu, e agazalhou com grande uontade, a mim, e a meu Companheiro, e a todos
os mais que com nosco uinhão; que sempre
cuidamos obrasemos nesta aldeã, muito no seruiço de Deos a sombra deste fidalgo
tão grande: por uermos nelle a liberal uontade, e animo charidozo, c om que se
oufereseu, pera quanto nos fosse nesesario.
Cheguada
a noite fizemos com elle todas as diligencias que pudemos, e forão possiueis
fazeremçe, eu por huma parte; meu companheiro por outra; não ouue Remédio abrandalo nada, do herro, e emgano em que ueuia;
Vzamos da desimulação que semelhante negocio Requeria; ficamos ali aquella
noite na qual nos agazalhou abüdantem.t e c om os groseiros mantimentos que, a
t e r r a dà de si:c om tudo não deixamos de notar esta charidade em hum
gentio, uendo a pouca que hà emtre alguns christãos, de quem com Rezão pudera
formar minhas queixas: mas porque fazello sera ir fora de meu intento, pasarei
adiante c om a magoa, que outros de meu aBeto também passão:tanto que
amanheseu, fui c om meu companheiro, e com a xalona que leuauamos: demos uolta
a toda a aldeã, e tendo nossas praticas c om a gente principal delia, uimos sua dureza, e pertinazia, e quam
pouco capazes herão pera Receberem nossa sancta fê, por estarem tão entregues
nas garras do Diabo: e tão aferrados aos emganos e traças, que elle mesmo lhes
ensina: porq foi esta a Aldeã em que uimos a maior cantidade de chinas, de
deferentes castas humas armadas cõ campainhas, bonecos, figuras de pao
cubertas com uolorios, que he o d r ° da terra, a estas fazem suas cortezias, e
adorações lhe ouferesem manilhas dos braços, pratos de estanho, e uarias
ofertas que tudo ali lhe poem: e a maior cantidade de chinas, são humas
cabaninhas pequenas forradas com huma, ou duas esteiras, f e i to demtro seu
altarzinho, com a mesma esteira e soubre e l l e hum Remque de seixos do
tamanho de hüa mão, cada qual dos parentes tem ali sua pedra: destas castas de
chinas de pedras, e de paos, he, a maior cantidade que ha neste guine, uzando
sempre em primeiro lugar, as chinas das panellas, c om sangue de galinha, e com
sangue de gado e outros animaês: o lugar em que costumão por estas chinas he
nos caminhos, á à emtrada, e no meio de suas aldeãs: e cada hum as t em em sua
caza, e acabeseira de suas camas.
E tendo gastado a maior partte do dia, em notar,
e uer a gente desta aldeã: nos tornamos
a uoltar pera cazas do fidalgo (caraba) e não no achando em caza, lhe emtramos
dentro e uimos uarias figuras, e ydallos de pao e suas campainhas, que as
tangia quando fazia suas adorações: e querendo nós deRibar lhe estes idallos,
em os quaês adorava ao diabo, que lhes leua e guia as almas pera o inferno:
acodirão os portuguezes q com nosco hião, pedindonos e tendonos mão que se tal
faziamos seria total Roina sua, e
nenhü delles escaparião com uida, antes nos fossemos logo embarcar: e asim
elles, como nós, nos sahimos daldea, e tornamos a embarcar, c om o mesmo
trabalho com que dezembarcamos: com grande sentimentopor uer huma aldeã de
tanta gente tão asenhoreada do deabo: — E emtre toda esta gente da casta q
tenho dito achamos hum português o qual tanto q nos uio se ueio a nós c om as
lagrimas nos olhos, pedindo o quizesemos confessar que auia muitos têpos o não
fazia ao qual o meu companheiro o cõfessou ao pé de huma aruore: e por que não
hera tenpo de poder fazer mais dilação: nos partimos seguindo nossa uiagem, e
costeando a cota p a a partte do norte tendo nauegado ate as des da noite: Como
por estas partes tudo são baxos, demos em hum de tal .calidade que tudo herão
pedras, todos em hum tempo sem detenssa se lansarão ao mar e a poder de força
soubre seos hombros hião levando a barca, e como era escuro não sabião por onde
auião de sahir fora deste baxo, herão tantas as pancadas que a barca daua em as
pedras quantas herãoas lagrimas, e brados, c om que todos pedião mizericordia a
Deos, ó qual nos deparou huma migalha de fundo sem pedras, em o qual deitamos
fatexa, e sahindo a lua uimos que estauamos duas legoas de terra, e iunto a hum
baxo em o qual aRebentauão tão altas ondas, que nos parecia que cada huma
delias nos acabarião as uidas, as quaês tiuemos bê perdidas: e querer contar as
ânsias q neste dia de todas as parttes nos cercarão, tenho por imposiuel, que
me não deixou a pena o entendimento tão livre, que possa escreuer as muitas que
padesemos: e porque naturalmente he consolação de tristes, ter companhia nos
trabalhos: huns com outros nos aconselhauamos gastando o Restante da noite
soubre fatexa: dando cada hum seu pareser no que faziamos, sem nos saber
detreminar, por que sahir daqui não nos conuinha, por ueremos q diante nos
estaua o baxo ameasando e não tinhamos mais q a barca em q hiamos, e perdido
ella não auia mais Remédio; postos nestas angustias, o uento que como touro
bramaua, emfim eu me ui aqui c om a esperança bem perdida neste dia de poder
contar os que agora tenho de uida; não tratauamos cada hum de nos mais que de
inuocar os sanctos a que cada hum hera deuoto, pedindo-lhe nouo alento, e
ainda: foi Deos seruido que uindo amanhecendo aquetou o uento, e uimos por onde
poderiamos fazer caminho; e sahimos a força de Remo, sempre com a sonda na mão,
athe nos poremos fora em boa altura: — dando muitas graças a Deos, pellas
merçes tão grandes que nos fizera. aqui ui claramente, quanto pode a Irmandade
esperitual, e os dezeios de se uer e emcontrar, hum companheiro c om o outro:
pois não atentando o Risco tão grande se opos meu companheiro, comtra todos os
perigos metendo-se em huma barca tão pequena, e passar hüa costa tão larga, por
quarenta braças de altura: — não atendendo a nada so por uir emcomtrarse
commigo em a Serra Leoa.
E
como Deos sempre aiuda e fauorese aos q andão em seu seruiço, elle foi seruido
de nos liurar: e em poucos dias entramos nos Rios dos carseres, nos quais
achamos à cete nauios de portuguezes que uiuem nas parttes de Cacheu, os quaés
uem todos os annos a estes Rios a carregar de huma fruita que chamão: Cola: a
qual he tamanha como castanhas, e naçe em ouriços, como as mesmas castanhas,
mas limpo de espinhos o sabor desta fruta he algum tanto amargozo, comprase aos
negros destes Ryos, a troco de panos dalgodão que he o dr.° destas parttes,
para tornarem a uender aos negros mandingas nas parttes do balrrauento. fomos
com muita alegria festeiados da gente destes nauios: os quaês estauão mais de
uinte legoas pello Rio a dentro, surtos no porto daldea de (Cachimpim) tratamos logo de fazer huma Ermida nesta
aldeã, no lugar ahonde ia esteue outra em algum tempo, fizemolhe seu altar no
qual puzemos huma imagem do senhor crucificado, e outros sanctos que leuauamos,
e iunta toda a gente dos nauios em terra Comfessamos os que pudemos, disse meu
companheiro missa, na qual eu fis huma larga pratica a todos.
Logo no dia seguinte tratou meu companheiro de
se partir pera os Rios do deponga, e
dahi ao Rio do Nuno, por não faltar com asistençia, e por não faltar com o
pasto da doutrina, aquelles que tinha Bautizado, e por não dezemparar os
lugares, e partes aondetinha feito sua maior asistençia: ficando eu nestes Rios dos cárceres, pera com o socorro e
aiuda destes portuguezes, poder fazer muitas emtradas, pella terra a dentro, e
correr innumerauel multidão de aldeãs de gentios, q ha nestas parttes, em que
se podião fazer grandes fruitos, e
seruiços a Deos, e iuntamente administrar os sacramentos, a mais de seis sentos christãos que estauão
nestes nauios, pera que asim Repartidos, meu companheiro por huma partte: e
eu por outra: pudéssemos melhor coltiuar tamanha linha de Christo. despedido
meu companheiro se embarcou logo pera os dittos Rios de deponga; com presuposto de nos iremos aiuntar na ilha do
Bissao.
Capitulo
XII
Do
q obrei nas aldeãs dos Ryos dos cárceres ate que me embarquei pera as parttes
do balrra uento
São
estes rios dos carseres mui dilatados nelles fiquei mui alegre e contente por
uer que só aqui podia fazer os maiores fruitos e seruiços a Deos: e b em se uio
pois em poucos dias comesei a obrar, o q alguus não obrarão em muitos annos
noutros lugares porq depois de ter confessado a maior parte da gente dos nauios
e dadolhe a comunhão, em a i g r . a que tinha feito em a mesma aldeã de
cachimpim, na qual em muito breues dias, Bautizei a cincoenta pessoas, sendo
seos padrinhos os mesmos cappitães dos navios.
Logo
tratei de fazer a primeira emtrada pella terra adentro, ás aldeãs dos gentios,
acompanhado de alguns portuguezes, e de chalonas: indo todos numa barca pello
rio a sima, e chegando a huma paragem aonde chamão o de ponga, digo atoguia,
aqui há grandiozas pedras pello meio do Ryo, as quaes sahem mui altas fora
dagoa, e por mais que a mare encha numca as cobre; aqui há cantidade de lagartos de disforme grandeza, os quaes comem aos
negros, e os negros os comem a elles quando os matão: tem estes lagartos
tão disforme boca que de hum bocado tragão a hum negro: destes matou hum; Diogo
Roiz, cappitão de uma lanxa, o qual também uinha em minha companhia, tirandolhe
c om huma espingarda, de dentro da mesma barca em hiamos; o qual mandei medir e
com ser dos mais pequenos, tinha dezoito palmos de comprido: leuamolo a raboque
pella poupa da barca, e na primeira aldeã a que cheguamos, o ouferesemos aos
negros os quaes o fizerão em postas, e curado ao fumo o comerão, e do c o i r o
fazem bainhas pera seos traçados, e facas: nesta aldeã foi muita a géte q
conuertemos, e Bautizei, por q hera este gentio muito manco, e festeiauão muito
a gente branca em suas aldeãs: mas uiuem mizerauelmente faltos de todas as
coizas nessesarias pera a uida humana; principalmente de mantimento: que so o
de que se sustentão he hum pequeno de a r r o s : e esse lhes falta muitas
uezes: e com esta mizeria, e pouquidade uiuem tão contentes como se uiuerão em
algum parayso: tão boa he nossa natureza de contentar; senão que nos
acustumamos mal, e a pomos em mao foro. — e com estes gentios padeserem tantas
mizerias não se acha emtre elles furto
algum: por que por pequeno que o furto seia, se castiga c om tanto rigor, que
fica o que furtou, e todos seos parentes catiuos do Rey, e l o g o os uende aos
portuguezes, e asim com toda a confiança deixauamos nossas coizas no meio
das aldeãs sem auer quem lhes fizesse nenhuma ofenssa: quam diferentte se uei isto em a nação dos Christãos, pois ha m.qtos
que andão metidos por este guine, com pecados e furtos tão públicos cometidos
sem peio dos homens, nem temor de Deos.
