segunda-feira, 7 de março de 2016

DESCOBRIMENTO DA GUINÉ 1446 - MORTE DE NUNO TRISTÃO - ESTUDO DE AVELINO TEIXEIRA DA MOTA


1446/05/00
«Neste anno fez Luiz de Cadamosto a sua segunda viagem em huma caravela, acompanhado de outra em que ia António de Nola, e de outra do Infante D. Henrique, tudo com licença, e aprazimento deste Principe. Sahírão de Lagos no principio de Maio.
Na altura de Cabo-verde descobrirão quatro das ilhas, que do mesmo cabo se denominão, e diz Cadamosto, que outros, que depois ali forão, as reconhecerão, e acharão serem dez, entre grandes, e pequenas, e todas desabitadas. Das quatro que agora se descobrirão, derão á primeira o nome da Boa-vista por ter sido a primeira que naquelles mares avistarão; a outra (que lhes pareceo a melhor das quattro), chamarão de Santiago. As outras duas, a que Cadamosto aqui não dá nome, serião provavelmente a de S. Filippe e de S. Christovão, que também se chamou do Sal. Parece que todas forão descobertas no dia 25 de Julho.
Deixadas estas ilhas, vierão em demanda do Cabo-verde. Tocarão o lugar das duas palmas (entre o Senegal e o Cabo), assim chamado das que ali collocou ou designou Diniz Fernandes, como marco para denotar o sitio em que os povos Azenegues, se apartão dos negros idolatras. Forão ao Gambia, e entrarão por elle mais de 60 milhas, até o senhorio de Battimanza, aonde estivarão 11 dias, permutando as fazendas, que levavão, por ouro, e escravos.
Do Gambia, navegando ao sul, descobrirão o rio que chamarão de Caramanza, do nome do senhor, que ali governava, o qual ficava 25 léguas ou cem milhas, alem do Gambia. O seu nome, segundo Damião de Góes, era Rha. D'aqui correndo sempre a costa no rumo do sul, descobrirão, a cousa de 20 milhas de distancia, hum cabo a que derão o nome de Cabo-vermelho, pela apparencia da çôr da terra (ou Cabo-roxo). Pouco adiante chegarão a hum rio, que denominarão de Santa-Anna. D'aqui navegando descobrirão outro rio, a que derão o nome de S. Domingos, e por estimativa julgarão distar do Cabo-vermelho obra de 55 a 60 milhas. Continuando a navegar mais huma jornada pela costa, descobrirão outro rio grandíssimo, que tinha na bocca mais de 20 milhas de largura. Este se ficou chamando o Rio Grande. Defronte delle avistarão ao mar algumas ilhas, que estarião a cousa de 30 milhas de distancia da terra.
«Rio Gambia, denominado pelos oriundos Badiman; o Rio Grande, que comparo com o Ganges, pelas suas muitas bôcas, caturhamado pelos naturaes do interior Comba, (onde he situada a nossa Colonia de Bissáo) e outros mais…»
DESCRIPÇAO DE SERRA-LEOA E SEVS CONTORNOS. ESCRIPTA EM DOZE CARTAS A' QUAL SE AJVNTÃO OS TRABALHOS DA COMMISSÀO-MIXTA PORTUGUEZA E INGLEZA, ESTABELECIDA NAQUELLA COLONIA. O. D. C. À SOCIEDADE LITTERARIA E PATRIOTICA
Desta paragem voltando ao reino fizeram caminho por aquellas ilhas, e observarão que duas dellas erão grandes, e habitadas de negros, e as outras duas mais pequenas; mas não se podendo entender com os habitantes, continuarão viagem para Portugal.
Vê-se pois, que nas duas viagens, em que foi Cadamosto, se descobrio a costa desde o rio Barbacim, 60 milhas ao sul de Caboverde, até o Rio Grande, e no mar as quatro ilhas de Cabo-verde, e as outras quatro, de que acabamos de fallar, e que são sem duvida as que formão o archipelago dos Bissangos.
Os nossos navegadores denotavão a embocadura do Rio Grande em 11° de lat. septemtr., e parece que o remontarão por espaço de algumas 90 léguas até chegarem a huma cataracta, que os não deixou hir avante.
Pelo tempo adiante se fundarão nas suas margens alguns estabelecimentos portuguezes.
(2.ª Relação das navegações de Cadamosto — Cordeiro Hist. Insulan.)»

Índice chronologigo das navegações, viagens, descobrimentos e conquistas dos portuguezes nos paizes ultramarinos desde o principio do século xv. Francisco de S. Luiz, Lisboa, na Imprensa Nacional, 1841, pg.31-33
«Em 1446 - Desejoso de descobrir novas terras, Nuno Tristão a quem se deveu o reconhecimento do Cabo Branco e de Arguim, voltou novamente à costa da Guiné com uma caravela, «e passando per o Cabo Verde, foi mais avante LX leguas, onde achou um rio em que lhe pareceu que deveria de haver algumas povoações; pelo qual mandou lançar fora dois pequenos bateis que levava, nos quais entraram 22 homens, scilicet: em um dez e no outro doze.
E começando assim de seguir pelo rio avante, a maré crescia com a qual foram assim entrando, seguindo contra umas casas que viam à mão direita. E acertou-se que antes que saíssem em terra saíram de outra parte 12 barcos, nos quais seriam até 70 ou 80 Guinéus, todos negros, e com arcos nas mãos. E porque a água crescia, passou-se a além um barco de Guinéus e pôs os que levava em terra, donde começaram de assetar aos que iam nos bateis.
E os outros que ficavam nos barcos trigavam-se quanto podiam por chegar aos nossos e despendiam aquele mal aventurado almazem, todo cheio de peçonha sobre os corpos dos nossos naturais. E assim foram seguindo, até chegarem à caravela que estava fora do rio, no mar largo». (Azurara, cap. LXXXVI).
Morte de Nuno Tristão
Perseguidos sempre pelos indígenas, Nuno Tristão e os seus companheiros passaram para bordo da caravela, abandonando apressadamente os dois bateis. Cortaram as amarras e fizeram-se ao largo. Dos 22 homens que haviam desembarcado, vieram a falecer 20, incluíndo o chefe, João Correia, Duarte d'Holanda, Estevão de Almeida, Diogo Machado e outros escudeiros. Os seus cadáveres foram lançados ao mar.
A tripulação do navio era diminuta e constituída apenas por 24 homens, o que demonstra o arrojo dos nossos expedicionários.
Com a perda dos 20 tripulantes ficaram a bordo apenas cinco pessoas: o escrivao do navio, Aires Tinoco, dois escudeiros, 1 grumete e 1 rapaz preto, aprisionado dias antes. Aires Tinoco auxiliado pelo grumete, conduziu o navio, durante dois meses em direcção norte, pelo mar alto, até que já na costa de Portugal avistou um navio gaIego que o orientou em direcção ao Algarve.
Assim descreve o cronista Azurara a descoberta dos rios da Guiné e a morte de Nuno Tristão em 1446. Em homenagem à memória dêste valoroso cavaleiro, deu-se o nome de Rio Nuno (ou rio Nunes) a um rio situado na actual Guiné Francesa, supondo-se que o desastre teria ocorrido nesse local. Mas sôbre êste ponto não podemos chegar a uma conclusão segura.
Como Azurara declara que o rio em questão ficava situado 60 léguas ao Sul do Cabo Verde, fácil seria determinar na carta a sua posição, se pudessemos saber com segurança o valor métrico da légua a que Azurara se refere.
Mas já vimos atrás, em relação à Pedra da Galé, que a contagem de léguas na Chronica não merece grande confiança; ou temos de atribuir à légua de Azurara uma extensão especial, não superior a 2.500 metros. Sendo assim, teríamos de concluir que Nuno Tristão não passou além do rio Gâmbia, onde terminam as 60 guas de Azurara, contadas do cabo Verde.
É curioso notar que esta hipótese condiz com a descrição que Diogo Gomes faz ste desastre. Referindo-se à viagem de Nuno Tristão, informa o almoxarife de Sintra:
«Navegando além ainda foram à terra de Barbacins e acharam um rio pequeno que agora chamam Ryo Nuno Tristan. Indo além viram muitos negros daquela terra em almadias dentro no rio e fora no mar, com setas venenosas, e mataram todos estes christãos. E tomaram a caravela ·e levaram-na para dentro do rio e destruíram-na.
E eu Diogo Gomes tive muito tempo depois uma ancora que me deu de presente o rei dos pretos. E eu fui o primeiro christão que fiz paz com eles, e este rei se chama Nomemains (ª) e é senhor de muitas aImadias...»
Mais adiante, descrevendo a sua viagem no rio de Gâmbia, Diogo Gomes volta a falar da morte de Nuno Tristão e dos homens de Nomemansa que teriam sido ou autores não só dessas mortes, mas também dos desastres sucedidos aos companheiros de Estêvão Afonso e Valarte. Nestas condições, Nuno Tristão não teria passado além da Gâmbia e não seria o descobridor do Rio Grande de Geba, como geralmente se costuma dizer.
Mas à morte dêste intrépido navegador refere-se também João de Barros. Na Decada I (cap. XIV do liv. I) da Asia lemos o seguinte: «...O ano de 446 tornou Nuno Tristão em uma caravela por mando do Infante a descobrir mais costa...e como era diligente nestas coisas, passou alem do Cabo Verde obra de sessenta e tantas leguas, até chegar onde ora chamam o rio Grande (b)...por ter uma grande entrada... Alguns dizem que este caso aconteceu em um rio a que ora chamamos de Nuno, que é alem do rio Grande vinte leguas, e que desta morte de Nuno Tristão lhe ficou o nome..
Nestes termos, segundo a versão de João de Barros, a caravela de Nuno Tristão teria alcançado em 1446 o rio de Geba, onde aliás terminam as 60 e tantas léguas de 5.800 metros a contar do· Cabo Verde. Mas, como vimos, esta informação está em desacôrdo com o relato de Diogo Gomes, que foi contemporâneo dos acontecimentos, ao passo· que João de Barros escreveu 100 anos depois.
Por tôdas estas razões parece que devemos reservar o nosso juízo sôbre o ponto em questão, enquanto novos elementos de informação não venham esclarecer o caso.
(a)Nomemansa é palavra composta de Mansa, que significa rei, e de Nome, designação da tríbu indígena, do grupo de mandingas, que habita as margens do rio Gâmbia.
(b)Sob o nome de Rio Grande designam os autores urnas vezes o rio de Buba ou de Bolola e outras vezes, o rio de Geba ou de Bissau. Daqui resulta por vezes confusão na interpretação dos textos antigos e até modernos. Na realidade trata-se de dois braços de mar ou canais, o de Bissau e o de Buba. O primeiro vai até as proximidades de Xime e ali recebe as águas de dois rios, o Geba que banha a povoação de Bafatá e do rio Corubal, que percorre muitos quilómetros no território francês e é chamado por estes Rio Grande, talvez por se ter sido considerado outrora como continuação do Rio Grande de Bolola.
O canal de Buba, não obstante ser menos largo e menos extenso que o de Bissau, é muitas vezes designado pelo nome de Rio Grande, principalmente nos escritos e mapas ingleses. Para prevenir possíveis confusões, neste nosso trabalho, evitaremos de empregar a designação de Rio Grande, preferindo chamar rio de Bissau ou de Geba ao que banha estas povoações, e rio de Buba ou de Bolola ao canal que começando ao sul da ilha de Bolama. vai até à povoação de Buba. Este canal foi também conhecido pelo nome de Rio de Biguba.»
João Barreto, HISTÓRIA DA GUINÉ 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 32-35
☻ Depois de invocar as cinco razões «por que o senhor Infante foi movido buscar as terras da Guiné» o cronista Azurara fala-nos das sucessivas viagens de caravelas ao longo da costa de África e conta-nos da aventura de NUNO TRISTÃO, «cavaleiro criado na câmara do Infante. Que depois de por três vezes passar com a sua caravela pelo cabo Branco, a quarta chega a um rio em que lhe pareceu que deveria haver algumas povoações»... Corria o ano de 1446.
☻ Entremos agora no ano de 1446, ano de grandes acontecimentos.
NUNO TRISTÃO é pela quarta vez encarregado de descobrir novas terras e como nobre cavaleiro que era cumpriu a honrosa missão que lhe fora confiada, embora neste acto tivesse perdido a vida com mais 19 companheiros. Transpôs Cabo Verde algumas léguas e atingiu os rios da Guiné. O primeiro contacto com os guinéus não foi favorável, houve sacrifícios e não pequenos da gente portuguesa.
Viagem descrita por ZURARA (Cap. x.xxxvr), DIOGO GOMES e JOÃO DE BARROS (Déc. I, Liv. I, Cap. XIV).
O âmbito desta viagem tem provocado grande controvérsia, por estar ligada à descoberta do território da actual Guiné Portuguesa. Os elementos principais que podem permitir a identificação do términus são os seguintes:
ZURARA
1 -A viagem para o Sul terminou num rio.
2 - Esse rio distava 60 léguas do Cabo Verde.
3 - Os indígenas da região usavam canoas rápidas e flechas envenenadas.
4 - Nuno Tristão e a maior parte dos companheiros foram mortos pelos indígenas.
DIOGO GOMES
1 - A caravela passou à terra dos Sereres e chegou à dos Barbacins.
2 - O ataque deu-se na terra dos Barbacins, num rio chamado NutioTristéüj ou noutro perto e para Sul.
3 - Os indígenas usavam flechas envenenadas.
4 - O rei dos indígenas atacantes chamava-se Nomimatu, e dominava na margem norte do Gãmbia, junto da foz.
5 - Nuno Tristão e os companheiros foram mortos, sendo a caravela tomada.
JOÃO DE BARROS
1 - A caravela chegou ao Rio Grande (Canal do Geba), a sessentae tantas léguas do Cabo Verde.
2 - Os indígenas usavam canoas rápidas e flechas envenenadas.
3 - Nuno Tristão e a maior parte dos oompanheiros foram mortos pelos indígenas. ·
4- No tempo de JOÃO DE BARROS (meados do século xvi) corria tambérn que Nuno Tristão fora morto no Rio Nuno.
Vejamos agora como se têm pronunciado os historiadores e investigadores quanto ao términus da viagem:
a) 1563 - ANTÓNIO GALVÃO (B 18) - Rio além do Rio Grande (deve referir-se ao Rio Nuno).
bj 1567 - DAMIÃO DA GOES (B 19) - Rio Tristão (Rio Nuno).
c) 1662 - MANUELDE FARIA ESOUSA (B 16) - Rio Grande.
d) 1762 - MANUEL PIMENTEL (B 31) - Rio Nuno.
e) 1841 - VISCONDE DE SANTARÉM (B 1) - Rio Nuno.
f)  1844 - LOPES DE LIMA (B 24) - Rio Nuno.
g) 1866 - A. MAGNO DE CASTILHO (B 11) - Rio Nuno.
h) 1868 - R.HENRY MAJOR (B 26) - Rio Grande.
i) 1896/99 - C. R. BEAZLEY e E. PRESTAGE (B 2) - Rio Nuno.
j)  1925 - CHARLES DE LA RONCIÈRE (B 32) - Rio Gãmbia.
k) 1931 - ARMANDO CORTEZÃO (B 12) - Rio Gnnde.
I)  1937 - JOSÉDEBRAGANÇA (B 35) - Rio Grande.
m) 1938 - JOÃO BARRETO (B 4) - Rio Gâmbia ou Rio Grande.
n) 1938 - DEMOUGEOT (B 13) - Impossibilidade deidentificação,mas o rio Nuno não pode ser.
o) 1940 - FONTOURA DA COSTA (B 18) - Rio Grande.
p) 1941 - DUARTE LEITE (B 22) - Rio Gãmbia.
q) 1943 - DAMIÃO PERES (B 30) - Rio Gãmbia.
r)  1945 - MAOALIIÃES GODlNHO (B 25) - Rio Gâmbia.
s) 1946 - A. TEIXEIRADA MOTA (B ·33) - Niumi (talvez o R. Jumbas).
t)  1946 - A. J. DIAS DINIS (B 14) - Rio Grande
u) 1946-A. J. DIAS DINIS (B 15) - Rio Grande.
v) 1946 - M. C. BAPTISTA o-a LutA (B 3) - Rio Gâmbia.
w) 1946 – JOSÉ DE OLIVEIRA BOLÉO (B 28) - Considera difícil a identificação, inclinando-se, porém, para o rio Gâmbia.
x) 1946 - DUARTE LEITE (B 23) - Rio Gâmbia.
y) 1947- MORAIS TRIGO (B 27) - Rio Nuno.
As opiniões expendidas podem agrupar-se facilmente da seguinte maneirae consoante os seguintes factos:
1 - Desde a Década I de BARROS (poucos anos depois da sua publicação perdia-se em Portugal o rasto da Crónica de ZURARA) até à 1.ª edição da crónica de ZURARA (VISCONDE DE SANTARÉM, descoberta do Códice de Paris) - Só é conhecido o texto de BARROS, pelo que as opiniões se dividem pelo Rio Grande e pelo Rio Nuno, com fundamento apenas no referido texto.
2 - Desde a 1.ªedição de ZUARA até à pulicação da História da Guiné de JOÃO BARRETO - A indicação das 60 léguas além do Cabo Verde como términus da viagem (ZURARA), vem confirmar a opinião de BARROS. No entanto continua também a persistir a tese do Rio Nuno.
A descoberta do códice de VALENTIM FERNANDES, com o relato de DIOGO GOMES, passa despercebida aos que se ocuparam do assunto.
3 - Desde a publicação da História da Guiné de JOÃO BARRETO ao estudo «Acerca da Cronica dos feitos de Guinee» de DUARTE LEITE - Pela primeira vez o relato de DIOGO GOMES é trazido para a discussão, suscitando a dúvida entre o Rio Grande e o Rio Gâmbia.
4 - Desde a publicação do estudo de DUARTE LEITE até agora.
A fidelidade da narrativa de ZURARA é fortemente contestada. Verifica-se nas distâncias um erro permanente para mais, atingindo por vezes valores consideráveis. As opiniões inclinam-se para o rio Gâmbia; suscitam-se debates e de novo aparece a tese do Rio Grande, e, mais uma vez, a doRio Nuno (baseada em lenda nalú). É deste último período que nos ocupamos agora com mais pormenor.
DUARTE t.EtTE (p), baseado em vários factores, mas principalmente no facto, demonstrado por si, do constante erro para mais de ZURARA, pronunciava-se pelo Rio Gâmbia. Tal opinião seguiu DAMlÃO PERES (q) acrescentando novo elemento (acordo entre ZURARA e DIOGOGOMES quanto à margém de onde vieram os atacantes). MAGALHÃES GODINHO (r) também se pronunciou de igual forma.
No nosso trabalho (s), ainda que contestando alguns pormenores, seguimos, de uma maneira geral, as conclusões dos três últimos investigadores,acrescentando à discussão um certo número de elementos de carácter náutico-geográfico e etnográfico, que não citamos para nos não alongarmos demasiado.
Em nossa opinião o texto de BARROS não é mais que um resumo de ZURARA, sem quaisquer elementos novos (àparte a referência às opiniões coevas), não passando a sua identificação do términus da viagem de uma ilacção baseada nas 60 léguas do cronista de quatrocentos.
Além disso aprovámos:
a) O carácter lendârio da tese do Rio Nuno, demonstrado pela cartografia. Possivelmente a designação provém de outro navegador como nome de Nuno (como já DUARTE LElTE sugerira).
b) O grande valor do relato de DIOGO GOMES, pela identificação do Nomimansa. Da cartografia e de antigos e actuais textos geográficos e etnográficos mostrárnos tratar-se do Rei de Niumi, região entre o Gâmbia e o Jumbas (aos elementos então citados acescentarnos que na carta de PINET-LAPRADE, de 1865, B 6, págs. 4 - se encontra a citada região designada por Gniome; de DUARTE LEITE, B 23, págs. 130, nota 29,verificamos estar provada a afirmação que fizemos de que o Guermimenso da edição de CADAMOSTO de que nos servimos era uma deturpação de designação mais correcta da 1.ªedição, que agora sabemos ser Gnumimensso.
Por esta forma ooncluínos então que NUNO TRISTÃO deve ter sido morto no Niumi; em vez do Rio Gâmbia, inclinámo-nos porém para a parte Sul do estuário Salum-Jumbas, mais possivelmente o Jumbas (o Rio de Nuno Tristão de DIOGO GOMES deve ser o Salum). É esta a opinião que hoje continuamos a sustentar.
Precisamente na mesma altura em que era publicado o nosso trabalho, saía o de DIAS DINIS (t) voltando à tese tradicional do Rio Grande. As bases da sua conclusão eram as seguintes:
a) É errada a afirmação de DUARTE LEITE de que as distâncias indicadas por ZURARA estão sistematicamente eivadas de um erro por excesso. - Deve portanto dar-se crédito às 60 léguas do cronista, queterminam aproximadamentc no Rio Grande.
b) O texto de BARROSé digno de toda a confiança na parte em questão, e tem elementos estranhos a ZURARA, pelo que a sua opinião é argumento decisivo.
c) O texto de DIOGO GOMES não tem qualquer valor, pois a sua relação foi decalcada pela de CADAMOSTO, e possivelmente nem sequer aquele navegador henriquino esteve no Gâmbia. Não prova portanto esse texto nada contra a tese do Rio Grande.
Pouco depois, DIAS DINIS, numa tese (u) apresentada ao Congresso Comemorativo do V Centenário da Descoberta da Guiné (Sociedade de Geografia de Lisboa), insistia nas mesmas conclusões, tentando ainda numa comunicação especial (publicada depois no jornal “AVoz”, de 22de Maio de 1946, Lisboa; transcrita no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.,n.º 3, Julho de 1946, págs. 584-586), explicar a designação do Rio de Nuno Tristãio (na terra dos Barbacins) de DIOGO GOMES.
Nesse mesmo Congresso BAPTISTA DE LIMA (v) seguia os pontos de vista de DUARTE LIMA; e DAMIÃO PERES, inclinando-se também para eles. OLIVEIRA BOLÉO (w) que, escreveu o seu trabalho antes da publicação dos posteriores (r), não os oonhecendo portanto.
Já em noticia do livro de DIAS DINIS (no «Boletim Cultural da Guiné Portuguesa», n.º 3, Julho de 1946, págs. 628-629) havíamos discordado da opinião do autor, não considerando os seus argumentos suficiente para creditar a tese tradicional de BARROS.
Foi, porém, DUARTE LEtTE (x) quem os veio contestar a fundo, mantendo a sua opinião inicial do Rio Gâmbia. Da análise que fez o trabalho de DIAS DINIS, concluíu:
a) ZURARA erra sistematicamente para mais nas distâncias que indica. As 60 léguas do cronista devem portanto reduzir-se.
b) A afirmação de BARROS (términus no Rio Grande) não é de confiança, pois não são os elementos de que serve além de ZURARA e que aliás nem sequer indica. Os seus erros na descrição das viagens henriquinas são frequentes.
c) O relato de DIOGO GOMES é absolutamente independente do de CADAMOSTO e de maior valor, na parte em questão, que os textos de ZURARA e BARROS.
Já na nossa citada notícia havíamos manifestado exactamente os mesmos pontos de vista, sem os basear. Como a argumentação principal já ficou exposta por DUARTE LEITE, desistimos de o fazer, limitando-nos a acrescentar apenas alguns pormenores, para melhor esclarecimento:
De uma caravela que estivesse no Canal do Geba por alturas do Enchudé não era possível ver qualquer povoação na margem Sul. Essa margem, completamente alagadiça, prolonga-se muito para o interior por uma extensa planície. Só no· fim dela e na orla da floresra era possível a existência de povoações - mas já não podiam ser vistas de bordo devido à distância e ao mangal. Aliás temos fortes razões para crer essa região despovoada então. Por mais que procurássemos nos antigos textos geográficos nada encontrámos sobre relações comerciais com gente da margem sul, desde a boca do canal até Jabadá. E a população que lá está hoje é recente, emigrada da margem norte à procura das férteis e extensas planlcies. São todos balantas; e embora a região fosse pertença dos biafadas, estes não parece que lá tivessem povoações, pois hoje não há disso vestígios e eles não se interessam pela cultura do arroz como os balantas. Aliás pudemos ainda apurar que os primeiros balantas que foram para o Enchudé e Jabadá, sofreram, de vez em quando, os ataques dos biafadas, vindos do interior da Guinala e da margem norte do Rio de Buba. Por todas estas razões consideramos fortemente improvável que Nuno Tristão pudesse ter avistado de bordo povoações no Enchudé ou nessa margem daí para juzante.