Depois de termos estado alguns dias nesta aldeã,
nos partimos pera outras, ate de todo se acabarem os Ryos: Bautizando a muitos;
e não ficando aldeã aonde se não Bautizase muita gente: de sorte que nesta
primeira sahida forão satenta a huma pessoas q Bautizeipor q ate a ultima aldeã a que cheguamos q chamão a de
Faima,
Bautizei a vinte huma pessoa q fazem o dito numero, folgando todos de uer a m.t
a gente q recebeu nossa sancta fè, nesta aldeã da de Faima que foi a ultima a
que cheguamos, fis muita dilação na conuerção de hum fidalgo gentio, muito
grande naquelle Reyno, — e tendoo ia catequizado e instruído, nas coizas da
nossa sancta fé, me disse diante de todos que elle se queria Bautizar, e fazer
christão de sua liure uontade; mas que auia de ser na igreia que eu tinha f e i
to pera os portuguezes que uinhão em os nauios, e que queria tomar por seu
padrinho ao Cappitão de hum delles, d e ' q u em hera amigo, e tinha
conhecimento, e que elle me daua sua palaura de me uir buscar ao porto aonde os
riauios estauão; e a mesma aldeã aonde estaua a Igreya: ficamos todos mui
satisfeitos de suaspalauras. Daqui nos partimos outra ues, aonde estauão os
nauios: e me recolhi a aldeã de
Cachimpim aonde estaua a Igreya, ficando todos os portuguezes tão alegres e
satisfeitos, de uerem o muito fruito, e seruiço que se fes a Deos nesta
primeira sahida. não herão passados oito dias quando o fidalgo (Cossoma) que asim hera o seu nome de gentio: ueio com
seu acompanhamento a buscarme, na caza em que eu estaua em a aldeã e me disse
com grandes ueras e instantes, que elle uinha pera se fazer christão, euiuer na
ley dos portuguezes: e que ao Deos que criara os ceos e a terra, a esse só queria
seruir e queria uiuer na nossa ley, que hera a de Deos: e pois uinha de tão
longe, lhe não quizese dilatar mais tamanho bem: ao qual eu fis huma pratica
diante de todos os portuguezes: e diante de seu mesmo padrinho, o qual hera João de Valdeueso, Cappitão do nauio Sancto Antonio: Capitão também de infantaria e
V[e]reador mais uelho na ilha de Sanctiago: o qual o recolheo por seu
hospede ate o outro dia, no qual todos fomos a igreya, e o Bautizei pondolhe o
nome de seu mesmo padrinho: e depois de Bautizado esteue dois dias em nossa
companhia, no f im dos quaes se foi despedir de todos, e fazer oração em a
igreya na qual lhe pus humas contas ao pescosso, e lhe dei huma estampa de nossa senhora, com a qual ficou muito
contente: Dois portuguezes o forão acompanhando ate a sua aldeã.
Contar
aqui as merçes tão grandes que nosso senhor fes a este fidalgo: e o q por meio
de sua conuerção se obrou, entendo ser minha uinda emtre estes gentios muito
aseita a Deos: por que quando delia não tirara mor bem que o prezente: este
bastaua pera a ter por boa e asertada: por que forão muitos os que se
bautizarão, e me uinhão pedir o sancto Bautismo, que se querião fazer
christãos, imitando todos a este fidalgo que como hera poderozo: tanto q emtrou
em sua aldeã, logo em prezensa dos portuguezes que com e l l e forão, quebrou
quantos idallos e deRibou quantas chinas, seos parentes adorauão: e o mesmo
tinha feito aos que elle tinha primeiro que se Bautizase: os portuguezes uierão
tão cheios de alegria, contando em todos os nauios o que uirão: que na uerdade
he pera dar muitas graças a Deos uer que hum grande gentio, se tornou, em tão
grande christão com tão grandes sinaes de Verdadeiro.
Daqui
por diante fui Bautizando a muitos, asim
escrauos que a gente portugueza tinhão comprado: como a muitos filhos de
pães e mays christans: e outros muitos que de suas liures uontades se uinhão a
Bautizar: gastando com elles os dias, e as noites, em cathequizallos.
A maior pena que neste passo recebia, hera uer
que o tempo me faltava, pera este exerçiçio: e como eu hera só, deseiava muitas
vezes, de me uer acompanhado de muitos saserdotes que uiuem no nosso portugal
que puderão muito
b em ocuparse neste ministério: que todos, e muitos mais, herão nessesarios, e
de grande préstimo neste guine: que em todas as partes delle se ouuera obreiros
se fizera muito fruito nas almas, que tam neçeçitadas uiuem de remédio:
Neste
tempo entrou a festa da purificação de nossa senhora a Dois de f e u i r e i r
o : no qual dia todos os portuguezes, e mães christãos, iuntos em a igreya,
depois de benzer a sera todos com suas uellas nas mãos fizemos a prosisão:
estaua a este tenpo, huma crus muito
grande posta no meio de huma Rua Daldea, que os nossos irmãos os Religiosos da
primeira missão tinhão posta, e como uiesem morar gentios as cazas que estauão
iunto á crus, e como de noite fizesem em a Rua seos bailhos e danssas, pondo em
a mesma Rua suas chinas, pareseume que não hera bem estiuesse a crux em aquelle
lugar, por não ser desente, nem estar com a reuerençiadeuida: e asim todos
iuntos c om a mesma procição das candeas, a fomos tirar donde estaua, e
atrouxemos a nossa igreya: a porta da qual a puzemos: e todos com grande
reuerençia, adoramos, e beyamos.
Acabada
esta ocupação logo em o dia seguinte me embarquei, em huma barca: acompanhado
do piloto Manoel Corea de Sã,
português e natural da cidade do porto: leuando c om nosco chalonas, e
acólitos, fizemos a segunda entrada a terra dos gentios: e a primeira aldeã á que portamos foi a de Ratü: a qual he do fidalgo Dom
Pedro: este fidalgo, auia muitos annos que hera christão, e sua molher; e
sabião falar muito bem português, por serem criados com os portugueses; estes
tinhão f e i to a emtrada de sua aldeã huma igreya, com a pobreza que a terra
da de si: Nesta aldeã me detiue muitos dias: fislhe fazer a igreia de nouo
toda, por que estaua muito desbaratada: em a qual lhe pus em o altar hum painel
do Senhor Crucificado q c om migo leuaua pera que ficase em a j g r e y a : na
qual o confesei a elle, e a sua molher: e querendolhe dar a comunhão, por serem
disso meressedores: o piloto Manoel Correa de Sã se oufereseu pera ir buscar o
ornamento o qual me tinha ficado em a nossa igreja e c om toda a brevidade em
hum dia, e huma noite, foi em a mesma barca buscar todo o nesesario para dizer
missa: ficando eu neste tempo catechizando a gente deste fidalgo.
Cheguado
o piloto com a barca, e ornamento; Bautizei des pessoas: e no mesmo dia disse
missa, na qual dei a cumunhão ao d i t o fidalgo, e sua molher, no f im de tudo
fis huma pratica a todos do que o senhor me inspirou: em todos os dias que
nesta aldeã estiue, que forão muitos sempre me ocupaua em doutrinar os que
tinha Bautizado; sendo que este fidalgo e sua molher, sabião mui bem a
doutrina; coisa que altissimamente me alegraua de uer.
Desta
aldeã nos metemos pela terra a dentro grande distancia descorrendo por muitas
aldeãs: grandes f o r am os frutos, e serviços que a Deos se fizerão se ouuera
obreiros: cheguamos ate a aldeã do Rey
Sago uindo ia de uolta: nesta aldeã achei a hum hommem ia uelho, Recebido
em fase de j g r e i a c om sua molher, e hum e outro ambos falauão mui b em
português, herão Christãos, aos quaes comfesei, que auia muitos annos que o não
fazião; Bautizeilhe seos filhos, e a mais gente de sua caza: sendo padrinho de
todos, o mesmo piloto, que m e acompanhaua. Vizitamos ao Rey Sago, aos qual não
ouue remédio podello conuerter por mais tempo q c om elle gastamos, e dias, e
noites, que estiuemos naquella aldeã.
E tendo eu noticia q outros Religiozos se tinhão
ia empenhado neste mesmo exercício, e o não poderão uençer: deixamollo
pertinas, e nos sahimos daldea,
uindonos acompanhando todos aquelles que herão christãos, e m.t o s que eu
tinha Bautizado, por hü grande espasso de caminho fora daldea.
E
por que neste tenpo emtraua a quaresma, que hera nessesario asistise a gente
christam que estaua em hos nauios, que hera muita por cuia Rezão nos não foos
metendo mais pella terra adentro, tratamos de nos p o r a caminho, uoltar a
buscar a barca, aonde a tínhamos deixado, nella nos fomos aos nauios: dando por
b em empregados nosos passos: pois todos a huma uos dezião ser m . t o aseita a
Deos, esta minha segunda ida, pois nela tiramos satenta e quatro almas das
unhas do diabo, que tantas f o r ã o as q Bautizei em todas estas aldeãs.
Cheguados
aos nauios, logo emtrou a quaresma: fis aiuntar a todos na j g r e ja que tinha
feito naldea de cachimpim, fis a quarta f e i ra de sinza, e depois de dada a
sinza, fis huma pratica a todos, em a qual tomei por tema as mesmas palauras; Memento
homo quia puluis es, et in puluerem reuerteris com a qual logo daquelle dia
se comesarão a confessar m.t o s tendo eu a este tenpo, ia feito rol de toda a
gente que auia en os nauios, pera saber se ficaua algum sem se dezobrigar.
Cheguada
a somana sancta como auia muzicos em.os .nauios: cantamos a missa das
endoenssas, este dia foi pera mim, p de maior trabalho, por ser a gente maes de
seis sentas pessoas, ,e todos quererem comungar, e eu uiame sô. Comtudo foi
Deus seruiuo darme saúde no meio de todos estes trabalhos, caminhos que tinha
andado, e calmas tão grandes como são as de guine: e andando no meio desta
gentilidade em tão malino clima como he o destas parttes. Emfim fizemos os
officios do sábado sancto, cantamos as missas da festa: todos os christãos
ficarão mui contentes, dando muitas graças a Deos, pois no meio da gema da
gentilidade, e em partes tão remotas, acharem quem lhe administrasem os
sacramentos: sendo os nauios tantos, e não trazendo neles menistro nenhum que o
pudese fazer: e asim dauão todos muitas graças a Deos; pois estando tão
ratirados da christandade, lhes mandaua seos ministros pera curar de suas
almas. e tendo os nauios ia tomado suas cargas da fruita que forão buscar,
sahirão destes ryos, e se forão por iunto a barra, aonde chamão o porto da
barrançeira no qual fazem repartissão igualmente da carga que tem comprado por
irem todos de parsaria aquelle negocio: e tendo todas suas coisas acabadas;
largarão uellas, em vinte de abril, da mesma hera de 1664. annos; eu me embarquei
no nauio, o b om Iesus, o qual hia portar em o r i o grande; que ficaua dahi
pera as parttes do nortte: do qual Rio me tinha uindo auizo, da muita gente q
auia pera se Bautizar: e m.t o s Christãos que estauão despozados, por falta de
menistro que os aiuntasem matrimonialmente: e auer tenpos muitos se não
confesauão: com cuio auizo, me embarquei com dobrada alegria, pois tinha ia por
serto o muito que auia de obrar no seruiço de Deos em este Ryo grande: pois c
om tantas ueras de todos hera chamado a elle.
Mas antes que trate dos sucessos de minha uiagem
he b em dar huma breue noticia destes
Rios dos Cárceres e de alguns ritos e custumes da gente delles. He a gente
destes Ryos de nação de sapés: as armas de [que] uzão são flexas eruadas, e
huma casta de paos tostados q trazem em as mãos, a que chamão manducos: os maes
delles trazem seos traçados, o Rey grande desta nação he christão, fala
português, com o qual eu falei muitas uezes, e se ueio despedir de mim; e tambê
dos capitães dos nauios trazendo em sua companhia a maes duzentos homens, entre
fidalgos, e pagens, são huns
gentios tão manssos q por falta de ministros e saserdotes se não fazem todos
christãos, c om tudo ha muitos ia christãos: principalmente nas aldeãs q estão
iunto ao mar, por estes Rios, muitos delles sabem ia falar a lingoa portugueza,
pella m.t a comonicação q tem com os portuguezes, quando aqui uem a seos
megoçios: e outros portuguezes que se
metem com elles pellos matos adêtro.
Os
seos idallos são páos, pedras; untados com sangue de galinhas, e de outros
animaes, e finalmente cada hum aquillo a que se afeisoa, e quer; dizendo que
aquillo he o que seos parentes uzarão, mas não deixão nunca as panellas com o
sangue das galinhas: Comtudo são mui façeis de dobrar, e tirallos destas erronias,
e enganos: por q tanto que lhe dizem o e r r o em que estão, e a traça c om que
o diabo os engana: os que se fazem christãos, elles mesmos c om suas mãos
quebrão estas panelas, e todas estas erronias, como muitos fizerão, em nossa
prezenssa: e não ha nenhuma duuida q se em cada hü Ryo destes asistirão dois
missionários que fora muito o fruito que se fizera.
Suas
terras sam muito limitadas de sustento, mas arros não lhe falta que he o seu
único mantimento: e com isto uiuem tão alegres como contentes, e tão amigos
huns dos outros, que nas suas aldeãs sempre t em balhos, e festas: e se morre
algum delles, dizem que a morte os busca, e todos despeião aldeã, e use ão
fazer cazas á outra parte, por que como as cazas são de barro cubertas de
palha, c om facilidade mudão huma aldeã: e em qualquer parte pera aonde se
mudão, semea cada hum arros, e mais cozas, nas terras que quer sem pagarem
direitos nem tributos alguns a nimguem: por que como são terras tão largas, he
de qualquer aquella terra q elle conserta pera semear: e sem a laurarem, nem
cauarem, a semeão nestas parttes, somente a esgrauatão com hum palmo de f e r r
o : e deste modo uiuem sem mais roupa que hü camizão de algodão soubre as
carnes, os mais graues com huns calssões do mesmo, meas, nem sapatos, não se uza emtre elles, nem em todo guine, ainda que
seião fidalgos, ou Reys; ha emtre elles huns q lhe chamão. Arão; cuio o f f i ç io he bailhar,
estes são chamados pera as festas nas aldeãs, e lhe pagão, os quaes se uestem
de uarias inuenções de penas, c om muitos cascaueis: norrosto poem huma cara
postiça de uarias inuenssões; comessão a bailhar do principio da noite ate o
outro dia com duas horas de sol, iunta toda a gente daldea; as molheres a
cantar na sua lingoa e l l e sô a bailhar, ao
som de bombalão, que são instromentos de pao, balhando e fazendo meneos, em
sima de hum pilão, fazendo ligeirezas tão agudas q só parese serem feitas por
arte do diabo, e com estar cuberto o corpo de cascaueis, balha sem que nenhum
deles bula; e sô tangem quando elle quer; huma noite foi toda a gente dos
navios a uellos balhar e eu fui também com elles pers os termos contentes, por
que o que tem de mal, alem dos muitos males que posuem he serem muito
desconfiados.
As
molheres emquanto donzellas andão nuas, e só trazem diante de si hum panozinho
de algodão do tamanho de hum palmo e da largura do mesmo, pendurado c om hum
fio de uolorio pela sentura, a estas lhe
chamão (Bayudas) que quer dizer donzellas; e deixando de o ser, andão c om
seu pano da sentura pera baxo, q lhe chegua te os giolhos.
Todos os nauios q entrarem em seos Ryos hão de
dar sua dadiua ao Rey da terra, e outra dadiua mais pequena, ao Rey do fidalgo
daquela aldeã aonde ouuerem de emtrar: mas elles, festeião muito os brancos, e
os dezeião nas suas
terras, e lhes uão conprar pella terra adentro tudo o que lhes he nessesario.
Os
seos Ryos são muitos, e dilatados, e c om serem de tantas Legoas: de huma, e
outra parte, vão sercados de aruoredos, tão espessos altos e fermozos, como
agrestes, e barbios, por nam darem nenhum fruto: chamamçe a estas aruores (mangues):nasem com as raizes em a agoa
salgada: rodeão o mar e sercão a terra: com os pes em o mar, desprezão a
terra, e a rama em a terra desprezão o mar; perese que são senhores do mar,
parese que são senhores da terra, e desprezando huma e outra coiza sobem tão
altos e tão direitos q parese que c om seos ramos querem firir aos mesmos ceos,
mas permitio Deos que fosem em tudo as auessas das outras aruores, por q do
mais alto de sos ramos lhe saem as raizes que direitas como huma linha desem a
buscar a terra: são estas aruores tantas, e tão espessas que se não sabe m.t a
s uezes aonde esta o porto pera emtrarem em a terra, como se fosse huma mui
alta muralha e tão verdes em suas folhas, q com a abundância delias emcobrem a
falta de seos fruitos; semelhantes a muitos homens, q c om abundância de suas
palauras querem emcubrir a falta de suas obras: mas por estes que se pode dizer
aquellas palavras de christo senho nosso.
A
fructibus eorum cognocetis eos: quia non potest arbor mala bónus fructus
facere: neque arbor bona maios fructus facere. ha nestes rios muito
peixe q os negros trazião a uender aos nauios os quaes só tomão em esteiros que
tapão, por nam terem outra arte nem cabedal pera pescarem.
Ha
também nestes Rios peixes caualos:
disformes em grandeza e monstruozidade de seos corpos: porque com o elephante
ser tão grande elle tem muita mais carne que o elephante: andão dentro nos Rios
com a cabesa fora dagoa, sahem em terra, e emtrão em os matos a pastar, e
tornamse a recolher em o mar: e asim em o mar como em terra ui muitos: e também
os ui quando estiue norrio donuno, aonde ha cantidade: e meu companheiro frey
daluador de taueiro que com migo estaua, os uio também do mesmo modo. A feição
deste animal de monstruoza a cabessa he como de caualo; as uentas e boca como
de boi, os dentes do tamanho de hum, e
de dois palmos, q se estimão, por fazerem delles contas pera rezar, e
seruem pera muitas coizas; tem as orelhas mais pequenas q de caualo o corpo
huma disformidade por ter muita cantidade de carnee o q o fas mais feio animal
he ter os pés, e as mãos, muito curtas; matamnos a espoingarda dentro norrio
tirandolhe a cabessa: a carne a comem a gente da terra do mesmo modo que comem
a dos elephantes eu tembem comi delia duas uezes q tem mais sabor de carne de
uaca do q de pexe do mar. de sorte que huns a comem por carne por pastar em a
terra: e outros a comem por pexe por abitar em o mar.
Também
nestes mesmos Rios comi de hum pexe, o qual os morador chamão (pexe bosa) o qual he do tamanho de doze
palmos de conprido, andam sempre iunto as aruores que chamão mangues e só comem
de suas folhas, também tem o mesmo sabor de carne.
Capitulo:
XIII
Como
me embarquei pera o Ryo grade: e dos sucessos que tiuemos em esta Viagem: e do
q a mim em particular me sucedeo
Partimos da Barra dos Rios dos cárceres em uinte
de abril domingo de pascoela a tarde: como os uentos fosê contrariosa e a
nauegação, por sima de baxos, aonde se nauega com muito sentido, sempre com o
prumo na mão: em oito dias auistamos as
ilhas a que chamão os idallos ou as tres irmans emtre
as quaes e a terra fazemos a nauegação: no porto das quaes deitamos f e r r o :
foi a barca a terra a buscar agoa, e comprar algum rafresco: a qual foi
daqueles gentios b em recebida; e c om breuidade trouxerão tudo o que auião
mister: estas tres ilhas estão pouca distancia da terra firme; ailha q fica no
meio não mora gente nella por ser pequena, so he abitada de muita cassa e gado
brabio.
Estaua
a este tempo hum nauio ingres, emcorado de fronte destas tres ilhas: hum grande
espasso de nos apartado; do qual me ueio hu recado pello qual hü catholico
romano, de sua mesma nação, me mandaua chamar e me pedia encarecidamente o
quizese uizitar,por estar em huma cama emfermo, e que se queria confesar, o
qual recado me trouxe o Cappitão
Fançisco de Azauedo, homem português, e natural da cidade de portalegre :•
l o g o sem nenhuma tardança me meti em huma barca c om seis remèiros
acompanhado do piloto João Nufio,
morador na pouoação de cacheu, e outros q me acompanharão, e chegando ao
nauio, fomos do Cappitão e dos mais mui bem recebidos: logo me consedeu
recolherme em hum camarote com o dito católico Romano; dentro no qual fes huma
geral conficão de sua uida: no f im da qual, chamamos a hum-ingres seuamigo,
que sabia falar nosa lingoa: pera me declarar seç&s-palauras que importaua
que eu as soubesse. a este interpetre lhe fis huma larga pratica,
declarandolhe, (emtre as m.t a s coizas que lhe disse) o bem q ganhaua se se
quisesse fazer catholico Romano: e crer firmemente tudo o que tem, e crer a
sancta Madre I g r . a de Roma e pois Deos nos aiuntara em aquelle camarote, e
me trouxera aquelle lugar, Deos hera o que o chamaua: e que não quizesse perder
tão boa ocazião que agora tinha: e o mais 0que não relato p o r não ser
molesto: o que tudo me esteue ouuindo, emquanto eu falaua com grande tenção com
as quaes palauras, e mouido do acto em que uia ao catholico Romano: c om
aá'lagrimas nos olhos me disse, (mas com tal condissão que o não auia de saber
o Cappitão da nao) que se queria Bãutizar: pedindome sempre segredo ate poder
sahir em terra e uerse fora do nauio: logo ali o Bautizei na forma que se
cutuma semelhantes Bautizar, e lhe pus nome Ioão como elle queria; sendo seu
padrinho o mesmo catholico
Romano
que eu tinha acabado de confessar: sendo tanto de anbas as parttes o
contentamento, que só creo o sentira, quem conhecer que coizas grandes, melhor
se explicão com sentillas, do que com explicalas se sentem, logo (Rodrigo Aquens) que asim se chamaua o
catholico Romano: mandou chamar o Capitão do nauio ao mesmo camarote, ao qual
pedio perdão diante de mim, e do mesmo interpetre, com tanta humildade, como
confiado e senhor de si; não se lha dando que os ingrezes do nauio soubesem q
elle hera catholico Romano; mas antes hera sua maior gloria que todos o
soubesem, e conhecesem por tal: não sei se aueria christão q a uista deste
acto, e do que aqui obrei em este dia se lhe não enternesa o coração, e se
delibere a bem uiuer.
Com
o Cappitão do nauio tiue alguns argumentos, e c om alguns ingrezes os quaes
estuão tão ufanos, e pertinazes, e consebião consigo humas opiniões tão
soberbas: em cudarem que uam bem em sua eregia: q bastauão pera mouerem a
deuina Magestade a castigallos logo não no coração onde se foryão mas na lingoa
como secratario, e menistro, do mesmo coração.
E
como o cappitão ia estiuese inquieto e desgostozo: trabalhei naquelle dia que
hera ia quaze noite de nos hiremos: por que entendi se estenderião os
desgostos, a outros maiores se ali ficássemos aquella noite.
Cheguados
ao nosso nauio o bom Iesus: l o g o largou as uellas, e fomos seguindo a nossa
Viagem: e não sen soubre saltos: por q aos dezaseis dias de nauegação, defronte
do cabo da uerga, nos perseguio huma grandioza baleya: todos em o nauio herão a
gritare fazer alaridos, batendo em caldeiras, basias, e forros das ancoras: o
cappitão, e mais pasageiros com espingardas nas mãos pera lhe tirarem; premitio
a deuina Magestade q acometeu pella parte de estibor, e sordio da outra banda
do nauio sem nos fazer nenhuma moléstia.
Auia
cinco dias que tinhamos de noite trouoadas: e tão riyas tromentas: c om tão
infernaes e medonhos relâmpagos, em que a noite sempre ardia, emgrossando as
hondas con tanta força, quanta hera a do uento, que muitas noites nos não
deixou leuar hum bolsso, em a uella do traquete: e a aruore ceca corriamos com
as trouoadas.
Todos
os dias a tarde, cantauamos o terço e a ladainha de nossa senhora, no f im da
qual fazia a todos huma pratica: e como neste nauio hia muita gente nunca me
descuidaua deste exerciçio.