(a)O termo Mansa não é privativo do Mandimansa. Nos textos coevos e posteriores encontram-se, entre outros, os seguintes mansas, perfeitamente identificados: Gormansa (de Coli), Gnumimansa (do Niumi), Uli Mansa (de Uli), Nhanimansa (de Iani), Casamansa (de Casa), Batimansa (de Bati), Mansa Folup (Rei dos Felupes), Combomansa (de Combo). Portanto o termo Nomimansa e Gnumimansa, nada tem de imaginário, antes corresponde a uma perfeita realidade geográfica e social. Basta consultar os textos antigos para o verificar. Aliás perguntando ainda hoje a qualquer mandinga ele explica que mansa ou mansó é a designação de qualquer régulo ou rei.
(b)Não tem qualquer fundamento a confusão, que CADAMOSTO e DIOGO GOMES teriam praticado, entre Nianimansa e Nomimansa ou Batimansa.
(c)É absolutamente imdemonstrável que o relato de DIOGO GOMES seja cópia do de CADAMOSTO; a independência entre eles não tem qualquer dificuldade de prova.
(d)O relato de ZURARA aplica-se com muito mais facilidade ao estuário Salum-Jumbas ou ao Gâmbia mesmo, do que ao Canal do Geba.
(e)A confiança que merecem as afirmações (e ilacções) de BARROS, neste capítulo, pode avaliar-se pela transformação do Guitenia de ZURARA num Farim (na viagem de Valarte). Creio ser um exemplo bem comprovativo de que aquele simplesmente extractou e interpretou a seu modo o texto deste. E esta afirmação não pretende desabonar de modo algum o grande historiador quinhentista: ele pretendeu simplesmente tornar mais claro  o confuso e omisso cronista palaciano. Por outras palavras: BARROS não se limitou a ser um compilador de notícias; quis fazer aquilo que afinal nós hoje andamos a tentar – interpretar ZURARA.
Por tudo isto manemos a nossa opinião.
Mais recentemente ainda, MORAIS TRIGO (y) veio reavivar a velha tradição do Rio Nuno, baseado numa lenda recolhida entre os nalús de Cacine. Em nosso entender, porém, o assunto deve ser mais largamente aprofundado, para procurar discernir a origem da lenda, o seu grau de veracidade e sua expansão geográfica. À primeira vista, porém, parece-nos que, admitindo-a, ela vem apenas confirmar que o Rio Nuno foi descoberto por um navegador com esse nome, o que não quer dizer que fosse Nuno Tristão.
Em nosso parecer, portanto, o términus da viagem de Nuno Tristão foi o Niumi, inclinando-me ainda para o estuário Salum-Jumbas (talvez o Jumbas), de preferência ao Gâmbia.
A VIAGEM DE NUNO TRISTÃO (1446) (23)
Antes de iniciar a discussão sobre o términus, transcrevem-se, para melllor compreensão, os textos de ZURARA e BARROS nas partes que interessam a esta viagem. De DIOGO GOMES faz-se desde já o extracto do respeitante às viagens de Nuno Tristão, Valarte e Diogo Gomes.
ZURARA CAP. LXXXVI (24)
Como foi morto NunoTristam em terra de Guinee
…«ca seendo este nobre cavalleiro em perfeito conhecimento do grande desejo e vontade do nosso virtuoso principe, como aquelle que de tam pequena idade se criara em sua camara, veendo como se trabalhava de mandar seus navyos a terra dos Negros, e ainda muyto mais avante se o fazer podesse, ouvyndo…
E assy começarom a fazer vella, deixando porem os batees porque os nem poderom guindar. E assy que dos xxii que sairom fora nom escaparom mais que dous, scilicet, huu ANDRE DYAZ, e outro ALVARO DA COSTA, ambos escudeiros do Iffante, e naturaaes da cidade dEvora; e os nove e dez morrerom, porque aquela peçonha era assy artefficiosamente composta, que com pequena ferida, somente que aventasse sangue, trazya os homees ao seu derradeiro fim…»
(23) Desta viagem, como das seguintes, limitamo-nos a presentar e discutir apenas o que tenha interesse para a localização dos pontos atingidos. Abstemo-nos por isso de justificar as datas que seguimos, remetendo o leitor para DUARTE LEITE, B29, e DAMIÃO PERES, B36. Igualmente não entramos em pormenores sobre os sucessos de todas essas viagens exceptuando, é claro, os que interessam ao fim em vista), a fim de não alongar desmedidamente este trabalho.
(24) Segundo a edição de 1841.
BARROS, DÉCADA I, CAP. XIV (25)
Como Nuno Tristão e dezoito homens form mortos com erva de frechadas que houveram em hua peleja com os negros em um rio de Guiné em que entraram…
O ano de quatrocentos e corenta e seis, tornou Nuno Tristão em ua caravela per mandado do Infante a descobrir mais costa além do que Alvaro Fernandes leixava descoberto, que foi até o Cabo dos Mastos. E como era diligente nestas cousas, passou além do Cabo Verde obra de sessenta e tantas léguas, té chegar onde ora chamam o Rio Grande; e surto o navio na bôca dêle, meteu-se no batel com vinte e dous homens, com tenção de entrar pelo rio acima. Descobriu algua povoação, por ter ua grande entrada. A qual entrada fêz a tempo que a maré subia tam têsa para dentro, que em breve espaço os afastou da barra um bom pedaço, té irem dar em meio de treze almadias, em que haveria até oitenta negros, homens valentes e que se escolheram para aquêle feito, como quem tinha primeiro visto o pouso do nosso navio e depois a entrada do batel pelo rio.
Nuno Tristão, quando viu as almadias juntas e com sua chegada se apartaram uas pera ua parte e outras pera outra, pareceu-lhe que, de gente bárbara e não costumada a ver aquela maneira de hornens, fugiam para terra, porque os negros mostravam que se queriam acolher a ela. Pero, como viram o nosso batel no meio dêles, de maneira que uns ficavam abaixo e outros acirna, remeteram a força de remos todo com ua grande grita, e lançaram sôbre êle ua chuva de frechas; assi repartidos e destrados pera este modo de peleja, que, quando o nosso batel remava contra uns, acudiam da outra parte outros, andando às voltas com êle de maneira que se hão os genetes com a gente de armas. E como as frechas  eram ervadas e a fúria da peleja lhe acendia mais o sangue, começaram alguns dos nossos em barbascar e cair, que causou tornar-se Nuno Tristão ao navio, a tempo que decia a maré.
Mas pouco lhe aproveitou esta ajuda dela; porque assi tinha lavrado a ervá, que primeiro que chegassem ao navio, iam a maior parte deles mortos, o que Nuno Tristão sentiu tanto, que, entre dor e pçonha, também os acompanhou na morte.
Os quais mortos foram João Correia, Duarte de Holanda, Estêvão de Almeida, Diogo Machado, todos homens de sangue e que de moços se criaram na câmara do Infante, e assi outros escudeiros e homens de pé de sua criação, que com os mareantes podiam ser dezanove pessoas.E ainda pera maior desaventura, de sete que ficavam, dous entrando em o navio, per cajão ua âncora os feriu, de maneira que acompanharam na morte os outros. Alguns dizem que êste caso aconteceu em o rio a que ora chamamos de Nuno, que é além do Rio Grande vinte léguas, e que desta morte de Nuno Tristão lhe ficou o nome que ora tem - de Nuno. E o que neste caso se pode haver por mais maravilhoso, é que, cortadas as amarras por não haver quem as levasse, não ficando em o navio mais que um moço de câmara do Infante, chamado AIRES TINOCO, naturalde Olivença, que viera por escrivão, com quatro moços, por espaço de dous meses assi os ajudou Deus em governar o navio que o trouxeram a Lagos, não tendo nenhum dêles saber pera isso.
O Infante, porque a êste tempo estava naquela vila, quando soube parte de tam desaventurado caso, ficou mui triste, porque a maior parte dos mortos criara de pequenos, e era prícípe muito mavioso pera os criados. Mas como em outra cousa lhe não podia aproveitar, mostrou o amor que lhe tinha em o amparo dos filhos e mulheres daqueles que as tinham.
(25) Segundo a edição de 1945
DIOGO GOMES (26)
(26) Segundo a tradução de GABRIEL PEREIRA, transcrita in MAGALHÃES GODINHO. B, 32, vol. I, cap. IlI.
«Depois de o senhor Infante ter sabido notícias tão horrendas mandou uma caravela armada de paz e de guerra, indo nela por capitão o já referido Nuno Tristão que havia estado nas terras dos Cenegas com outros nobres. De Portugal navegaram directamente até Cabo Verde.
Avançaram para além até uma terra de homens malvados a que dão o nome de Sereres. Encontraram muitos deles na praia do mar com arcos e setas envenenadase não quiseram eles falar com os cristãos.
Avançando para além, navegaram por terra de Barbacinse descobriram um pequeno rio que agora tem o nome de Rio Nuno Tristão. Indo além, depararam com muitos negros dessa terra em almadias dentro do rio e fora dele no mar. Com setas envenenadas mataram eles todos estes cristãos, tomaram a caravela, puxaram-na para dentro do rio e fizeram-na em pedaços. Eu, Diogo Gomes, muito tempo depois, tive uma âncora do rei dos negros que me fez presente dela. Fui eu também o primeiro cristão que firmei com eles um tratado de paz. Chama-se esse rei Nome Mains e é dono de muitas almadias.
Ao ouvir contar as notícias desagradáveis da morte dos seus cristãos, o senhor Infante ficou muito triste. Andava então pelo seu paço um certo fidalgo do reino da Suécia que viera a Portugal para ser armado cavaleiro além mar, em África; era seu nome Abelhart. Desejando ele ver terras estranhas e principalmente da Guiné, rogava ao senhor Infante que o mandasse a tais paragens; anuiu o senhor Infante ao seu pedido e deu-lhe uma caravela armada com alguns nobres da sua corte.
Navegando eles além do referido lugar onde foram mortos os cristãos, descobriram mais de trezentos negros com almadias armados com setas envenenadas; lutaram eles com os cristãos e ficaram muitos mortos e os outros quase todos feridos, com excepção de três moços. Sobreveio uma ventania e eles entraram pelo mar com as âncoras quebradas e as cordas partidas, quase à mercê de Deus. Um ancião que estava na caravela gravemente ferido e era grande marinheiro, sabendo que ia morrer disse aos moços: "Depois de eu morrer, ide para o aquilão com a vossa caravela e encontrareis um reino de cristãos". Efectivamente muitos dos cristãos que haviam sido feridos morreram de veneno e por milagre de Deus estes três moços lançavam os seus corpos ao mar sem escrúpulos, olhando para eles a descerem às profundezas e assim fizeram ao marinheiro ancião. Quando eles, porém, entraram no grande mar Oceano, seguindo os conselhos do ancião, sem verem terra ou ilhas, ao-deus-dará, rumaram a Portugal. Tinham já terra à vista quando veio ao seu encontro um corsário, de nome Machim de Trapana, com muitas naus. Uma das mais pequenas delas, ao depararom a caravela dos moços, chegou junto deles; entraram na caravela e deram com aqueles três rapazes que ficaram muito surpreendidos. Era isto próximo do Cabo Espichel, a umas 7 léguas de Lisboa. O corsário tomou conta da caravela e fê-la rumar para Lisboa juntamente com os moços.
Não muito tempo depois, o senhor Infante armou uma caravela de Lagos que tomava o nome de Picanço e fez seguidamente DIOGO GOMES capitão dela. Armou também outras duas caravelas para irem além. Fez de Diogo Gomes o capitão-mor destas caraveIas e numa das outras ficou como capitão JOÃO GONÇALVES RIBEIRO, criado do Infante, enquanto na outra ficava FERNANDES DE BAÍA, escudeiro do mesmo Infante. E mandou-Ihes que fossem além o mais que pudessem.
Assim passámos o Rio de S. Dorningose outro grande rio que tem o nome de Fancaso ou também Rio Grande, e tivemos ali grandes correntes de mar. Com a maré vazante, o mar fez grande rebentação, a que chamam macaréu, e então não há âncora que possa aguentar.
Por tal motivo, os outros capitães e os seus homens ficaram muito receosos, por julgarem que para além o mar todo era assim e reclamavam-me que voltasse.
No meio da maré ficou o mar muito calmo. Vieram mouros de terra nas suas almadias e trouxeram mercadorias próprias, a saber, tecidos de pano ou de algodão, dentes de elefantes e uma quarta de malagueta em grão em casca, tal como cresce. Com isso tive muita satisfação.
Parámos aí. E não passámos além por causa das correntesde mar. E quando veio a maré vazante aconteceu-nos o mesmo que antes e assim tivemos que regressar aonde tínhamos saído. Tomámos terra num lugar perto da praia onde há muitas palmeiras que tinham os ramos partidos e eram de grande altura, de tal modo que de longe pensávamos que fossem mastros ou vergas de negros.
Fomos ali e descobrimos uma terra espaçosa cheia de feno. Naquele campo, vimos mais de cinco mil miongas, como se diz na língua dos negros, que são animais um pouco maiores que veados e que ao verem-nos não tiveram qualquer receio. Ali vimos saírem de um pequeno rio, coberto de árvores, cinco elefantes, três grandes com dois mais pequenos que fugiam dos ditos animais.
Descobrimos na praia do mar muitas tocas de crocodilos. E regressámos às naus. No outro dia, tomámos o caminho de Cabo Verde e vimos uma grande embocadura de um rio que tem três léguas de largura e entrámos nela. Pela grandeza, imediatamente conjecturámos que fosse o rio Gâmbia, e assim era.
Entrámos com vento de feição e de maré até uma ilha pequena que fica situada no meio do rio e descansámos aí aquela noite. De manhã, porém, entrámos mais para longe e deparámos com muitas almadias com homens que aos verem-nos fugiram, pois eram os que tinham matado os cristãos acima referidos com o seu capitão.
No outro dia, porém, para além de um cabo de rio, vimos gente do lado direito e aproximámo-nos dela e fizemos pazes com eles. O senhor deles chamava-se Frangazick, sobrinho de Farisangul, grande príncipe dos negros. Recebi deles 180 pesos de ouro em troca das nossas mercadorias, a saber, panos, manilhas, e outras coisas. Disseram-nos ali por que é que os negros da margem esquerda não tinham querido falar-nos e que tinham matado cristãos.
O senhor daquela terra, porém, tinha um negro de nome Bucker que conhecia toda a terra dos negros; reconhecendo que em tudo falava verdade pedi-lhe que fosse comigo a Cantor. Eu propunha-me dar-lhe um manto e camisas e tudo o necessário e o mesmo prometi também ao seu senhor e assim fiz.
Subimos o rio e mandei um capitão com a sua caravela para um porto que ali há, de nome Ulimansa e o outro ficou em Animansa. Eu subi o rio quanto pude e descobri Cantor que é uma grande povoação próxima do rio. Por causa da espessura das árvores que há de uma parte e de outra do rio as velas não puderam prosseguir. Eu pus de fora o negro que nós tínhamos tomado a fim de manifestar aos homens daquela terra que tinha vindo ali para negociar mercadorias. E assim vieram os negros em enorme multidão.
Acordadas pazes com eles, correu fama por toda a terra de que havia cristãos em Cantor e acorreram de todas as partes até ali, a saber, do norte de Tambucutu, bem como moradores do lado sul fronteiros à Serra de Gelei, tendo vindo igualmente gentes de Quioquum que é uma grande cidade, cercada de muralhas de tijolo cozido em forno.
……………………………………………
Isso quis eu experimentar enviando Jacob, um índio que o senhor Infante nos tinha entregado para que se entrássemos na Índia tivéssemos um língua para aquela terra.
Ordenei-lhe que fosse a um lugar chamado Alcuzet com o senhor daquela região, onde de outras vezes tivera na companhia de um cavaleiro, pela terra de Gelofa a fim de descobrir a serra de Gelu e Tambucutu.
Esse índio Jacob contou-me que Alcuzet é uma terra muito viçosa com um rio de água doce e muitos limões que trazia consigo para mim. O senhor daquela terra mandou-me uns dentes de elefante, um muito grande, e quatro negros que transportaram aquele dente para a nau.
Vieram assim em paz até às nossas naus e assim fiquei tranquilo da sua parte.
Depois disto, fui à sua residência onde havia habitações de muitos negros. As suas casas são feitas de canas marinhas cobertas de colmo. Fiquei com ele três dias.

Há aqui muitos papagaios e muitas onças e ele próprio me deu seis peles de onça e mandou matar um elefante e levar a carne às caravelas.
Aí soube eu a verdade quanto a todo o dano feito aos cristãos: fora tudo obra de um rei chamado Nomimans que tem a posse da terra que se estende por este promontório.
Esforcei-me muito por estabelecer com ele relações de paz e mandei-lhe muitos presentes pelos seus homens e pelas suas almadias que iam por sal à sua terra, pois o sal ali é abundante e de cor avermelhada.
Muito temia ele os cristãos por causa do dano que lhes fizera a eles e às caravelas, como foi referido. Eu fui pelo rio em direcção ao Oceano até ao porto que está próximo da embocadura do rio. Ele mandou vir ter comigo por várias vezes homens e mulheres para me pôr à prova e saber se acaso lhes faria algum mal. Eu procedi diferentemente, recebendo-os com afabilidade. Depois de ter ouvido que tal acontecera, o rei veio à margem do rio em grande solenidade e sentando-se na margem mandou que eu me aproximasse; isso eu fiz com os meus rituais, o melhor que pude.»
Resumindo: os elementos que destas três fontes (27) se tiraram para a identificação do local do ataque a NUNO TRISTÃO são os seguintes:
(27) Para abreviar indicar-se-ão por Z, B e G.
1 - Deu-se num rio (Z, D) ou nas proximidades (G).
2 - Distância de Cabo Verde a esse rio: 60 léguas (Z), ou «sessenta e tantas» léguas (e portanto no Rio Grande) (B).
3 - A caravela passou a terra dos Serreos, chegou à terra dos Barbacins e atingiu um rio pequeno que veio a denominar-se Rio Nuno Tristão. O ataque deu-se na terra dos Barbacins, não se percebendo porém bem se naquele rio se noutro mais para o sul. (G).
4 - A caravela ficou ao largo, fora do rio (Z; na bôca, segundo B); Nuno Tristão e a maioria dos companheiros, embarcaram em dois batéis (Z) (um, segundo B) e começaram a subir o rio, ajudados pela maré(Z, B), que era forte (D).
5 - Dirigiram-se para umas casas que viam do lado direito (na margem esquerda do rio portanto) (Z).
6 - Os negros atacantes vinham da margem direita do rio (Z).
7 - Os negros atacantes usavam embarcações mais rápidas que os batéis dos portugueses (pois alcançaram-nos e chegaram mesmo antes à margem esquerda) (Z). Usavam frechas envenenadas (Z, B, G.).
8 - Os portugueses chegaram à caravela com a ajuda da maré, que já descia (D).
9 - Os portugueses abandonaram os batéis (Z) e cortaram as amarras da caravela (Z. B).
10 - A caravela regressou ao reino (Z, B). A caravela foi tomada e destruída pelos negros (G).
11 - No tempo de BARROS havia quem dissesse que o sucesso ocorrera no Rio Nuno, 20 léguas para além do Rio Grande (Geba), e que por essa razão aquele rio tomara tal nome (B).
12 - O rei dos negros que praticara o ataque chamava-se Mainse deu uma âncora a Diogo Gomes (G).
13 - Os negros que atacaram Nuno Tristão, ou Valarte, ou ambos, eram da margem esquerda do Gâmbia (G).

14 - O rei que atacou Nuno Tristão e Valarte era o mesmo, chamava-se Nomimans dominava junto da foz do Gâmbia (G).
Vejamos agora qual o valor dêstes elementos e até que ponto concordam entre si. Na análise a fazer deve ter-se em linha de conta
- que as duas únicas fontes coevas são ZURARA e DIOGO GOMES;
- que ZURARA extraiu o seu relato de uma outra fonte, como claramente se deduz do início do capitulo «Oo, e como acho em tam breues palauras registado o recordamento da morte de tam nobre caualleiro como foe aquelle Nuno Tristam, cuja trigosa fim no presente capitollo fallar entendo»;
-  que DIOGO GOMES descreveu os factos oralmente, já em idade avançada e muitos anos depois dos acontecimentos, a MARTINHO DA BOÉMIA, e é verosímil que êste lhe tenha deturpado os dizeres aqui e além;
- que DIOGOGOMES faz manifesta confusão entre factos das viagens de Nuno Tristão, Estêvão Afonso e Valarte:
- que BARROS se deve ter guiado exclusivamente por ZURARA, pois limita-se a omitir pequenas particularidades, acrescenta apenas que a corrente de maré era forte, que vazava já quando os batéis regressavam à caravela e que dois tripulantes foram mortos por uma âncora, e difere somente na indicação do número de batéis (um em vez de dois). A afirmação de que o rio era o Rio Grande apresenta-se assim como uma mera interpretação pessoal dos dizeres de ZURARA e a alteração de sessenta para sessenta e tantas léguas como uma forma de acertar a distância de acôrdo com essa interpretação. De BARROS apenas se colhe portanto que no seu tempo havia quem julgasse os sucessos ocorridos no Nuno.
Os elementos atrás extraídos, bem como outras considerações a fazer, podem agrupar-se em três categorias: náutico-geográíicos, cartográficos e etnográficos.
1 - ELEMENTOS DE CARÁCTER NÁUTICO-GEOGRÁFICO
a) Distância além de Cabo Verde
Como já se disse, é de crer que as «sessenta e tantas» léguas de BARROS não sejam mais que urna alteração baseada em interpretação pessoal.
Este investigador, estudando as distâncias referidas na Crónica de ZURARA, por comparação com as do Esmeraldo, chegou à conclusão de que todas se encontram erradas por excesso (29).
As 60 léguas de ZURARA, a serem verdadeiras, vinham a situar o local atingido por Nuno Tristão no Rio de S. Domingos (Cacheu) (do Esmeraldo, caps, 28 a 30, obtêm-se 62 para uma rota ao longo da costa). Aplicando-lhe contudo as correções de 23 % a 55 % as 60 léguas passam a 46 e 27. Entre estas distâncias ficam incluídos os rios Gâmbia, Santa Clara e das Ostras (êstes dois muito pequenos e de excluir), restando já de fora o Casamansa. Como, porém, a segunda das referidas corrrecções foi tomada na hipótese mais favorável (55 %, quando é maior que 55 %), é de admitir que a distância provável se encurte ainda mais, e venha a incluir assim o estuário Salum-Jumbas-Banjala.
Já JOÃO BARRETO (pgs. 18 e 33) havia chamado a atenção para o exagêro das distâncias de ZURARA, atribuindo o facto a erros sistemáticos do cronista ou a diferente valor da légua de então. Não parece de aceitar esta última explicação, porquanto CADAMOSTO revela que ao tempo já a légua portuguesa contava quatro milhas italianas (30), valor que persistia na época em que DUARTE PACHECO escreveu o Esmeraldo e ainda persistiria pelos dois ou três séculos seguintes.
A indicação das 60 léguas fornecida por ZURARA exclui imediatamente a ideia de o rio em questão ser o rio Geba ou o Nuno das cartas de hoje. De Cabo Verde ao primeiro vão urnas 70 léguas (ao longo da costa) e ao segundo cêrca de 90. Não é portanto de admitir que o cronista, que sempre exagera, neste caso particular ficasse aquém das distâncias reais (LEITE, pg. 165). A análise do elemento «distância além do Cabo Verde» leva portanto a situar o sucesso num dos braços do estuário Salum-Jumbas-Banjala, ou no Gâmbia. (Para o Gâmbia o êrro seria de 50 %, pois a distância referida pelo roteirista é de 30 léguas). Não se pode, porém, ligar demasiada importância a tal indicação, porquanto o cálculo das distâncias, feito a ôlho então, estava sujeito a grandes erros de estima, acrescendo ainda os que o cronista podia cometer ao narrar os acontecimentos, o que na realidade parece ter-se verificado, como se verá ao analisara viagem de Estêvão Afonso.
28) Os trabalhos onde mais minuciosamente vêm analisadas as viagens de que nos ocupamos são:
CORTESÃO (Armando), B 16.
BARRETO, B 6.
LEITE, B29.
PERES, B 36.
MAGALHÃES GODINHO, B 32.
Daqui em díante, ao apresentarmos a argumentação já empregada por alguns destes investigadores, fá-lo-emos referindo o seu nome seguido da página, que se entende ser destas obras.
(29) Conclue que o êrro varia entre 32 % e 60%. Cremos ter havido um lapso na 3.ª e 4.ª linhas da tabela apresentada a pgs. 163, pois feitas as contas, os excessos são maior que 23% e maior que 55%, e não maior  que  44% e maior que 60 %, como lá vem. O érro varia portanto na realidade, na melhor hipótese, entre 23% e 55%.