Considerando
que huma das coizas com q os desipullos de nosso Redenptor: e de nosso padre
sam françisco mais edificarão e conuerterão o mundo, foi só pello bom exemplo q
a todos de si derão,e pella pasiençia, e mansidão, com q se auião nos
trabalhos: e porqueestes não hera possível me faltasem em tão larga Viagem: não
me descudaua de buscar o remédio principal em tantas tribulassões; o qual
estaua só nas mãos de Deos, e asim punha de contino os olhos no meu christo
crucificado, o qual trazia de dia e de noite ao pescosso: a elle só emtregaua
de todo meu coração, quando mais aflicto estaua: estando muito serto que elle
me aiudaria, e liuraria de todos estes perigos; pois ate aqui tinha liurado de
tantos: nam deixando de tomar por guia sua Sanctissima May, a V i r g em Maria
senhora nossa.
E
como os malles quando uem com dificuldades se mudão: e os bens pello contrario:
aos dezanoue dias de nosa Viagem, estando is perto de huns baxos que tínhamos
pera passar, (na qual paragem chamão os naturaes a baxa) pellas tres horas da
tarde se armou contra nos tão grande tempestade, e tão altas sobião as ondas do
mar que cada huma delias nos parecia que de todo nos sepultaua, e acabaua as
uidas: dois bateis que tra^iamos por nossa poupa do nauio, com a força das
hondas sobião tão alttos, q por si mesmo se punhão em sima do navio: creo q por
me pareser huma imagem do Iuzio sempre me lembrara: tudo andaua numa continua
inq^iiatação, e reuolta: ouue conselho q se lansasem duas ancoras ao .mar, por
nos ficarem perto os baxos, por não daremos em elles: os quaes lançados foi
pera maiores trabalhos nossos; por que aqui se atreuessou o nauio, e os mares
lhe emtrauão c om grande fúria: huma das barcas a leuou o mar, a outra ficou
rombada, e com balroarem o nauio cõ tão grandes pancadas, foi Deos seruido que
não abrisse agoa por nenhuma parte: todos acodião nesta ocaziao ao trabalho
huns a lançar os bateis ao mar; outros a lançar as uergas a baxo: outros a dar
a bomba: o piloto posto ia na proa, pegando em as amarras, e nas mais obras, e por ser ardiloso e pratico nesta costa de
guine, por ser natural e filho delia, ao qual chamauão, Pedro Nunes.
Tudo hera hum puro trabalho fundado na saluação
de jhuma uiua, que paresia andar maes morta que uiua: os que não entêdião do
trabalho, cantando a
ladajnha: eu fazendo os exorcismos todos c om as lagrimas nos olhos: não auia
ia a Relíquia, nem sanguinhos,e corporaes com que dezia missa, que eu ia não
tiuesse lansado ao mar: O P i l o t o uendoce de todo ia sercado mandou leuar
as amarras, e suspendidas as ancoras, fomos correndo com a tempestade. A aruore
ceca, o q se senão fizera, totalmente ali fora sepultura de todos.
Quem
auera q sem o uer o crea: mas testemunha me he Deos que em tudo digo Verdade e
testemunhas são também delia quantos na nao hião: pois por mizericordia de
Deos, a intersesão da sereníssima Raynha dos Anyos por quem todos chamauamos:
assim como premitio que nos não tomase esta tempestade de noite: também
premitio que nenhum tiuesse perigo em todos estes trabalhos.
Graças
lhe demos por tão presto nos liurar de tantos perigos, a que pouco antes
estauamos oufereçidos; e quaze desconfiados de nos uermos liures delles: por
que l o g o a tromenta se foi aquietando tanto que entrou a escura noite.
Aos
vinte e tres dias, de nosa Viagem deitamos ferro na ilha do meio: o qual porto
tomamos com muitos trabalhos: por rezão dos uentos que sempre nos forão
contrários: a qual lhe chamão a do meio por rezão, de auer muitas ao redor
delia, nesta não abita gente, mas uem por serto tempo do anno colher os fruitos
da terra; q he muito vinho, e azeite de palma, e haueo da mesma palmeira, que
naçe em huns cachos muito grandes, dos quaes tirão primeiro o vinho, e tambçjn
fazem delias o azeite, o qual he amarello, e o vinho cor de leite, e outras
maes fructas agrestes que tudo os naturaes da terra comem. Mandamos o batel a
terra, mas achando muitos gentios (que naquella ocazião tinhão vindo a ilha) se
quizerão tornar pera o navio, pálios uerem todos armados, com adargas, e
azagayas, são as armas que uzão, mas elles mesmos os chamarão de terra; e como
o capitão do nauio hera ia de todos nesta carreira conhecido, não lhe fizerão
nenhum agrauo, antes lhe derão agoa q he o que elles hião buscar; o capitão lhe
mandou seu prezente em agardesimento, e pera ficar delles mais conhecido: que
na uerdade só o dar fas uerdadeiro conhecimento, e respeito, ainda emtre os
brutos e gentios. esta nação se chamão
Biyagos, e destas jlhas comesão a principiar seos Reynos ate a terra firme:
todos são ualentes em suas gerras: o batel ueo com toda a breuidade, e c om a
mesma leuamos f e r r o e fomos seguindo nossa deRota.
O
dia seguinte pasamos pella ilha Roxa;
que he a meior desta nação dos biyagos, a qual he abitada de m.t a gente: nesta
não lançamos ferro por nos não dar o tempo lugar: ao outro dia que herão quinze de maio; e vinte e cinco de nossa Viagem,
emtramos pello Ryo grande, e c om ser tão grande, maior hera a nossa
alegria, e com rezão por ser coiza de todos tão dezeiada.
Capitulo XIIII
do ã obrei no rio
grande, no seruiço de deos, e dos mais sucessos e emcomtros q tiue, ate minha
emtrada ê Cacheu.
E como hera bem darmos primeiro as graças a Deos
de nos trazer a porto, de m im tam dezeiado; como contente de lograr tão bons
asertos, e pera asertar melhor em meos deseios: sahimos logo em terra, e fomos
dar os agardeçimentos a Deos, e a sua May Sanctissima, a V i r g em Maria
senhora nossa, de nos auer liurado de tantos perigos, sahido em terra fomos a
huma jgreya que achamos feita cuberta de palha, c om as paredes de barro, mas
muito limpa e consertada, pella ter a seu cargo hum homem christão natural
deste
guine: em a qual cantamos huma missa em acção de graças, com os muzicos que
leuauamos em o nauio, que erão muito capazes, a cuia missa asistirão muitos
homens, e mulheres, christãos do mesmo sitio
de (ginala) que asim se chamaua este em que estaua a igreya asistio o Rey
da terra com sua gente, o qual auia muitos annos hera christão por nome (Domingos Taborda) o qual tanto que
soube que sahira em terra me foi esperar c om a sua gente, e me recebeu em o
caminho, abraçandome com tanta alegria q nella daua mostras do muito que
estimaua minha vinda: e bem se uio no modo q se ouue no descurço de minha
asistençia nesta terra: por que logo me mandou uiziar com as fruitas delia,
acompanhadas com huma vaca: que são as maiores grãdessas que fazem em estas
partes os Reys: este falaua mui bem português, e foi piloto em esta costa de
guine, e por lhe uir o Reyno por direito o obrigarão a ser Rey, o q não queria:
e uiue oie muito descontente por ser Rey dos gentios, e com gran dezeios de
deixar o Reyno: elle foi o primeiro dos christãos que confesei em a igreya, a
cuja imitação se confessarão muitos que naquellas parttes ueuião aqui acabei de
conheser, quanta força tem nos prinçipes, e prelados, as obras q fazem, e
exemplos q dão a seos súbditos, e seruos.
E
como em a j g r e i a fizese minha morada de dia e de noite todo o tempo que
aqui estive: e como se deuulgarão as nouas de minha cheguada, uierão todos os
christãos a confesarse os q herão capazes disso: outros muitos a Bautizar seos
filhos, que auia muito tenpo esperauão huma destas ocaziões; aqui ui a muitos
dos que tinhão Bautizado os nossos Religiosos da primeira missão, frey Paullo
do lordello, e seu companheiro frey sebastião de Sam V.t e ; no qual sitio
fizerão muita asistençia quando fizerão a sua V i a g em a serra Leoa: e sendo
ia passados des dias de minha estada, nelles tinha ia Bautizado a sasenta
pessoas: estando a estas horas ia tão contente de lograr tão bons asertos; como
agardeçido a Deos por me hir, executando meos dezeios: pois todos herão o uer
aumentada a christandade: e ir Bautizando a muitos: e como a diligencia, he may
da boa obra e uêtura; fazia de minha parte toda a que podia, ainda que com
trabalho, que todo me ficaua suaue quando uia a muitos u i r em pedir o Sancto
Bautismo: — Como também ui a outros tão pertinazes como o mesmo demónio com
quem tinhão feito liga.
O
cappitão do nauio me ueio buscar a jgreia, acompanhado de seos amigos: o qual
me pedio lhe quizese fazer merçe, e fauor de i r c om e l le aquella tarde ao
nauio, por que importaua, e nellle me estaua esperando muita gente daquelles
lugares; que por não saberem que eu estaua morador em aquella jgreia, me tinhão
ido buscar ao nauio: e como muitas herão gente fidalga da mesma terra, lhe
pedirão quizesse elle como cappitão do nauio uir buscar me, e que todos me
estauão esperando huns pera se cazarem, e receberem c om suas molheres: outros
pera se confesarem: e muitos pera se Bautizarem.
Com tal noua, m e fui logo ao nauio, q estaua a
meia legoa. Em o qual achei a Manoel
Soares morador naldea de Boloilla, q esta dentro neste R i o : o qual
estaua com todo o necessário preparado pera fazer as uodas a duas sobrinhas
suas, e pela j g r e i a ficar longe me pedia as quizese confesar, e receber,
em o nauio, o qual como fosse capas pera isso o mandarão toldar todo, nelle
disse missa, e recebi aos noiuos: e como estes dois cazamentos fosse com gente
principal deste guine: concorrerão muitos em aquelle dia que se f i z e r ã o
as uodas, f o i aquelle acto de festa ocazião pera catequizar a muitos,
e assim em tres dias Bautizei a vinte e cete pesoas dentro do mesmo nauio.
Aqui
virão todos claramente quanto seruiço fazem a Deos os Religiosos q andão
metidos em estas partes: e na uerdade os que tiuerem animo de se didicar a
seruir a Deos em estas terras deve ser seu espiritu de todos mui louuauel, e
aqui resplandesera milhor sua sanctidade, e Vertude, e aqui mostrara milhor os
quilates que posuir de grande Religioso: como escreue sam g r e g o r i o Neque
enim ualdè laudabile est, bonum esse cum bonis, sed bonum esse cum malis. sicut
enim grauioris culpae est, inter bonis: bonum non esse:ita immensi est prconii,
bonum etiam inter maios exitisse. por que não fas muito o que he b om entre
os bons; mas ser b om emtre os maos, e em lugar que corre tanto risco nossas
uidas, espirituais e temporaes: he grande auxilio de Deos, não forão pequenos
os q de sua mão sanctissima recebi: pois em terras tão rigurozas, e de tanta
aspereza, não só me liurou de tantos perigos a que estiue oufereçido, mas foi
seruido de me dar aqui saude, pera que não perdesse tão boas ocaziões de o
seruir.