(30) Navegação 11, cap. VI: «do rio de Gâmbia até estoutro de Casamansa, são cousa de vinte e cinco legoas, que fazem cem das nossas milhas•.
b) Natureza do rio
Têm os investigadores procurado extrair dos cronistas indicações sôbre a natureza do rio que permitam a sua identificação. Vagas como elas são, porém, têm-se prestado a algumas erradas ilações e consequentes confusões.
Da análise feita em a) devia-se limitar o estudo ao estuário Salum-Jumbas-Banjala e ao Gãmbia. Mas, não sendo, como já se disse, a dislància de 60 léguas elemento por si só capaz de resolver o problema, devem-se tomar em consideração outros rios mais para o sul, incluindo os que, mais ou menos tradicionalmente, têm sido apontados.
Da descrição dos acontecimentos feita por ZURABA e BARROS deduz-se que o rio não devia ser muito largo (a caravela ficou de fora; os negros partiram da margem direita quando os portugueses se dirigiam para a esquerda, atingiram-na antes e daí atiravam frechas, o que dá ao lugar um aspecto de pequenez).
DUARTE LEITE, depois de uma série de eliminações, acaba por deixar apenas o rio dos Barbacins e o Gâmbia, optando finalmente pelo último, «por facilmente acessível às marés, circunstância apontada no relato da entrada de Nuno Tristão» (pg. 165). Não se percebe bem se quere dizer que no rio se verificavam correntes de maré ou que os navios nele podiam entrar, facilmente, com a ajuda da maré. Em qualquer das hipóteses, nada  se pode concluir, em nosso entender. Todos os rios desta xonada costa africana estão sujeitos às marés (alguns mesmo não passam de simples braços de mar; o Salum, que adiante veremos ser provàvelmente o antigo Barbacins, como tal é considerado num estudo de etnografia local (31), pois nele se verificam apenas as correntes de maré - exceptuando evidentemente a época das grandes chuvas). Quanto ao acesso aos navios, se há conclusão a tirar é que não era fácil, pois a caravela ficou ao largo; a subida em batéis nada tinha de especial, tanto mais que parece ter-se efectuado próximo do preamar (BARROS indica que a vasante já os ajudou a regressar à caravela, o que no entanto ZURARA não refere).
Outro facto que se tem prestado a erradas interpretações é o fenómeno do macareo. ZURARA refere simplesmente que havia corrente de maré; BARROS acrescentou que era forte. ARMANDO CORTESÃO (pg. 14) ampliou ainda os dizeres dêste, associando-lhes o macareo. Por outro lado, e por raciocínio inverso, DUARTE LEITE (pg. 165) aponta entre as razões que o levam a excluir da lista dos rios possíveis o Rio Grande (Geba) baseando-se em que ZURARA cala o fenômeno do macareo.
Quere-nos parecer que nenhum dos dois investigadores está na razão. O macareo é fenômeno que só se faz sentir para lá já do Impernal. CASTILHO (32) refere-se a ele na descrição do fundo (leste) do estuário, atribuindo-o às coroas de Goiajé, baixos que atravessam nesse local o rio quási de margem a margem, deixando apenas um pequeno canal. Já no século XVI ALVARES D'ALMADA escrevia o mesmo, pois também fala do fenómeno na descrição da parte do rio que fica a leste do Esteiro dos Balantas (Impernal) dizendo dêle que é «encher êste rio lá em cima com tres mares somente» (33). AZEVEDO COELHO tanbém é absolutamente dar o nesse ponto (33a). Dt:ARTE PACHECO circunscreve igualmente o fenómeno ao curso superior do Rio Grande: «acima das ditas ilhas (dos Bijagós)... (em branco) leguas dentro deste Rio jaz um macareo (34). CADAMOSTO, que esteve apenas na foz, não refere o rnacareo, mas sim arijeza da corrente (35), principalmente no inicio da enchente {25). O primeiro a citá-lo é DIOGO GOMES (36); da sua narrativa· não se depreende até que ponto subiu o rio, mas adiante se verá que o discutido navegador era dado a ir bastante por êles acima. Do exame da cartografia se conclue que o Rio Grande foi depressa explorado até à confluência Geba-Corubal; numa carta de Benincasa de 1471 já vêm figurados êstes dois rios, e na de Soligo (c. 1486) um deles já tem o nome de Corbole. Sabendo que os progressos registados em Benincasa foram devidos às navegações efectuadas até 1463, podemos deduzir que nesta data já o Rio Grande fôra completamente explorado. Não é de rejeitar a hipótese de que DIOGO GOMES tenha largamente contribuído para essa exploração; antes pelo contrário, o facto de referir o rnacareo assim o faz supôr. De CADAMOSTO sabemos de certeza - por êle próprio - que não passou da foz.
Tudo isto leva a concluir que:
1.º - Dos dizeres de ZURARA e BARROS não se pode inferir que no rio em questão havia o macareo. O argumento de ARMANDO CORTESÃO, tendente a identificar com êsse rio o Geba em virtude do fenômeno, não tem portanto valor. Admitindo, ainda, como quere o referido investigador, que se tratava do macareo, o argumento por si só não seria de aplicar apenas ao Geba. ÁLVARES D’ALMADA diz que no Rio da Furna também se verifica o fenômeno (37). Ora como este rio vem logo a seguir ao Rio Nuno, o argumento do macareo, por si só, levaria a identificar com aquêle, de  preferência ao Geba, o rio onde se deu o ataque, pois a tradicional ilação cartográfica seria assim reforçada. Com efeito, nada repugnaria aceitar que o Rio Nuno fôsse inicialmente o Rio da Furna, e que uma confusão cartográfica - de que se encontram fartos exemplos nas imediações - teria deslocado a designação para o actual.
2.º- O facto de ZURARA não referir o macareo nada prova, pois Nuno Tristão não se afastou da foz do rio que começou a subir. Se fosse o Geba não podia sentir aí o macareo; mesmo que os efeitos dêste se notassem na foz, seria ainda necessário que se desse a coincidência de os acontecimentos se desenrolarem em ocasião em que se verificasse o fenómeno. O argumento de DUARTE LEITE por si só não pode levar a excluir o Geba; outros mais seguros há porém a aduzir, como se verá.
Em resumo: o argumento do macareo nada prova, porque dos cronistas não se pode inferir que êle existisse. E a admiti-lo, a dúvida não ficaria resolvida, mas circunscrita ao Geba e ao Rio Furna e tornar-se-ia necessário recorrer a outros argumentos para a desfazer.
Não se provando nada com a existência de marés, e não tendo valor o argumento do macareo, só resta a guiar-nos quanto à natureza do rio a crença (já atrás fundamentada) de que êle não seria muito largo.
Este facto tem valor porque permite por si só excluir o Geba. Um navegador vindo do norte, mesmo que não visse terra, seria levado a demandar a sua entrada, pois a côr barrenta das águas indicar-lhe-ia a proximidade de um grande rio. Viria assim a avistar a Ponta Caió, notando que a costa prosseguia para leste; para o sul apenas numa muito restrita porção do horizonte avistara terra, a parte norte da ilha da Caravela (a 20 milhas).
A descrição de ZURARA não se coaduna com êste quadro. Como compreender que a caravela não passasse da Ponta Caió e ficasse ao largo, quando com a maior facilidade podia subir o rio por uma distância superior a 100 quilómetros sem que as margens se aproximassem a menos de dez quilómetros? E como explicar que os batéis se dirigissem para a margem esquerda (ilha Caravela), ficando a caravela ao largo, quando era tão fácil a esta aproximar-se a pequena distância? Muito menos ainda se pode compreender que durante esta manobra os negros largassem da margem direita e atravessassem o rio em tôda a sua extensão (cêrca de 35 quilómetros) para irem desembarcar na outra margem e daí assetarem os portugueses.
Tudo isto resulta absurdo lendo com atenção o relato de ZURARA.O quadro onde se deu o ataque não tinha esta majestade, era muito mais reduzido a caravela de fora do rio, e dos batéis a verem simultaneamente casas na margem esquerda e indígenas na direita.
Poderá objectar-se que os sucessos ocorreram para leste já do arquipélago dos Bijagós, e que o cronista considerava a foz do rio entre a ilha de Bissau e a Guinala. O ambiente continua a ser ainda demasiado amplo aí, para se coadunar com o relato. Seria preciso passar bastante para lá da ilha de Bissau e do lmpernal para encontrar quadro viável pela sua estreiteza; mas o rio teria sido subido por muitas dezenas de quilómetros, e o cronista de maneira nenhuma poderia dizer que a caravela ficara fora do rio. E além disso não se compreende que ele não tivesse nenhuma palavra para a amplidão do estuário do Geba, o mais largo de todos os rios descobertos em tempo do Infante D. Henrique, não referisse a característica côr barreata das suas águas que já se nota muito ao largo,  calasse a existência do arquiptlago dos Bijagós (LEITE, pg. 165),os vários esteiros e canais da margem direita, a exuberância da vegetação, etc.
Excluído o Geba, a aplicação do quadro de ZURARA aos outros rios desta zona de África faz-se sem dificuldade. O Gâmbia é de facto demasiado largo perto da foz, mas estreita subitamente, e ao gargalo entre St. Mary lsland e Barra Point pode ajustar-se a descrição do cronista (38).
O mesmo sucede em relação aos outros rios entre o Salum e o Nuno (excepluando, é claro, os que, por demasiado pequenos, não passam de riachos) - Salum, Jumbas, Banjala, Casamansa, Cacheu (S. Domingos), Bolola (Buba), Tombali, Cumbidjam, Cacine, Componi, Nuno.
Recapitulando o que até aqui se tem procurado deduzir: o argumento das 60 léguas (depois da conveniente correcção) leva a situar o términus da viagem de Nuno Tristão num dos rios que desembocam entre Punshavel (ou Sangomar) Point e Cape Bald; a descrição de ZURARA pode aplicar-se a qualquer dêles. O Geba está além da referida distância (mesmo não corrigida) e: não se afigura fácil que os factos nele ocorressem como vêm no cronista. Os restantes oferecem um quadro adequado, mas todos ficam além da distância corrigida (o Cacheu coincide aproximadamente com as 60 léguas não corrigidas e o Casamansa fica aquém).
São portanto os braços do estuário Salum-Jumbas-Banjala e o Gâmbia que até aqui se apresentam como mais prováveis. Entre os primeiros e o último, aquêles apresentam ainda uma maior probabilidade, por serem mais dificilmente acessíveis a caravelas.
No que se segue continuar-se-ão, porém, a tomar em consideração todos os rios entre o Salum e o Nuno. A secular tradição, quanto mais não seja, obriga a encarar tódas as hipóteses, principalmente as que se refiram ao Geba e Nuno.
(31) LAFONT, B 27
(32) CASTILHO, B 15, pg. t72.
(33) ALVARES D'ALMADA, B 2, pg. 32.
(33a) AZEVEDO COELHO, B 2a, fol s. 65-6.
(34} PACHECO PERIERA, B 34, Livro 1, Cap. 31.º
(35) Navegação Segunda, cap. VII.
(36) GOMES, B 25, pg. 81.
(37) ALVARES D'ALMADA, B 2, pg. 72: «quando enche he com a agua, que se chama de Mocareo e com dous ou tres mares fica a maré cheia; os quaes quando vem, vem roncando, e se ouvem muito tempo antes de elles chegarem, como já se disse do Rio da Degoula». Notar que o autor não refere o fenómeno ao Rio Graude, mas sim ao Rio do Dregoula, troço daquele que fica para lá do Esteiro dos Balantas.
(38) A configuração das costastorna muitas vezes difícil marcar a linha da barra de um rio. É oque sucede com o Gâmbia. Podem-se considerar três linhas diferentes: a exterior (entre Punshavel Point e Bald Cape) de 27 milhas, a média (entre Barrhadah Creek e Cape St. Mary) de 10 milhas e a interior (entre Barra Point e Bathurst) de pouco mais de 2 milhas. Esta última constitui «the entrance of the river proper», como vem no African Pilot; as outras duas são o resultado da oonfiguração especial da costa, formando uma baía no fundo da qual desemboca o rio. Os ataques a Nuno Tristão, a dar-se no Gâmbia e segundo a descrição de ZURARA, só podia ter lugar no referido gargalo, pois pouco adiante já o rio atinge 7 milhas de largura.
«GAMBEA: Rio em a Costa de Guiné, caudaloso e navegável, per onde os nossos vão ao resgate de Cantor, e o poeta em o C. 5. est. 10. o chama curvo, per rasam das muytas voltas que faz. Os negros da terra o chamam Gambu, traz mayor pezo de agua que o Çanagá, e mtcyto mays profundo; perque se metem nelle alguns rios barbaros muy caudaes, que nacem no sertam da tctm, chamada Mandinga, que he provincia grandissima de negros, donde vem o ouro à cidade de Tungubutu, que está tres leguas do Çanagá, da banda do norte.»
MICROLOGIA CAMONIANA, JOÃO FRANCO BARRETO, IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA, BIBLIOTECA NACIONAL, LISBOA, 1982, pg. 159
c) A âncora
Refere ZURARA que, à largada, por falta de braços e oom receio das frechas, não puderam os portugueses meter dentro os ferros da caravela. Cortaram as amarras e fizeram-se ao largo, abandonando também os batéis. DIOGO GOMES diz que os negros conseguiram tomar a caravela,que depois levaram para dentro do rio e destruíram, afirmando que o rei - com quem foi o primeiro a fazer a paz - lhe deu uma âncora. Poderá à primeira vista parecer que tal âncora era uma das da caravela de Nuno Tristão. Mas notando que DIOGO GOMES, contra o que diz ZURARA, a caravela por destruída, a dúvida surge, e ocorre preguntar se aquele não teria misturado na viagem de Nuno Tristão acontecimentos de outras e vice-versa. A dúvida transforma-se em certeza ao prosseguir na leitura, pois ao falar da viagem de Valarte refere, com outras personagens, sucesso que ZURARA dá como relativo ao retôrno da caravela de Nuno Tristão. A dcstruição da caravela deve portanto ser facto doutra viagem, e logo lembra a expedição de nove navios que nesse mesmo ano largou do reino, chegando às mesmas paragens, e de que uma caravela (do bispo do Algarve) encalhou e foi abandonada. Já ARMANDO CORTESÃO (pg. 29) chamou a atenção nara este facto.
A elucidação dêste ponto assume importáncia, pois toma-se possível, como adiante se verá, identificar o rei que entregou a âncora a DIOCO GOMES. Apurando a que navio ela pertencia, talvez se consiga saber o términus de uma das viagens de que nos ocupamos.
De DIOGO GOMES - apesar de referir o facto como relativo a NunoTristão - conclui-se que a ãncora pertencia a caravela ficada na posse dos negros, o que, como já se disse, leva a crer tratar-se daquela que no mesmo ano encalhou à entrada de um rio e pertencia ao bispo do Algarve.
Tendo sido cortadas as amarras da caravela de Nuno Tristão pelos sobreviventes, deduz-se que os ferros ficaram no fundo. E que lá devem ter ficado para sempre é o que se afigura mais veroslmil. Que interesse teriam os negros em os ir lá buscar? Saberiam mesmo êles - desabituados a ver tais navios e desconhecendo provàvelmcnte o uso dos ferros – que estavam no fundo (se bem que BARROS, ao referir que dois portugueses foram mortos por uma âncora, faça supor que os nossos tentaram içá-los e um deles chegou a vir a lume)? E ainda que o experimentassem, seriam capazes, com os seus fracos recursos, de os rocegar e recuperar?
Do passo de DIOGO GOMES não se pode concluir portanto que a âncora que lhe foi oferecida pertencia à caravela de Nuno Tristão. Embora tal não íôsse completamente improvável, é mais lógico supôr que ela estivesse originàriamente no navio do bispo do Algarve, ou mesmo noutro que por lá tivesse encalhado ou fôsse tomado pelos indígenas nos dez anos que mediaram entre 1446 e a viagem de Diogo Gomes.
Este elemento nada pemite assim concluir quanto ao términus atingido por Nüüo Ttistão.
d) Dificuldades e morosidade da navegação nas primeiras viagens paro o sul de Cabo Verde
Considera-se ordinàriamente que o limite das viagens henriquinas foi a Serra Leõa, atribuindo-se a sua descoberta a Pedro de Cintra. Assim o declara DUARTE PACHECO (Liv. 1, Cap. 33). No entanto CADAMOSTO, no relato da viagem do referido navegador, dá-a como realizada após a morte do Infante e apresenta-a como a primeira que ultrapassou o Geba. O veneziano não é muito de fiar no que respeita a primazias, pelo que se deve acolher com reserva esta última asserção.
Em todo o caso não temos provas de que em 1456 os portugueses já houvessern descoberto para além daquele rio. A acreditannos em CADAMOSTO seria mesmo essa data a do achado do Geba. Com os elementos que há actualmcnte deve ser dificiI apurar tal questão.
As razões do afrouxamento da actividade descobridora nos últimos dez anos do lnfante D. Henrique devem ser de natureza vária. Apenas aqui nos interessa considerar uma.
A quem ronsultar uma carta hidrográfica da zona para o sul de Cabo Verde chamará a atenção o longo espraiamento dos fundos e a existência de numerosos baixos a grandes distâncias de terra. A linha das dez braças afasta-se cada vez mais da costa à medida que se caminha para o sul e o a fastamento chega a atingir 40 milhas, por alturas dos Bijagós. Encontram-se fundos de 2 braças a 30 milhas de terra!
Não é difícil imaginar que nestas condições as primeiras viagens se haviam de ressentir de considerável dificuldade e morosidade. Não se tratava evidentemente de avançar simplesmente para o sul; para tal bastaria amarar-se e progredir depois no rumo desejado. Nem isso seria facto que amedrontasse os arrojados navegadores portugueses, que dispunham de meios e conhecimentos ténicos para o fazer. A cabotagem não era uma medida de segurança, apenas uma necessidade em vista do que se pretendia: conhecer a terra, os seus babilantes e produções. E para o sul de Cabo Verde estendia-se uma rica zona de exploração: numerosos rios, população densa, exuberância da natureza, riqueza, enfim, desde a humana - o escravo – até à mineral - o ouro. Já não se tratava da aridez das costas saharianas, nem da monotonia das praias entre o Senegal e o saliente ocidental africano, despidas de desembocadouros fluviais. A grande diversidade dos povos - jalofos, sereres, barbacins, mandingas, arriatas, felupes, cassangas, brames, biafadas, bijagós, etc. - todos de línguas diferentes, obrigava a demoras para sucessivamente poder capturar exemplares e industriá-los como intérpretes (39).
Da dificuldade de que se revestia a navegação costeira nesta zona, e da conseqüente morosidade, foi testemunha CADAMOSTO. Diz êle que
«...a navegação por esta costa, e para diante sempre foi de dia; lançando âncora tôdas as tardes, ao sol posto, em dez ou doze braças de agos: affastados da terra quatro ou cinco milhas; e ao nascer do sol, faziam-nos a véla tendo sempre um homem na gavea, e dous na prôa da caravella, a fim de ver se quebrava o mar em algum lugar e assim descobrir algum cachopo». (I.ª XXXVI ).
Para o sul do Gâmbia
«...tínhamos contínuamente dous homens na popa, e hum sobre o mastro; para descobrir os baixos, e outros bancos; navegando somente de dia com muito pouca véla, e com grande tento; e de noute deitando ancora, e hindo sempre huma caravella após a outra, segundo cahia a sorte diariamente; porque cada hum de nós teria querido que o companheiro fosse adiante». (II.ª, VI).
O arquilpélago dos Bijagós, com o seu extensíssimo banco, constitui uma poderosa barreira que não deve ter sido vencida de uma vez só, antes  obrigaria a cautelosas experiências de navegação e resultantes demoras. DUARTE PACHECO (Liv. I, Cap. 31.º) fala do arquipélago e do seu banco nos seguintes termos:
«Os baixos deste Rio [Grande] saem muito ao mar por espaso de trinta e cinco leguoas & quem estiver as ditas leguoas em mar deste Rio & lhe demorar a dita boca em lesnordest achara sasenta braças defundo se tomar sonda & aly achara no prumo huma area muito mehuda sinsenta & o piloto que este fundo achar deve conhecer que anda encorporado nos baixos deste Rio & sendo caso que lhe há calmeo vento e sentir que a forsa da maree he mete pera dentro tanto que forem vinte & sinco braças estara 6 ou 7 leguoas da boca delle & deue logo sorgir ou virar na volta do mar se o vento for para isso rorque destas braças pera terra tudo he sujo de muitos arrecifes de pedras que delles (uns) param sobre augua dalles (outros) nam; & pelo forte coso que ha maree ahy tem muito asinha pode lansar qualquer nauio nestes recifes honde se perderam como ja fizerom outros...»
A costa para o sul até o Cabo da Verga continua a ser perigosa, com escolhos a 25 milhas da terra. Dela diz o roteirista (I, 32.º) :
«...esta costa do Rio grande alce o cabo de verga...he muito baixa e maa de conhecer & o fundo muito sujo & de grandes arrecifes de pedra & muito perigoza que se não deue nauegar se nom de dia & pousar de noyte & pera mais seguridade seja nauio pequeno de vinte & cinco tee trinta tonees porque sendo mayor correra risco de se perder...»
Em 1669 a navegação entre o rio Bolola e o rio Nuno ainda era considerada tão difícil, que AZEVEDO COELHO refere, como prova, que só nessa altura se descobrira o rio Tombali(40).
Qual a maneira de ultrapassar os Bijagós? Já DUARTE PACHECO (I, 32.º ) fala nos dois caminhos:
«Neste rio grande se podem fazer dous caminhos para a Serra Lyoa hum delles he per dentro das Ilhas que aa boca delle estam & por aly pela banda do suest mas poucos pilotos sabem esta terra & posto que por aquy possam ir deue ser de dia & pousar de noyte; o houtro caminho he por terra pelo peego segundo adiante diremos…»
É de crer que à descoberta do Geba se seguisse um intervalo nos avanços para sul. Certamente não se prosseguiu sem primeiro explorar as margens do rio e o arquipélago e sem procurar o caminho conveniente. Este caminho foi achado, e do relato da viagem de Pedro de Cintra infere-se que já foi então seguido (pelos canais das Arcas e de Bolama), a passar junto da foz do Bolola.
Em face destas dificuldades e demoras repugna aceitar que NunoTristão tivesse passado para o sul do Geba. Ele andava à procura de povoações (ZURARA diz que subiu o rio «por lhe parecer que deverya de aver algüas povoaçoõens» e que se dirigiu para «huascasas que vyam na maão direita»; BARROS acrescenta que o fim era fazer «ua grande entrada»). Resulta estranho que o navegador, que andava tão interessado em entradas, desprezasse tantos rios e ilhas ideais para o fim em vista, e fôsse escolher o modesto Rio Nuno. Se tivesse passado para lá do Geba - e seria intrigante que o cronista calasse o facto - só o poderia ter feito por dentro (como Pedro de Cintra) ou pelo «pêgo». O primeiro caso resulta inverosímil sem um prévio e demorado trabalho de exploração, que ZURARA não refere. Quanto ao segundo caminho, e caso o navegador tivesse entrado no Geba, revelaria ainda que não encontrarao canal para o  sul, e da mesma rnaneira resulta estranho que o cronista não falasse no facto em si ou em acontecimentos relacionados com a exploração do rio. Concluir-se-ia que Tristão não entrara no Geba e vinha muito amarado, o que revelaria ou um incompreensível desinterêsse pelo reconhecimento da costa, ou uma íntuição verdadeiramente genial, que o faria seguir o caminho mais aconselhado pelos roteíristas do século seguinte para passar um extenso banco de que os portugueses ainda então não tinham conhecimento. Há ainda urna consideração a fazer, que por si só se apresenta bastanto elucidativa. Do ano da passagern do Bojador até ao da última viagem de Tristão medeia um intervalo de 12 anos. A aceitar que o referido navegador atingiu o Rio Nuoo, couclue-se que nesse espaço de tempo se descobriram cêrca de 340 léguas da costa (contando pelo Esmeraldo). À data da morte de D. Henrique (1460) atingira-se a Serra Leôa, 50 léguas para além do Nuno. Chega-se assim a esta estranha conclusão: nos primeiros doze anos descobriu-se uma extensão de costa sete vezes superior à dos últimos catorze, precisamente aquêles em que já havia menos receio do desconhecido e mais prática! E num só ano Tristão descobrira uma distância duas vezes superior à désses catorze!
Da discussão até aqui feita vai-se colhendo cada vez mais a impressão de improbabilidade para os rios Nuno e Geba. A análise comparativa entre os dizeres de ZURARA, a natureza da costa e o carácter dos descobrimentos do último período henriquino reforçam a suposição de queo local da tragédia de 1446 tem de procurar-se bastante mais ao norte do que geralmente se supunha. Os rios que se apresentam com mais viabilidade são o Salum-Jumbas-Banjala e o Gâmbia, se bem que o Casamansa e o Cacheu, ainda que menos prováveis, não sejam de excluir.