E por que o Cappitão da
nao queria fazer sua Viagem, pera o rio de sam domingos, pera onde hera sua
deRota: e pera na pouoação de Farim que fica trinta legoas pello dito Rio
adentro,
uenderem a carga que leuauão em o nauio: pera o que fomos todos a terra a
despedimos do Rey, e de outros Christãos, a cuia sahida foi tanta a gente que
se aiuntou em terra, que naquelle mesmo dia Bautizei oito pessoas; e confesei a
muitos homens que negoçeão por estas parttes: e uendo eu o fruito muito que
fazia em este lugar, e dezeio de chegar a huma
aldeã que ficaua daqui a duas mareis pello R i o asima, a qual chamão Baloilla, e por ter noticia nela auia jgreia, e
tinha ia muitos christãos; me rezolui a ficar em este Reyno grande; e asim me
declarei com o capitão do nauio e mais companheiros, os quaes todos c om
instancias grandes me pedirão, que pois os acompanhara ate aquelle Rio, se não
auião de ir sem me leuárem c om sigo, e pondome por diante que se ficase metido
em aquellas parttes, não teria ocazião de nauio pera poder sahir delias: e
uendo eu suas instancias: e que por amor, de m im tinhão perdido ia quatro dias
de sua Viagem, estando ia despachados e preparados pera largaruellas, tornei a
mudar de pareser; lembrandome que os nossos irmãos os Religiosos da primeira
missão, frey Paullo do Lordello, e seu
companheiro frey Sebastião de Sam Vicente, q estauão no dito R i o de Sam
Domingos, terião neceççidade de quem os aiudasem, pois aquelles rios são
tão grandes e dilatados, e nelles auer sempre muito que obrar no seruiço de
Deos: com isto me embarquei e largandose as uellas: em breue tempo, perdemos de
uista os que ficauão em terra tam saudozos; como eu que me não satisfazia de os
uer, e c om magoa no coração fomos pela costa seguindo nossa Viagem,
emgolfandonos cada uez maes, de tal maneira que mães nos não uimos.
E
se ouer quem tenha esta minha Verdade por lizonya, saiba que corto o fio aos
emcarissimentos: por meu curto engenho não alcansar a maes: e se ouuer quem
iulgue estas regras por escuzas: t i r e a neuoa da paixão, ou enueya, do
entendimento; e julgara qual he maes se escreuer coizas que se obrão no seruiço
de Deos, com as quaes se aferuorão os dezeios a muitos a fazer outras maiores:
ou iulgar obras alheias; que ordinariamente sempre sam aquelles que se não
atreuem a fazer outras semelhãttes, por leues que seião: diuirtome ao que mais
apadrinha o meu intento.
He este Rio Grande,
asim chamado pella muita largura que tem: e asim mesmo he o maior que se reprezenta em
o Mapa do mundo: sendo que não he tão dilatado como outros muitos que ha em
guine, pois só tera o i t o ou noue legoas, no f im do qual he a terra limpa de
matos: na qual ha muita caça de uarias espeçias: a gente destas terras são de nação, (Beafares) o seu trajo, he hum
pano ao redor de sy; o mesmo uzão as molheres: as armas de que uzão são flexas;
mas não são eruadas, por não auer na sua terra aquella maldita erua que os
outros tem: são estes muito couardes, enemigos de fazer guerras: mas são os
melhores para trabalhar, e seruir, q nenhuma das outras nações, os que uiuem
muito pela terra a-dentro, sam
grandemente pertinazes, e trabalhozos de tirar de suas erronias, e de suas
chinas que adorão; as quaes são da mesma casta e inuenção, que tenho dito
de outras partes.e como os uentos nesta paragem, nos fauoresesem, em cinco dias
portamos na ylha do Bissao na qual, esperaua achar a meu companheiro frey Saluador de Taueiro, como tínhamos
ficado de nesta jlha nos aiuntaremos: e aonde eu imaginaua achasse descansso, e
aliuio de huma tão larga viagem, em lugar de achar meu companheiro: achei nesta
jlha nouas que hera morto nosso irmão frey
Palio do Lordello, pregador, e missionário hauia muitos anos nestas
parttes: e que seu companheiro frey
Sebastião de sam Vicente hera hido pera a sua prouincia.
Bendito seia o senhor, quam profundíssimos sao
os seos iuizos, e quam insuficiente he nossa incapazidade e entendimento pera
os alcançar, por que foi este hum sentimento pera mim que necessitou de grande
passiençia; e com muita rezão se deue considerar e eu não aserto a dizer, nam
por falta de conhecimento, mas por carecer de palauras com que possa
significar, sô digo que sabe o corassão sentir aquillo que a lingoa não sabe
dizer: estes dois irmãos riligiozos da inha prouincia, forão os que nos
diserão, e mostrarão os portos neste guine em os quaes podíamos fazer maiores
seruiços: em os quaes podiamos achar a gente mais disposta pera receberem nossa
sancta fê: elles forão os primeiros
missionaros q entrarão em guine da nossa prouincia da piedade, e abrirão as
portas pera a conuerção destes gentios: elles forão os primeiros que edificarão
hospício do Orago da piedade, em a
pouoação de Cacheu, pera nelle se recolherem os Religiozos missionários: e
edificarão igreias, em as terras dos gentios pera nellas doutrinarem aos m.t o
s que ia tinhão Bautizado: huma em o Reyno dos banhus, sitio de Quimgim: outra que frey Sebastião,
edificou, em o Reyno, dos cassangas,
sitio de Caboi. andando sempre pregando, por todas as pouoassões e Ryos de
guine, passando a serra Leoa, e dela uoltando ate toda a costa de guine, do
norte ao sul, e do sul ao norte, gastando muitos annos neste ministério:
uendose tantas uezes tão perto da mortte, das mãos dos gentios, como eu me ui
em sua cõpanhia no mesmo aperto, como fica relatado em o capitulo quarto: os
quaes f o r ã o dos mesmos gentios roubados muitas uezes, ate dentro no mesmo
hospício, onde lhe leuarão ate o mesmo ornamento com que dezião missa: andando
sempre em huma continua batalha espiritual, ate em e l la acabar a uida; mas
não digo b em em dizer acabar, por que então comessou a uiuer eternamente, pois
não acaba quem morre seruindo a Deos, em semelhante empreza, por que então maes
lustra: que p o r isso morre pera que eternamente uiua, e goze da uista clara
de Deos, o qual lhe tera ia oie dado o pago de seu trabalho, pois tão
ditozamente uiueo e morreo; que morrendo naçeu: que b em auenturadamente acabou
a uida temporal, pois comessou a uiuer
eternamente; ó que ditozos forão os tromentos que padeseu em a terra nesta luta
a batalha spiritual pois delia se lhe seguiram os bens da g l o r i a : pois he
serto que todos aquelles que f o r ã o auallados dos tiranos seos enemigos, por
morttos,e de todo riscados dos liuros da uida, esses são os que uiuem e lustrão
em o Çeo, gozando da uista clara de Deos. Como dis sam g r e g o r i o
nazianzeno. ut auis phenix diçitur moriens nasci, sic morientes semper
uiuentes renascuntur incenso, desiderio christi. Asi como a Aue phéniz
oufereçida as flamas, e abrazada nellas parese que p o em f im a sua uida, c om
tal m o r t e comessa a reuiuer, sahindo do fogo com noua beleza e fermuzura:
da propia maneira este religiozo, padesendo p o r christo tantos trabalhos, em
a conuerssão destes gétios: alem de padeser das lingoas dos tiranos
maldizentes, e eneuiozos nouo tormento, e quando cuidauão que morria em taes
flamas, então comesou a uiuer eternamente.
De
muitos foi atromentado com esta uida, os tiranos gentios lhe tirauão flexas, e
azagayas, lansandoas de suas mãos pera lhe acabar a uida; outros muitos também
as lançarão de suas lingoas, pera acabar seu nome, e escuriser sua uertude;
grandes enemigos teue em seos intentos: mas amigos forão todos em quanto lhe
grangearão, (sem saberem o que obrauão) tão sublime coroa de gloria, de que o i
e gozara em o Çeo. quasi corona (dis Nisseno) victoriae praemium, in manibus
aduersariorum necteretur.
Na jlha do Bissao de que uou fazendo
menssão estiue tres dias: nos quaes
Bautizei a quinze pessoas todas filhos de paes, e manis christans, que os
trazião a Bautizar: confesei muita gente que p o r falta de menistro auião
muito tempo que o não f a z i ã o : esta jlha he ilha das maes frescas que ha
nestas partes se he que se pode achar fresquidão nestas partes de guine, porem
he limpa de matos e se pode andar seos caminhos sem empedimentos, em grandeza
he tamanha como a jlha de Santiagode cabo verde, sem serras, porem nem penedias: não me
detenho maes em dar relação desta jlha porque
a tenho dado em o Capitullo quinto, quando por ella a primeira ues passei.
E
estando a este tempo com grande sentimento, e nenhuma alegria, asim pella
rezões asima ditas, como por uer que não hera aqui cheguado meu companheiro: e
uendo serme forssozo irme em o mesmo nauio, reõolherme ao nosso hospiçio em a
pouoação de cacheu aonde o poderia melhor esperar; deixeilhe aqui carta minha;
e me tornei a embarcar, e em sete dias
cheguamos a pouoação de Cacheu.
Em
cinco de iunho; e quarëta e cinco dias de viagem: e emtrando em o nosso
hospiçio da piedade, nelle achei somente a hum frade capuchinho, castelhano, e missionário apostólico, por nome frey João de Peralta o qual auia muitos
annos asistia por este guine, semeando o euangelho pello meio desta
gentilidade, em companhia do qual estiue alguns dias c om arto sentimento, e
pena por uer a tardança q meu companheiro fazia: atribuindoo humas uezes a
sucessos que cada hora sucedem em o mar : outras atribuindo a roins tempos por
ser ia emtrado, o inuerno em estas partes: e quando estaua mais pensatiuo e
cuidadozo; emtrou pella barra deste ryo de sam Domingos, o nauio em que elle
uinha; todos o fomos receber com dobrada alegria, a huma por Deos o trazer a
saluamento tendose uisto em tantos perigos em o mar, como taríibem por nos
vermos todos com saúde até o prezente auendo tantos enfermos de emfermidades da
terra, e tam malignas. E iuntos em o hospiçio me deu conta dos muitos
trabalhos, e sucessos de sua uida, e dos perigos tam grandes em que se uira em
o mar como tudo se uerá em o Capitullo seguinte.
Capitulo
XV
De
como me emcontrey com meu companheiro em a pouoação de Cacheu: e do q obrou
depois q se apartou de mim em orrio do nuno
Neste
Ryo do Nuno, fes meu companheiro
frey Salvador de Taueiro des mezes de asistencia em os quaes Bautizou a cento e
trinta pessoas em filhos de gente ia christãos, e muitos gentios que a fe de
christo conuerteo; asistindo sempre com particular cuidado, aos moradores ia
Christãos, e a muitos portuguezes q por aquellas partes asistião a seos
negócios.
graças
seião dadas ao soberano senhor por premetio que em todo o tempo que andou por
aquellas parttes dar-lhe saude pera que c om tanto z e l lo e spiritu obrase em
seu seruiço; nan faltando nunca c om a doutrina à pouoação aonde estaua a
igreya, nem aquelles ia Bautizados.
Nos
Ryos do Deponga, asistio quatro
mezes, na qual terra tem os brãcos feito sua igreya, ia á alguns annos do orago
da piedade, nella asistio c om participar cuidade, a todos os que erão
christãos; fes algumas emtradas pella terra a dentro, mas sem nenhum fruito,
porque a gente daquelles Reynos, he de
tão ma casta e nação, que não ha quem nos possa dezaferrar de suas chinas,
e tão duros e pertinazes uiuem, os destes Reynos que estando iunto fazendo
adoração a seos jdallos, se algum homem
passa por iunto delles, logo o matão, e dizem que o seu idollo ou china o
mandou matar.
He
esta terra dos Ryos do Deponga, semelhante a serra Leoa, não em a serra, mas em os ares por chouer nela a maior parte
do anno, a nação desta gente gente lhe
chamão (bagas) falão lingoa de bagas: e com serem tão finos gentios, folgão
muitto que lhe uãobrancos a suas terras, e sam m.t 0 seos amigos, e asim andão
oie muitos portuguezes negosiando negoseando iunto ao mar e também tem suas
igreyas junto ao mar que tudo elles concentrem e nacendo-lhe os filhos lhe poem
os nomes dos mesmos brancos.