(39) CADAMOSTO, B 13, Navegação 2.ª, cap. XXVI, elucida-nos quanto ao cuidado havido na obtenção de intérpretes: «... cada hum dos naviostinha interpretes negros, trazidos connoco de Portugal, que tinhião sido vendidos pelos Senhores do Senegal ao primeiros Portugueses que vieram descobrir aquelle Paiz. Estes Escravos tinhão-se feito Christãos, e sabião bem a lingoa Hespanhola e tinha-mo-los havido de seus senhores, com o contrato de lhes dar por seu cstipendio e soldo, hum Escravo porcada hum, a escolher em todo o nosso monte: e em estes Interpetes tendo ganhado quatro Escravos aos seus senhores, dio-lhes alforria». Nem todos o conseguiam, porém, pois a suafunção era perigosa, cabendo-lhes o primeiro contacto com os nativos; no Jumbas assistiu Cadamosto à trucidação, pelo gentio, de um que ia em navio de sua companha.
(40) AZEVEDO COELHO, B 2-a, fl. 77.
2 - ELEMENTOS DE CARÁCTER CARTOGRÁFICO
A crença de que o términus de Tristão foi o Geba tem a sua origem em BARROS; já atrás se apresentaram alguns argumentos que fortemente a contrariam. A crença de que o local atingido foi o Nuno nasceu de uma ilacção cartográfica. Pretende-se agora investigar até que ponto ela é verdadeira.
Dasmais antigas cartas que representam a zona em questão exclui-se da análise comparativa a fazer a carta de Martellus (1489) e bem assim o globo de Martinho da Boémia (1492) por demasiado toscos e de escassa nomenclatura geográfica. Das cartas de Benincasa utiliza-se apenas uma de 1471 reproduzida por SANTARÉM, por serem as restantes hoje conhecidas análogas, no dizer dos que as viram. Há uma carta catalã posterior a 1460 em Modena, que ignoramos se se estende até ao rio Nuno. Vêm assim a ser utilizadas, além da de Benincasa já citada (da Biblioteca do Vaticano), a anónima portuguesa de Modena (c. 1471), as da «Ginea Portucalexe» de Soligo no British Museum (c.1486), a anónima da Biblioteca Nacional de Paris que LA RONCIÈRE atribui a Cristóvão Colombo  e outros julgam ser portuguesa (c.1500) e a anónima portuguesa da Biblioteca Estense de Modena conhecida por carta de Cantino (1502). Como complemento utiliza-se ainda o Esmeraldo de DUARTE PACHECO, o Livro de rotear que VALENTIM FERNADES copiou e os relatos de DIOGO GOMES e CADAMOSTO.
Para melhor elucidação e como contributo para a história da toponímia costeira guineense junta-se o resumo comparativo da nomenclatura geográfica entre o Cabo Verde e o Cabo da Verga, extraído das fontes indicadas:
O argumento básico da atribuição da descoberta do Rio Nuno ao navegador Nuno Tristão é o da designação deste rio, que desemboca um pouco além do limite sul da actual Guiné Portuguesa, em cerca de 10" 30' de latitude Norte.
No entanto, outro argumento, que à primeira vista parece comprovativo, tem sido desprezado. É o da existência, poucas milhas para o Norte, de um grupo de ilhas nomeadas globalmente llhas Tristão, de um cabo, na maior delas, apelidado Cabo Tristão, e de um pequeno rio ou braço de mar, entre essa mesma ilha e o continente, designado por Rio Tristão.
Examinemos, separadamente, cada argumento.
Rio Nuno - A primeira menção deste rio vem na carta Portuguesa que FONTOURA DA COSTA atribui a data de circa 1471, entre Bissegues eCabo da Verga. Ambos os termos, a acreditarmos em CADAMOStO, foram impostos por Pedro de Cintra, derivando o primeiro nome do rei da região. O Rio de Bessegue deste navegador é o açtual Bolola, de que a margem esquerda se apelida ainda Cubisseque (talvez palavra formada de Cum e Bisseque).
O prefixo cum ou cam é característico da Língua nalú – Camdenhame, Cambaque, Campreme, etc. (41), e de fontes antigas infere-se que essa tribu partilhava com os beafadas a região).
Os motivos da atribuição da data de circa 1471 à carta de Modena não nos parecem convenientes. De um primeiro exame deduz-se somente que ela deve ser anterior a 1482 (por faltar a referência a S. Jorge da Mina) e posterior a 1471. Nada nos repugna aceitar que a sua confecção seja mais próxima da primeira do que da segunda das datas indicadas.
Na carta de Benincasa ainda não aparece o Rio Nuno, mas entre Bessgue e o Cabo da Verga vem um outro denominado R. Seche, que deve ter sido deturpado por Soligo em R. Clero e coincide com o R. Sequo da anónima de Paris, onde se vê ser distinto do Nuno. Daí em diante este nunca mais deixa de figurar nas cartas, quási sempre a seguir aos Nalus, e por vezes deturpado em Mino (Ptolomeu de 1513, Desceliers 1546, Luiz Teixeira c. 1600), Myno (Francisco Rodrigues post. 1512), Migno (S. Cabotto 1544?), Noune (Jacques de Vaulx 1533), Nunes (cartas inglesas e francesas actuais).
Admite-se geralmente que as cartas do 2.º período de Benincasa foram executadas sôbre elementos levados de Portugal por CADAMOSTO. A sua nomenclatura para além do Rio Grande é claramente resultante da viagem de Pedro de Cintra, como se pode ver pelo relato que dela faz o veneziano. Isto significa que, embora as datas de execução possam ser muito posteriores, tais cartas não contêm elementos obtidos além de princípios do 1463, época em que CADAMOSTO abandonou o nosso País.
Conclui-se assim que a designação de Rio Nuno deve ter sido criada entre 1463 e 1482 (provável limite superior para a data da execução da carta de Modena). Ora se o nome surgiu como consequência da descoberta do rio por Tristão e sua morte, era lógico que fosse aplicado imediatamente - como sucedeu com outros casos análogos - e não bastantes anos após. A dúvida acentua-se· consultando os roteiristas. Ném no Esmeraldo (I, 32.º- argumento jã aduzido por DuARTE LEITE, pág. 167), nem no relato da costa de África recolhido por VALENTIM FERNADES (pág, 88), nem no Livro de rotear igualmente copiado pelo diligente moraviano (pág. 217) vem a mais pequena referência que associe o nome do rio a Nuno Tristão. Só muito mais tarde tal se verificará.
Afigura-se portanto como mais provável que a designação se refira a outro navegador (DuARTE LEITE, pág. 166, nota 184), e possivelmente o que na realidade o tivesse descoberto. De dois com o nome de Nuno temos conhecimento: Nuno António de Góis, escudeiro fidalgo da casa do Infante D. Henrique, de que fala a carta régia de D. Afonso V a Cid de Sousa (27 de Fevereiro de 1453), emcarregando-o do resgate de mercadorias e da capitania das caravelas no trajecto para além do rio de S. João (42), e Nuno Femandes da Baia, que com Diogo Gomes foi à Guinê como capitão de uma caravela (1456) (43).
Estas coosiderações vêm reforçar o que DIOGO GOMES regista no seu relato: que o Rio de Nuno Tristão fica na terra dos Barbacins (ao Norte do Gârnbia (…). Conclue-se assim que o Rio Nuno actual não deve o seu nome a uma transposição cartográfica, mas sim a navegador desconhecido, e que o primitivo Rio de Nuno Tristão perdeu essa designacão ( .. ). Cremos que ele é o que veio depois a chamar-se Rio dos Barbacins, que adiante se verá ser o actual Solum. A nova apelidação era mais sugestiva, por lembrar imediatamente o curioso povo da região, e fàcilmcnte obliterou a que ilustrava o infeliz navegador.É curioso ainda registar que nalgumas dezenas de reproduções de cartas portuguesas e estrangeiras dos séculos XV, XVI e XVII que pudemos consultar, vem sempre a designação «Rio Nuno», correcta ou mais ou menos deturpada. Pela primeira vez encontrámos «Rio Nuno Tristão», mas a par de «Rio Nuno», na «Carte particuliêre des Costes de l'Afrique, qui comprend te Royaume de Cacbeo le Province de Gelofo & levée par ordre express des Roys de Portugal sous qui on en a fait la Découverte» (44) . (1700). Esta carta reveste-se de particular importância pela sua origem. Um agente de Luís XIV, Jean Frémont d'Ablancourt, andou pela côrte portuguesa, de 1659 a 1664; soube aproveitar bem o seu tempo, pois conseguiu perscrutar os segredos da secção cartográfica da Casa da índia e da Mina, o «Aimirantado Português», sempre ciosamente guardados. Alcançou obter cópias das cartas que os reis de Portugal sempre guardaram cuidadosamente para o seu uso. Essas cópiass vieram a pertencer a Monsieur de Halewyn, que as entregou a Mortier para publicação. O editor comenta que «como até ao presente não se puderam ter cartas exactas dos pa!ses contidos naquelas que dou hoje a público, creio prestar um serviço muito considerável». Saudosos tempos, em que os estrangeiros para navegar por todo o Mundo recorriam às nossas cartas!
Posteriormente volta-se a encontrar a designação de Rio Nuno Tristão aplicada ao Rio Nuno numa carta de D'ANVILLE de 1775, de evidente origem portuguesa na zona em questão (47).
Em resumo: nas primeiras cartas portuguesas hoje conhecidas que se julgam cópia da «carta-padrão> da Casa da Mina (as de c. 1471 e1502, em Modena), aparece simplesmente Rio Nuno. Em cópia da «Carta-padrão» de c. 1660 já vem, a par, Rio Nuno Tristão. É fácil portanto concluir que esta última designação apareceu como resultado da lenda estabelecida à volta do assunto, e de maneira nenhuma constitui uma prova de que o navegador tivesse atingido o local que a tradição consagrou.
A propósito da facilidade das transposições cartográficas cita-se um xemplo. Referiu-se atrás que ÁLVARES D'ALMADA fala de um Rio do Furna, onde se dá o macareo, a seguir ao Rio Nuno. Aquele rio vem já em Vesconte de Magiollo (1511), mas juntamente com o segundo só o encontrámos em André Homem (1559) - mas pela ordem inversa da de ÁLVARES D'ALMADA, isto é, o Nuno mais ao sul.
Ilhas, Cabo e RioTristão - Nunca encontrámos estas designações em cartas anteriores ao século passado. Cremos que apareceram em fins de setecentos ou na primeira metade de oitocentos. Do que se conclui que nada provam em favor da tese tradicional.
Não é difícil calcular como surgiram. Já se viu como em meados de seiscentos - e não parece que desde muito antes as «cartas padrões» da Casa da Índia e da Mina começam a registar, ao lado de Rio Nuno, a forma Rio Nuno Tristão, que passa para algumas cartas estrangeiras. Como poucas milhas ao Norte ficam as ilhas em questão, transpôs-se para elas, e depois para o cabo e canal, o apelido do navegador que se julgava ter descoberto a região.
(41) MACLAUD, B 31, pg. 35: «Il est vraisemblable que les Nalou one occupé à une époque plus ou moins reculé 1: N’Gabou et la région du Haut-Géba, qu’ils auraient quité devant l’évasion des Mandinké ou des Foulacounda. On remarque, en effet, que dans tout le pays qui s’étend entre le cours supérieur du Rio Géba etle Rio Componi, et là seulement, les noms d'un grand nombre de villages commencentpar la syllabe Kanou Kon (Kankeléfa, Kondiaft, Kandienou, Kamdemba, Kandinfara, etc.). Or le préfixe Kon signifie «village de». en dialect nalou».
No entanto a interpretação que demos da palavra Cubisseque parece-nos fortemente duvidosa. É possível que se trate de uma simples corrupção de Bessegue, ou esta palavra seja corruptela daquela. A razão deduzida de MACLAUD não é convincente, tanto mais que nas línguas fula, mandinga e beafada há prefixos semelhantes com o mesmo significado.
(42) SOUSA VITERBO, 8 44, I, pg. 292.
(43) GOMES, B 25, pg. 81.