Mas
tem nos os diabos tão cegos c om huma
traça de jdallo ou china que adorão, a qual uem a ser huma pedra em o matto
soubre a qual deramão farinha de arros, e vinho de palma, e outras mais coizas,
e lhe tem feito huma caza muito bem feita, tem também dentro nesta caza a
fegura de hum elephante, e de seu mesmo tamanho, feita de huma casta de pao a
que chamão tara q he como palmeira: à qual figura chamão (a boule) nesta caza não
entrão molheres; mas só os homes os quaes fazem aqui seos bailles, e
festas; e aqui aprendem huma lingoa particular; asim como em outras partes se
aprende latim.
E se sucede pasar iunto
a esta diabólica caza algum negro, ou branco matam no logo, dizendo que o
aboulé, o comeo,
e pera isso o mandou matar; e c om ser
esta gente tão ma e diabólica; emtre ella se achão muitos brancos portugueses
metidos uiuendo muitas vezes peor que os mesmos gentios, uiuendo de tal
sorte, e tão esquecidos de Deos e da sua saluação como se não tiuerão recebido
a agoa do sancto Bautismo.
Emtre os muitos perigos, e tribulassões, que meu
companheiro teue em o mar, foi hum delles o mais milagrozo, e por tal o
escreueo, vindo do rio do nuno, fazendo sua viagem pera Cacheu, em hum nauio de
alto bordo, o qual uinha nauegando com o pano largo deu c om a quilha em huma
pedra e soubre ella ficou asentado, e com as grossas ondas, e o grande uento,
cahia pera huma e outra parte c om o costado, por rezão de que só a quilha
estaua soubre a pedra; neste passo herão todos a bradar pellos sanctos a cada
hü tinha deuação e pella sereníssima Raynha dos Anyos, a V i r g em Mary de
Deos, e senhora
nossa, he o prometer de todos muitas missas: no mesmo tempo se leuantarão huns
mares de tromenta com a mare q uinha emchendo os lançou fora, sem o nauio abrir
agoa por parte alguma, seião ao senhor dadas as graças, de os liurar de tão
grande perigo, pois nelle se uirão todos tão perto da morte, porque nenhum
imaginou que escapasse com uida.
E
estando iuntos na pouoação de Cacheu em o nosso hospício: e visto serem tempos
das agoas, em que se não podem fazer emtradas pella terra a dentro me tornei a embarcar no mes de iunho em
huma varina p . a a ilha do Bissao; pera delia passar a terra e Reyno de huma
nação a que chamão (balanttes) cuia terra he a melhor desteguine: mas são tão maos que não querem consentir
brancos nenhuns em suas terras; ia em algum tempo emtrou Religiozo de meu Seraphico
Padre sam françisco: não ha duuida que se me dessem emtrada pello modo que eu
intentaua, com muita facilidade auião os portugueses ter aqui emtrada, o Rey
desta nação mora iunto ao mar com todos seos fidalgos, e qualquer delles que se
Bautizasse se auião de por as coizas em outro estado, também por uerem q ia os
Reys seos vezinhos dão emtrada aos portuguezes, e estimão muito os brancos no
seu Reyno.
Mas
como os iuizos de Deos são profundíssimos elle sabe o que he melhor por que
principiando a dar a execussão meos intentos, me deu tão grande emfermidade em
os pés, estando nesta jlha do bissao, que Dois mezes estiue em cama; a qual emfermidade em o nome da terralhe
chamão (uzagre) he huma casta de
bichos tão pequeninos, aos quaés chamão (oissões) dos quaes se cobrem todos
os pés, e se fazem todos em pasta por emtre as ques estão de contino purgando:
alem de aqui me perseguir a sarna de
guine, que sempre tiue. Meu companheiro frey Saluador nem por ficar em
cacheu pode escapar das mesmas sarnas, e sobre ellas febres, de que leuou
muitas sangrias: grassas seião dadas ao senhor pois asim o ordenou e foi
seruido.
E
passadas as agoas as quaes durão os mezes de iulho, agosto, e setembro que he
nestas partes o inuerno, achandome melhorado me tornei a embarcar pera a pouoação de Cacheu, pera com meu
companheiro nos prepararemos, a fazer a segunda emtrada pelas terras a dentro
dos gentios: e tendo ia nauegado tres dias de viagem pera a pouoação que tenho
dito, nos sobreueo tão grande tempestade que deu com a embarcação a costa, mas
quis a deuina Mag.d e que ficasse atolada em a lama, pella qual rezão se não
abrio, e desfes em tauoas; aqui estiuemos dois dias e duas noites, quaze
lidando com a morte, fazemdo sempre todas as diligencias por saluar as uidas
das quaes tiuemos perdidas as esperanças; por que pella parte do mar as hondas
que nos sepultauão; pella parte da terra
os negros maos a que chamão (falupos) que nos querião catiuar,que são huma
casta de negros, que se não comem carne humana, de tal sorte nos tratão quando
nos apanhão, que depois de nos despirem nús, e ficaremos seos catiuos nos
tratão tão mal que não sei se fora melhor acabar em o naufrágio as uidas:
foi Deos seruido que a poder de grande trabalho, e traças, q todos dauão
tirarem a embarcação no f im dos dias que tenho dito; coiza, foi esta tão
milagroza: como dina de se relatar a todos.
E iuntos na pouoação de Cacheu nos preparamos de
algumas coizas que nos herão nessesarias pera sahiremos o primeiro de outubro,
a fazer a segunda entrada pella terra a dentro dos gentios: na qual esperamos
fazer muito fruito, e seruiço a Deos, ao qual leuamos sempre por guia, e a Virgem May pera que perfeitamente se possa dar a execução tam grandes, e bons intentos,
que como todos uão fundados em o seruiço de Deos, e bem das almas não há duuida
que o mesmo Deos nos ha de fauoreser.
Prometese
escreuer as obras e sucessos da segunda emtrada pella terra dos gentios. LAUS DEO
Luís Silveira, Peregrinação de André de Faro à Terra dos
gentios, Ls. MCMXLV, pp. 1-119.
1664
FREI PAULO DE LORDELO, de Braga, escreveu,
segundo o Abade de Sever, Relação de suas Missoens. Foi missionário em Cabo
Verde e Guiné, onde faleceu em 1664. Estão perdidos os seus escritos.
FREI FRANCISCO DA
GUARDA
foi missionário na Guiné em 1664
JOÃO CARVALHO MOUTINHO é capitão-mor de
Cacheu
Em 1674, foi publicado
o Regimento para os «Armazéns da Guiné e Índia e Armadas» e, em 1690, a sede da
«Companhia de Cacheu e Cabo Verde» instalou-se na ilha do Príncipe com o
objectivo de fornecer escravos às Índias Espanholas.
Essa
circunstância conflitual que se perpetuou ao longo do século XVII com outros
rivais europeus levou, com o passar do tempo, a um quase esquecimento oficial,
sublinhe-se, da costa entre o cabo e o
rio Senegal, como claramente atesta a documentação de 1664 relativa ao projecto da feitoria de Palmida que uma
companhia de particulares queria fundar naquela secção do litoral,
abrigando-a numa casa forte cuja construção poderá ter sido uma realidade (1).
A
efectiva vigência desta Companhia dos
irmãos Lourenço Pestana Martins e Manuel da Costa Martins foi efémera
apesar de estar prevista para durar 8 anos: segundo uma consulta do Conselho
Ultramarino de de 1671, teria sido apenas armado um navio suspendendo-se logo
depois o resgate, por um “acidente” não especificado (2). Note-se que o projecto,
maioritariamente corporizado por estrangeiros, de “nações amigas”, não terá
resultado, directamente, de interesses cabo-verdiano-guineenses (3).
“O resgate de Palmida he na entrada do Rio Senega que
fiqua em altura de quinze graos e meio ao norte de cabo verde VI legoas
a cujo contracto andou sempre este resgate aneixo por ser no destrito de suas
conquistas mas pella falta que nestes tempos ha de navegação pera aquellas partes
não temos comunicasão nenhũa hoje por este resgate nem pera outros muitos que
estão por toda aquella costa de Guiné…” (4)
(1)Na documentação usa-se a expressão ambígua
(utilizada para a fortaleza de Cacheu inúmeras vezes mandada construir) sobre a
casa forte “que se fabrica” (ver doc.
infracitado). De concreto temos o plano, ainda hoje existente, dessa casa
forte: cfr. planta e alçado em perspectiva da feitoria de Palmida c. 1664: AHU,
Cartografia manuscrita, 153 (o forte
seria em madeira e na sua maior extensão 37 pés de comprimento). V. AHU, Guiné, caixa 2 doc. 34. Lisboa, 24 de
Setembro de 1664, as nomeações de capitão e tenente para a casa forte que se
fabricava constam, pub. in MMA,
VI, p. 269.
(2) V. Cristiano José de Senna Barcellos, Subsídios para a História de Cabo Verde e
Guiné, Parte II (1640-1750), Lisboa, Academia Real das Ciências, 1900,
pp. 46-47 e Cândido da Silva Teixeira, "Companhia de Cacheu, Rios e
Comércio da Guiné", Boletim do
Arquivo Histórico Colonial, vol. I, Lisboa, 1950, pp. 87-132, p.
110.
(3) Cfr. AHU, Guiné, caixa
2, doc. 36. 4 de Outubro de 1664: v. a lista dos estrangeiros que iam com o
contratador Lourenço da Costa Martins, para os quais ele pede autorização,
esclarecendo que não havia portugueses interessados no seu projecto.
(4) AHU, Guiné, caixa
2, doc. 33-A. Lisboa, 9 de Agosto de 1664 (optámos nesta citação por não
actualizar as maiúsculas em“cabo verde”, que sublinhámos)
Num
documento de 1664 aparece um primo de Lemos Coelho, Manuel Coelho de Melo, nesta época seu sócio no tráfico
de escravos. Na Rellação da gente da governansa e cidadões que ha nesta
ilha de Santiago do Cabo Verde, tirada da mostra geral que pasou António Galvão
governador e Cappitam geral das ditas Ilhas em 2 de Fevereiro de 1664 annos consta
“Manuel Coelho de Melo de idade de 50 annos. Consta por huã Provizão do
governador Pedro Ferraz Barreto ser Cappitam do Rio de Balloula feita em
12 de Junho de 654 annos.”
A “Rellação” citada está anexa à carta do Governador
António Galvão a El-Rei, Santiago, 28 de Junho de 1664. AHU, Cabo Verde, caixa
5A, doc. 175. Manuel Coelho de Melo é depois nomeado com o título de “Capitão”,
por exemplo, num documento da Ribeira Grande feito perante o ouvidor geral em
22 de Dezembro de 1669. Cfr. AHU, Cabo Verde, caixa 6, doc. 52.
Para
administração do tráfico de escravos, a Coroa portuguesa optou inicialmente
pelo regime de comércio livre, com o arrendamento dos direitos alfandegários a
contratadores. Face aos maus resultados financeiros dessa solução, foi
implementado, a partir de meados do século XVII, o sistema de companhias
comerciais de carácter monopolista. A primeira
dessas companhias foi aprovada em 1664 com o nome de Companhia da Costa da
Guiné.
1664/01/10
CRISPINA PERES
Por
10 Janeiro de 1664, uma "internacional" ordem de prisão contra Crispina Peres foi emitida pelo tribunal da
Inquisição de Lisboa , que tinha jurisdição sobre possessões ultramarinas
de Portugal (ANTT, Inquisição de
Lisboa , P. 2097 ). A propriedade de um "colorido" , livre residente do assentamento em Cacheu
que foi acusado de feitiçaria, superstição e adoração de ídolos, foi fiscada. Juntamente com dois outros tangomaus de Cacheu, Genebra Lopes e Izabel Lopes, mulheres
negras livres residentes no assentamento de Cacheu" , ela havia sido denunciada por Gaspar Vogado (1) , um rico
padre católico de Cabo Verde. Este último, de quem gostam assim muitos dos seus
compatriotas, andou como um comerciante, actuou como inspector eclesiástico ou 'visitador', tendo já denunciado outros moradores cristãos de crimes religiosos (2). Ele foi acompanhado em seu zelo de denúncia por um oficial
militar e mestre de um navio. Precedido por três anos de investigações, o
julgamento prolongado era para durar quatro anos, até que foi considerado como
uma confissão "parcial" obtida a partir Nha Crispina. Ela era a
única mulher entre os poucos moradores da região que estavam realmente
levados a julgamento pela Inquisição Portuguesa durante a sua operação.
Significativamente, ela também era a
única pessoa nascida no local para ser levada a julgamento no meio das ondas de perseguição que afectaram a área desde o século XVI .
As
acusações contra ela e seus colegas residentes iguais às registadas no
século XVII: o judaísmo e blasfémia, juntos, representaram mais de metade
de todas as denúncias (Da Silva, 2002: 159). Eles ilustram uma mudança nas
políticas que ocorreram durante o século XVII para o reconhecimento
das mulheres residentes que mantinham laços estreitos com as sociedades
africanas como (suposta) ameaça para os interesses de Portugal na região. A Guiné já se destacava entre as possessões ultramarinas portuguesas em África como a mais notória em termos de adesão de seus moradores aos "ritos pagãos" (ibidem). A grande maioria destes alegados crimes foram denunciados no
século XVII , que foi o ponto alto da actividade da Inquisição em relação à
Guiné e África em geral (Ibidem : 146) . Na verdade, a Guiné foi responsável
por um terço de todas as denúncias durante esse período, o que não é nenhuma
surpresa, dada o relativamente grande número de "Visitas pastorais" ,
ou seja, de inspecções pastorais, realizadas a partir do
(1) Embora acusadas dos mesmos crimes , Genebra e Isabel
Lopes não foram condenadas no julgamento
que eventualmente estava focado exclusivamente em Nha Crispina.
(2) Mais notavelmente, ele denunciou outro
vigário, Luís Rodrigues de Almeida, cónego da catedral na então capital de Cabo
Verde, Ribeira Grande, e servindo na povoação de Farim, por solicitar as
mulheres durante a confissão, promovendo danças indecentes (ANTT, Inquisição de Lisboa,
P. 2097) frente de sua casa e vivendo em pecado "com mulheres gentias e cristãs" ( ANTT, Inquisição de Lisboa , P. 2097 ) .
1664/05/23
CARTA
RÉGIA AO GOVERNADOR DE CABO VERDE (23-5-1664)
SUMÁRIO
- Sobre a despesa que tem feito na
obra da fortaleza de Cacheu o vigário Gaspar Vogado e ir continuando com ela.
António Galuão&.ª O Vigairo Gaspar Vogado me representou
que eu fora seruido emcarregalo das obras da fortaleza de Cacheu e que se lhe
fose entregando o dinheiro dos donatiuos das naos castelhanas que tinha em
depozito o capitão João Carreiro Fidalgo,
o qual lhe não quisera intregar Manoel
Dias Cotrim que lhe sucedeo, e que indo entrar na mesma fortaleza Antonio da Fonseca de Ornelas remetera a
este Reino o dinheiro que estaua aplicado a esta obra, com que se achaua
imposebelitado de lhe dar fim. Pedindo-me mandase ordenar ao capitão de Cacheu que de qualquer dinheiro que
ouuesse no deposito daquella praça, ou donatiuos das naos castelhanas, se lhe
pagase o que se lhe estiuese deuendo da obra da dita fortaleza ese lhe tomase
entrega della no estado em que a terá posto; encomendouos muito que tomeis
noticia do estado em
que se acha obra e procureis uer o liuro da receita do dinheiro que se deu a
Gaspar Uogado e despeza que nella tem feito, o que falta para aquella praça
estar defensauel e ficar em sua perfeição, ordenando lhe juntamente que ua
continuando com as ditas obras, pera o que lhe fareis dar o que lhe for
nesessario do mesmo dinheiro que se lhe consignou pera ellas, no cazo que eu
não tenha mandado dispor delle em outra forma, porque então será necessario
agoardarse a que aja outra consignação donde posa sair o com que se lhe acuda,
e entretanto se lhe irá acodindo á obra pello milhor modo que uos parecer mais
soaue, de maneira que senão perca o que se tem feito.
Escrita
em Lisboa, a 23 de Mayo de 664.
Rey
AHU - Cód. 275, fl. 349v.
1664/06/00
Quando FREI
JOÃO DE PERALTA se deslocou a Santiago, presumivelmente por motivos de
doença, ali encontrou um religioso da mesma província, FREI FRANCISCO QUIRINO DE ANTUÉRPIA. Por conta da deslocação do
capuchinho à ilha de Santiago, o
governador de Cabo Verde, ANTÓNIO GALVÃO, escreveu ao rei D. Afonso VI em
Junho de 1664, avisando da presença deste religioso na ilha e de outros na
costa da Guiné. O monarca português
reagiu ordenando ao governador que “vigiasse” os procedimentos daqueles
religiosos, e ordenando que não fossem
aceites na região religiosos estrangeiros que não tivessem viajado por Lisboa.
1664/07/04
Ao
contrário do seu ilustre primo, Cristóvão de Melo Coelho, cavaleiro da Ordem de Cristo por serviços militares
prestados na Guiné, que se distinguiu como capitão-de-mar-e-guerra, de Lemos Coelho nada sabemos nem sobre qualquer posto militar em que tivesse servido a Coroa. De igual
modo nada encontramos sobre alguma eventual candidatura a um cargo oficial na
Guiné ou em Cabo Verde. Ao contrário do mesmo primo e de Francisco Pires de Carvalho que,
na consulta coeva do Conselho Ultramarino sobre a nomeação para a capitania de Cacheu (4 de Junho de 1664),
terminando o triénio de António da Fonseca de Ornelas, aparecem entre os
candidatos ao lugar (1)
(1) Cfr. AHU, Guiné, caixa 2, doc. 32. Lisboa, 4 de Junho de
1664, pub. in Fausto Duarte, “Os capitães-mores das praças da Guiné”, BCGP, vol. VI, nº 21, 1951, pp.
175-220, p. 207. O cargo foi dado a João Carvalho Moutinho em 29 de Agosto de 1664.
1664/09/24
O
governador ANTÓNIO GALVÃO pede arcabuzes para os soldados desarmados.
1664/10/01
«Em
1 de outubro concedeu-se a Lourenço
Pestana, portuguez, o estabelecer uma reitoria na costa da Guiné, no porto
da Palmida, junto ao Cabo Verde, e
levar uma porção de estrangeiros francezes.
O
conselho ultramarino, informando esta concessão, foi de parecer que não havia
inconveniente, porém seria melhor que se desse preferencia a portuguezes.
O
facto é que esta feitoria era o começo da primeira colonlsação, n'esta região,
de povos não avassallados, sendo os portuguezes alli pouco conhecidos.
D' esta colonia
figuravam apenas dois portuguezes: Nicolau Paulo e Pedro Pato; e francezes:
Matheus Coret, Ricardo Hodoly, Ricardo Vlleuset, Geraldo Varnol, Samuel Clifon,
Duarte Marjou e Jacome Vancourl.
El-rei
apenas se limitou a querer saber qual a nacionalidade dos empregados da
feitoria ou dos novos colonisadores, e se estavam naturalisados ou casados com
portugnezas. Aquelles colonos eram apresentados como engenheiros, carpinteiros,
mestres de véla e um cirurgião.
Se
de alguem nos devemos principalmente queixar de ter concorrido para que fosse tão limitado o nosso domínio n'esta costa,
outrora tão grande e hoje quasi reduzido ás ilhas dos Bojagoz, é certo que
cabe a D. Aft'onso VI essa culpa, deixando alll internar os francezes, que
dominam hoje qnasi todo o sertão.»
- Subsídios para
a História de Cabo Verde e Guiné, por Christiano José de Senna
Barcellos, parte
II, pgs. 46-47, Lisboa, 1900
1664/10/04
É autorizado Lourenço Pestana a estabelecer uma feitoria na Guiné, no porto de
Palmida, junto ao Cabo Verde. Os colonos
da feitoria eram dois portugueses e sete franceses.
1664/10/06
O ouvidor-geral
de Cabo-Verde, MANUEL DA COSTA PALMA, faz devassa dos procedimentos de ANTÓNIO DA DA FONSECA DE ORNELAS, capitão de Cacheu.
1664/11/26
Torna-se necessário acudir à praça de Cacheu com gente, armas, pólvora e balas.
1665/05/11
O ouvidor de
Cabo-Verde MANUEL DA COSTA PALMA tirou residência ao governador FRANCISCO DE FIGUEIROA.
1665/06/18
A câmara e o povo de Cabo Verde pedem se lhe prorrogue o triénio do governador ANTÓNIO
GALVÃO.
1665/08/03
Manuel
Coelho Feio
-
licenceado, nomeado ouvidor em 3 de Agôsto de 1665, acumulando o cargo de provedor
da Fazenda.
1665/08/08
CONSULTA DO CONSELHO
ULTRAMARINO
(8-8-1665)
SUMÁRIO
- O rei cristão da Mata de Putame
oferece ao Capitão da Guiné terreno para edificar a nova povoação de Cacheu no
caso de ser transferida e renova o mesmo oferecimento a el-Rei de Portugal.
Por
Decreto de 28 de Julho passado manda V. Magestade que se veja e consulte neste
Conselho huã carta de Dom Antonio de
Ornellas, Rey do Reyno da Matta de Putame em Guiné. Nella refere hauerse
feito christaõ por híi Religioso da Piedade, que leuou áquelle Reyno seu padrinho o Capitaõ Antonio da Fonseca de
Ornellas; e que como nelle assistaõ mais dois Religiosos da mesma ordê (de
que se vê fauoreçido) que tem baptizado quantidade de fidalgos, e vassallos
seus, e que neçessitaõ de J greja, fica dando prinçipio a ella o P.e Frey André de Faro (1), que para esse
miniterio passou áquelle Reyno.
Que
obrigado do reconheçimento da fee catholica, com que Deos foi seruido
alumiallo, e do mal gue está situada a pouoaçaõ de Cacheu pellos grandes
discommodos ue seu moradores ade em, o ereçeo ao ito seu pa rinho hu sitio
muito fresco e agradauel em seu Reyno, para se mudar para elle a uella ouoa aõ
o ual lhe respon eo que o não po ia açeitar sem primeiro uisar a V. Magestade;
e que como o dito Antonio da Fonseca se viesse para este Reyno e elle Dom
Antonio ficasse no seu dezejoso de uer executados seus affectos, tornaua a
fazer a V. Magestade a mesma offerta, com grande vontade, não só do çitio, que
o Capitaõ e moradores de Cacheu tem escolhido, mas ainda de outro qualquer, que
em seu Reyno quiserem escolher, para que V. Magestade mande tomar posse delle,
e do que mais for seruiço seu.
Ao
Conselho pareçe que V. Magestade deue· ser seruido de mandar agradeçer por
carta a este Rey, a boa eleição que fes, emse redusir á santa fee catholica,
admittindo em seu Reyno o sagrado Baptismo, para que elle se dilate por todo
elle, para mayor honra e gloria de Deos nosso Senhor, e a boa correspondençia,
que deue ter assy com os Religiosos, pregadores do sagrado Euangelho como com
os moradores da pouoação de Cacheu, vassallos de V. Magestade, por os quaes,
quando for neçessario, lansará V. Magestade mão do offereçimento que fas de
sitio para noua Pouoação. //
Em
Lisboa, a 8 de Agosto de 665. li
O
Conde I Mello I Malheiro I Dourado / Falcaõ / Azeuedo
[Despacho
à margem]: Como
pareçe. Quanto á mudança da pouoaçaõ o Conselho tome infonnaçaõ de pessoas que
tenhaõ notiçia daquellas partes e com isso me consulte o que pareçer.
Lisboa.
15 de Janeiro de 1666.
Rey.
AHU - Cód. 16, fl.
169v.
(1) Escreveu a Relação do que obrarão na segunda missão, os annos de 1663, e 664. ABPE, CXVl·l-3. Publicada por Luís Silveira em 1945, Lisboa. Bertrand.
1666/05/22
PETIÇÃO
FEITA EM CACHEU POR FREI TEODORO DE BRUXELAS E FREI BASÍLIO DE CABRA (22-5-1666)
SUMÁRIO
- Documentos relativos ao milagre sucedido
no enterro do Padre Serafim de Leão, assim como do Padre António de Jimena.
Copia
de la petición que en Cacheu hicieron los PP. Fr. Teodoro de Bruselas y Fr.
Basilio de Cabra, para la justificación
jurídica de un milagro que se notó en el entierro dei V. P. Fr. Serafín de León,
cuyo original está en el Archivo de Indias:
Fr.
Teodoro de Bruselas y Fr. Basílio de Cabra, religiosos capuchinos de la Orden
de N. P. San Francisco y Misioneros Apostólicos por la Santidad dei Sefior Papa
Alejandro VII, de gloriosa memoria. Habiendo venido de la Sierra Leona a esta
población de Cacheu, habiendo oído decir que la muerte de N. M. R. P. Serafin
de León, Misionero Apostôlico que fué en est~s partes de Guinea, fuê
en esta población de Cacheu y se enterró en la íglesia siendo Vicario de ella el Ldo. Simón Cabral
Carmelo, y capitán y gobernador de
esta plaza, Manuel Rodríguez Salgado, que fué el afio del Sefior de 1657,
por últimos dei mes de mayo, y hallando en esta población algunos de los más
principales de ella que asistieron presentes al entierro de dicho R.P."
nos certificaron con toda verdade que llevándole a la sepultura, estando unos
acólitos tocando a doble, las campanas,
no obedeciendo a la acción que los muchachos hacían de doble, ellas repicaban.
Y juzgando los ministros y seculares que se ha llaban presentes, que los
muchachos repicaban voluntariamente, salieron de la iglesia por dos o tres
veces a mandarles doblarpara difunto. A
lo cual ellos respondieron que tocaban a dobles, mas que las campanas querían
repicar, que ellos no tenían la culpa.
Y
el sefior Vicario, queriendo él mismo salir al remedio, el capitán Jorge González y otros de los que presentes se hallaron,
le respondieron: «Si Dios quiere, sefior Vicario, que las campanas repiquen,
qué culpa tienen los muchachos? Ello es obra de Dios, dejémoslos estar.
Con
que duró el repicarse las campanas en la forma dicha cosa de un cuarto de hora.
Esto fué patente y notorio en toda esta población, y para que conste de ello,
nos ha parecido tomar estas noticias autenticadas de la fe de escribano
eclesiástico y firmadasde las personas más principales de esta población como
testigos de vista y fidedignas.
Fecha
en Cacheu, en 22 de mayo de 1666.
(Siguem
las firmas y testificación del escribano).
Fr.
Teodoro de Bruselas y Fr. Basilio de Cabra, religiosos capuchinos de N. P. S.
Francisco de la Provincia de la Inmaculada Concepción de Nuestra Seiiora en los
reinos de Andalucía, y Misioneros Apostólicos por la Santidad de N. M. S. P.
Alejandro VII, de gloriosa memoria. Por ser costumbre de nuestra sagrada
religión cuando sucede que algunos religiosos de ella mueren fuera de la
Religión, pedir y suplicar a los Vicarios de la iglesia adonde fueron
enterrados, den licencia para que se saquen sus huesos y se lleven a la Província
de donde fueron hijos dichos religiosos, para juntarlos con los de sus hermanos
en parte decente. Y por cuanto nos fué encomendada esta diligencia por N. M. R.
P. Provincial, en su nombre pedimos y suplicamos a Vuestra Merced M. R. P. Maestro Antonio Vaz de Ponte, como a
Vicario y Visitador de estas partes de Guinea para que se sirva de dar
licencia para que se saquen los buesos de N.M.R.P. Fr. Serafín de León y los de
su compafiero e reverendo P. Fr. Antonio de Jimena, religiosos de nuestra Orden
y Provincia, que están enterrados en esta iglesia de Cacheu por vía de
depósito, para llevarlos a su Provincia, atento a que están en tierra de
gentiles y esta plaza con poca estabilidad y subsistencia, pues es muy posible
se mude su población a otra parte más segura, pues para ello hay de S. M.
licencia, y quedarán estos lugares profanados de dichos gentiles, que· de ello
quedará nuestra Província en todo tiempo agradecida, etc. Dios guarde a V. M.
muchos afios.
Cacheu
y mayo a 22 de 1666 anos.
El
Visitador y Vicario dió la licencia solicitada en esa misma fecha, aunque con
gran sentimiento de que se retirasen de aquella iglesia los huesos «de tan
religiosos varones y que vivieron en estas partes con tanto ejemplo y virtudes
como a mí y a todos es notorio».
Pero, por desgracia,
los cuerpos de los mencionados misioneros no pudieron ser encontrados, como consta del
testimonio del escribano eclesiástico: Eu Custodio
Ribeiro Cleriguo Presbítero da Ordene abito de San Pedro, escrivão do
Eclesiastico nesta povoação de Cacheu
Rio de Santo Domingos. Dov fee em como os Ros. Pes. Capuchinhos Missionarios
por sua Santidade nestas partes de Guiné, fizerão deligencias grandes para a
busqua dos ousos de P. Fr. Seraphin da Leaon, e de P. Fr. Antonio de Ximena, e
per naon se saber a certeza de donde estavan, por se aver mudado a Y greja e se
busquo quavando em parte. E por todo passar em minha prezencia, e dar fee de
tudo. E os Ros. Pes. me pedirem lhes pasej este en Cacheu,
2
de Maio de 1666 annos. Custodio Ribeiro».
BNM - ms. 3561, fl. 28.
1666/09/20
O
capitão JOÃO CARVALHO MARTINHO dá conta da sua chegada à capitania de Cacheu e
da necessidade que tem de soldados para sua defesa.
1667/02/01
Nomeação de MANUEL DA COSTA PESSOA no cargo de
capitão e governador-geral de Cabo Verde. Capitão-general e Governador-geral de Cabo Verde Desde 21 de Maio de 1667. Cavaleiro da Ordem de Cristo, do Conselho de Sua Magestade, Comendador da Cpmenda de S. Pedro de Lourosa.
«
Em 1 de fevereiro de t667 foi nomeado Manuel da Costa Pessoa, fidalgo e tenente
de cavallaria entre Douro e Minho, governador e capitão-geral das ilhas,
tomando possse em 21 de maio do mesmo anno.
Este governador esteve
preso na cadeia, sem culpa formada, e veio sob prisão para Lisboa, trazendo-o o
capitão-mór Antonio de Sousa, ficando solto por não se lhe achar culpa.»
- Subsídios para
a História de Cabo Verde e Guiné, por Christiano José de Senna
Barcellos, parte
II, pg. 48, Lisboa, 1900
1567/05/21
Por
ordem deste Governador fez FRANCISCO DE
AZEVEDO COELHO uma Descripção da Costa de
Guiné desde o Cabo Verde até Serra-Leôa, a qual lhe offereceo a 8 de
Setembro de 1669.
Este
Ms. Está Na Bibl. Publica de Lisboa com a marca – B – 3 – 57.
1667/09/29
Nomeação de CHRISTOVAM DE GOUVEIA MIRANDA no cargo
de capitão e sargento-mór da ilha do Fogo
1667/12/10
O almoxarife de Cabo Verde MANUEL QUARESMA faz queixa do deão da sé e
manda-o punir.
1667/12/12
MANUEL DE ALMEIDA, capitão de Cacheu, pede munições e apetrechos para a praça .
1668
Manuel
Correia Lacerda, capitão, nomeado interinamente ouvidor.
1668/01/17
Na
ilha de Santiago, o cabido manteve-se no centro da conflitualidade, a situação
da igreja cabo-verdiana degradou-se paulatinamente ao ponto de o deão, o reinol
DR. MANUEL DINIS RIBEIRO, que
exercia em simultâneo os ofícios de provisor e vigário– geral do bispado ter
sido assassinado em sua casa na cidade
de Ribeira Grande, em 17 de Janeiro de 1668. Da devassa feita para apurar
os factos concluiu -se que os principais
responsáveis eram os seus pares no cabido, que o deão havia denunciado à
justiça eclesiástica.
1668/03/29
Capitão podia também
corresponder a uma patente ad honorem, mercê concedida pelo monarca a
pedido do “suplicante” ou peticionário num dado momento da sua carreira
militar8. O “suplicante” podia também ser alguém que, apesar de exterior à dita
carreira, buscasse nesse título uma recompensa por um determinado serviço9.
Por ex., cfr. a consulta do Conselho
Ultramarino, Lisboa, 29 de Março de 1668, sobre Agostinho Duarte que indo levar Manuel de Almeida a Cacheu, pede,
pelos seus serviços e como se tinha feito a outras muitas pessoas que
levaram semelhantes socorros, uma patente de capitão de seu navio e um dos
hábitos de Santiago ou de Avis. O Conselho foi de parecer que “lhe deve Vossa
Magestade mandar passar patente de Capitão de mar e guerra do seu navio ad honorem, para que com
este exemplo se animem outros fabricar navios e fazer viagens”, sendo-lhe
concedido um hábito não especificado.
AHU, Guiné, caixa 2, doc. 44
AHU, Guiné, caixa 2, doc. 44
1668/09/29
«Em 29 de setembro foi nomeado Christovam de Gouveia Miranda capitão e
sargento-mór do Fogo.» -
Subsídios para a História
de Cabo Verde e Guiné, por Christiano José de Senna
Barcellos, parte
II, pg. 49, Lisboa, 1900
1669
FRANCISCO DE LEMOS
COELHO,
Capitão, [prático dos Rios de Guiné] publica a Descripção
da costa de Guiné desde o cabo Verde athe a Serra Lioa com todas as ilhas e
rios a que os brancos asistentes nella navegão
«A Guiné é dividida em muitos reinos de diversas
nações, que se subdividem em outros. Segundo a fiel e exacta antiga Memoria
sobre Guiné de Coelho escripta em 1669, eis aí os reinos que lá se encontram.
Assim,
entre o rio Casamansa e o Cacheu ou de S. Domingos, é onde está Zinguinchor e
Bolor, e antignmente existia S. Domingos, o primeiro estabelecimento feito naquelas
paragens pelos descobridores, encontramos os Felupes. Entre o rio de S.
Domingose o de Jatt, naquela parte onde está Cacheu, existe o gentio Churo e as
naçôes Papel e Banhame; aqueles últimos e mais os Balantas habitam desde ali
até Fá e Geba. Ao norte do rio Cacheu estam os Cassangas e Baiotes.
A
ilha
de Bissao é habitada pelos Bijagós e Papeis.
Entre
o rio de Bissau e o rio Grande predomina a nação Biafara, como os Nalus entre
aquele o rio Nunes.
As
nações principais nestas paragens são os Jalofos, Fulas e Mandingnas.
Os
Jalofos em geral habitam o littoral do Oceano desde o rio Senegal até o Gâmbia.
Os
Fulas se estendem ao norte e lesle do Senegal, e nas imediações do Gâmbia em
pequeno número: porém a maioria leva uma vida errante. Os Mandingas habitam
ambas as margens do Gâmbia, mas não deixam de ser enconlrados por todas as
partes de Guiné como e no interior de África. Esta nação é originária de Jaga,
mas por uma daquelas, na nossa historia tão frequentes
e notórias
transmigrações, estabelecendo-se no paiz de Galam aonde é muito
poderosa e forma uma especie de República.»
1669/12/09
Francisco Pereira, bacharel, nomeado
ouvidor em 9 de Dezembro de 1669, só chegou a tomar posse em Dezembro de 1674,
quando se viu livre do cativeiro em que se encontrava na Argélia.
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