{44) GOMES, B 25, pg. 79
(45) Não conseguimos encontrar nenhuma carta com o Rio Nuno Tristão na terra dos Barbacins. A nomenclatura usual dos rios da região é: Rio dos Barbacins, Borsalo, Rio de Lagos. A carta de Salvat di Pilestrina (1511) apresenta-se mais completa e algo diferente, pois traz dois rios cujos nomes não são os usuais, mas que no entanto não conseguimos decifrar. {46) ABLANCOURT, B 1.
(47) Reproduzida em DEMOUGEOT, B 19, pg. 287.
3 - ELEMENTOS DE CARÁCTER ETNOGRÁFICO
As descrições de ZURARA e BARROS são bem frizantes em três factos: a rapidez das canoas indígenas, a ferocidade destes e e o emprego de flechas particularmente envenenadas. Vejamos até que ponto estas indicações ajudam a determinar o local do sucesso. Ao Norte de Cabo Verde sabe-se que os jalofos envenenavam as suas armas. CADAMOSTO {1ª, cap. XXXII) descreve como Bisboror, neto de Budomel (rei do Caior) o fazia:
«Com esta mistura [sangue de cobra e suco de ervas] envenenava as suas armas, as quaes onde chegavam, huma vez que fizessem sangue (bem que a ferida fosse pequena) em hum quarto de hora morria o ferido». (48).
Em Cabo Verde também a prática era usada, como revela DIOGO GOMES ao falar de Bezeguiche (49) (rei de que derivou um dos primitivos nomes da ilha, situada em frente de Dakar, de que o actual, imposto pelos holandeses, é Gorea).
Para o Sul de Cabo Verde, ao longo da costa, estendiam-se os Sereres - raça a que possivelmente pertencia o Bezeguiche, - e após eles os Barbacins. De uns e outros CADAMOSTO (1.•, Cap. XXXV) salienta a ferocidade:
«…são homens crudelíssimos: usão de arco com frechas, mais do que nenhuma outra arma; e atirão com ellas envenenadas, de modo que tocando na carne, logo que fazem sangue, morre o ferido imediatamente».
Num rio (que se infere ser o actual Jumbas) após o rio dos Barbacins (provàvelmente o Salum) o intérprete enviado a terra foi trucidado selvàticarnente pelos indígenas, armados de «arcos, setas e armas» ( 1.ª, Cap. XXXVI).
É de notar porém que, segundo ÁLVARES D'ALMADA (50), os Jalofos e Barbacins não faziam a guerra por mar, embora transportassem guerreiros de uns sítios para outros nas suas almadias, que eram menores que as do Gâmbia, Rio Brande e Bijagós.
Passando os mandingas do Gâmbia - a que abaixo se fará referência - seguiam-se os felupes e arriatas, a partir do Combo (onde estavam misturados com mandingas) até ao rio de S. Domingos, em cuja foz dominavam, nas duas margens, pois haviam invadido, no Sul, a terra dos Buramos (Brames), instalando-se na Mata de Putamo. Por ALVARES D'ALMADA (61} sabemos serem excelentes marinheiros, dados a cortarem de noite as amarras dos navios portugueses para os fazer encalhar e assassinar os tripulantes. Mas o mesmo autor salienta explicitamente que, usando de facto frechas, elas «não são hervadas», e em lugar de ferro trazem nellas mettidas espinhas de um peixe chamado Bagre».
Igualmente não encontrámos referência ao uso de frechas ervadas por parte dos buramos (maneira como se designavam então os povos da costa entre o Cacheu e o Geba, abrangendo os actuais brames, papéis e manjacos), nem à prática, neles, de fazer guerra por mar. Os irrequietos Bijagós, de que ÁLVARES D'ALMADA dá uma curiosa definição - «não fazem mais que tres cousas: guerra, e fazer embarcações, e tirar o vinho das palmeiras» - eram temíveis na guerra marítima. Desde o Cacheu ao Botola traziam os povos aterrados
«...e trazem desínquieta toda a terra dos Beafadas e Buramos, que lhes ficão defronte, com as continuas proezas que sempre nelles fazem; e de tal maneira os desinquietão que continuamente vigião de noute e de dia».
Mas sabemos também que as suas frechas «...não são hervadas; e em lugar de ferro lhes põem humas espinhas de pescado chamado Bagre, que elles tem por peçonhento, e o he.» (52).
A peçonha das espinhas do peixe não devia ser muito de temer, e não é de crer que provocasse o efeito notado em Nuno Tristão e seus homens (52). A. terrível virulência deste caso não está de acordo com as descrições das rapinas dos Bijagós, onde não é costume falar-se de hecatombes por envenenamento de armas; o que eles pretendiam era fazer escravos e saquear. O facto é confirmado por uma indicação de AZEVEDO COELHO, que refere que os habitantes do reino de Bicega (Cubisseco) usavam frechas muito venenosas, «...e só com elles os Bijagós não poderão e algumas vezes que la forão vierão com às mãos na cabeça, fazem uma peçonha confessionada de ervas com que untam as pontas das suas frechas que não se lhe acha contra, e assim são melhores as frechas daqui, que de nenhuma parte». (53).
Se as frechas dos Bijagós fossem muito venenosas, não deviam eles recear-se tanto de fazer entradas no Cubisseco. Igualmente se pode inferir que os Buramos não as usavam. Quanto aos Beafares, apesar de ALVARES D'ALMADA também lhes atribuir frechas ervadas (54), não deixam de sofrer as constantes rapinas dos Bijagós, o que leva a crer que o veneno que usavam não era muito virulento (54).
Dos Nalus não encontrámos referências a frechas envenenadas, nem à prática da guerra por mar.
No Nuno, habitado pelos Bagas em fins de quinhentos, também são omitidas tais indicações em ÁLVARES D'ALMADA que diz que os indlgenas são «muito atraiçoados» e «folgão estranhadamente de matarem os nossos, quando se desmandam pela terra a irem chatinar»; trucidavam em terra à traição, e aproveitavam as cabeças «limpas de carne e miolos» como Púcaros (55). AZEVEDO COELHO já escreve porém que os Bagas, ao tempo, eram muito leais e não combatiam à traição, avisando sempre que iam guerrear; contudo adiante acrescenta que «as armas com que se peleja aqui tudo he frecharia ervada, as pontas de ferro, mas elles tem grandes contravenenos» (56). Diferem os dois autores no espírito dos indígenas, e só o segundo fala de armas envenenadas. Contudo ambos estão de acordo em omitir a prática da guerra por mar e a propensão marítima dos Bagas.
Propositadamente guardámos para o fim o Gâmbia. É que das descrições que dos seus habitantes nos chegaram extrai-se uma ideia a que se ajustam perfeitamente os relatos de ZURARA e BARROS. Ao entrar no Gâmbia diz CADAMOSTO que «Vendo os Portugueses as almadias, e duvidando se acaso vinhão com tenção de maltratallos, tendo sido avisados pelos outros Negros, que neste paiz de Gambia todos erão archeiros, que atiravão setas envenenadas...derão aos remos…mas não o fizeram tanto a salvo, que quando chegavão a elle não tivessem as almadias nas costas, não mais longe que hum tiro de seta, porque são velocíssimas». (1ª. Cap. XXXVll).
E mais adiante «...,duvidando se suas frechas serião envenenadas (pois tinhamos ouvido, que muito uzavão dellas)». (1ª, Cap. XXXVIII).
Na segunda viagem, ao falar de uma caçada feita em sua honra pelo rei Guermimensa, «o qual habitava junto à embocadura deste rio», diz que «todas as suas armas são envenenadas» (II.ª, Cap. V}.
VALENTIM FERNANDES, falando dos mandingas do Gâmbia, refere que são «...as frechas de cana maçiça, e as põtas de pao tostado no fogo, e alguas porcas de ferro. E estas frechas são muyto éhruadas todas» (57).
Mais adiante (pág. 232), no que se afigura ser um resumo do relato de CADAMOSTO, fala também da caçada indicada acima, mencionando as frechas ervadas, mas, facto para que desde já se chama a atenção, ao rei que CADAMOSTO denomina Guermimesa, dá ele a designação de Gnumimansa.
ÁLVARES D'ALMADA deixou-nos alguns elementos valiosos sobre os mandingas do Gâmbia: «são muito guerrreiros estes negros e nesta terra ha mais armas que em nenhuma outra da Cuiné, porque, oomo ha nella ferro que fundem, fazem muítas armas de azagais, dardos, e muita frecha; e a sua herva he a mais peçonhenta que todas as outras; porque vimos no porto de Cação (58) terem com os nossos huma briga, seria às 10 do dia, na qual houve mortos de huma parte e da outra; e depois de recolhidos, à hora da vespora, querendo os nossos dar sepultura aos mortos, os que estavão feridos de frechas hervadas não poderão ser levados a ellas, porque era tão fina a herva da peçonha que estavam já os corpos corruptos, de maneira que apegando por bum braço se despendia do corpo, e de huma perna da mesma maneira. Não houve remédio se não fazerem as sepulturas ahi onde estavão os mortos, e bota-los dentro dellas. Tal he a herva destes negros. São pela maior atraiçoados. Toda a banda do sul deste rio são máos; prezão-se de matarem brancos, e tomarem navios; como já fizerão a alguns». (págs. 27-8). «Ha neste rio, na entrada delle até 70 legoas, almadias muito grandes, que às vezes andão de guerra; e taes que ja acommetêrão algumas lanchas de Franceses e as tomarão…» (pags.35).
Um dos argumentos de que ARMANDO CORTESÃO (pág. 15) se serviu para identificar com o Geba o local do ataque a Nuno Tristão foi a indicação de AZEVEDO COELHO de que desse rio para o sul os indígenas usavam frechas ervadas de efeitos rápidos e de que se não conhecia antídoto (58). Já DUARTE LEITE (pág. 166) havia refutado tal argumento, baseado em que ZURARA (cap. 63.º) refere o emprego de tal arma nas imediações de Cabo Verde.
Cremos que se pode ir mais longe nas conclusões a tirar. De Cabo Verde ao Gâmbia, sereres, barbacíns e mandingas empregavam frechas envenenadas. Do Gâmbia para o Sul, os felupes limitavam-se a usar pontas de espinha de bagre, não ervadas, e das referências citadas, custa a admitir que elas provocassem hecatombes no género da de Nuno Tristão e seus companheiros; o Casamansa e o Cacheu resultam assim muito pouco prováveis. O mesmo há a dizer quanto ao Geba, na foz, porquanto os bijagós utilizavam de forma análoga o bagre e não parece que os brames (que na região - ilhas da margem norte do rio - são os actuais manjacos) recorressem ao veneno nas setas. No Bolola, se há dúvida quanto aos beafadas da margem norte, os do outro lado eram mestres no assunto, com grande arrelia dos bijagós; mas custa a admitir que Nuno Tristão aí fôsse encontrar a morte pelas razões de ordem náutica-geográfica que atrás ficaram expostas. Dai para o sul os escritores antigos omitem referências concretas ao uso de tão traiçoeiras armas, com excepção do Nuno.
O que parece portanto mais indicado, no que respeita ao argumento das frechas ervadas, é procurar os assassinos dos nossos mareantes entre os seres, barbacins, mandingas e bagas.
Inclinamo-nos, porém, para os penúltimos. As descrições que deles nos deixaram CADAMOSTO, ALVARES D’ALMADA e outros ajustam-se de maneira ideal com a forma como se deu o ataque. Efectivamente, em nenhuma outra raça se ligam tão perfeitamente as características de ferocidade, particular virulência das frechas e extrema velocidade das canoas que ZURARA e BARROS nos revelam. Mas cumpre desde já acrescentar que o facto de se tratar de mandingas não permite localizar o sucesso no Gâmbia. Com efeito CADAMOSTO, ao descrever as suas embarcações e peculiar maneira de remar (de pé, e sem toletes) diz que «...com esta casta de remos vogão à força de braços estas suas barcas volocissimamente, pela costa de mar tem a terra: tem muitas bocas de rios, onde se metem, e são bastante seguros, mas commumente não se afastam muito do seu paiz; para que não suceda que na passagem de huma terra para a outra sejão feitos prisioneiros, e vendidos por escravos».   (lIª, Cap. lV).
ALVARES D’ALMADA, ao descrever os Felupes e Arriatas ao sul do Gâmbia, diz que «...os Mandingas do Rio de Gambia dão que fazer a estes, e os desinquietam, armando almadias de guerra mui formosas, e botando pelo Rio de Gambia fora, correndo a costa do Cabo de Santa Maria para baixo, e dão nos Arriatas e Falupes que vivem ao longo desta costa. (pág. 38).
Infere-se portanto que os mandingas navegavam também na costa do mar e eram dados a correrias para fora do Gâmbia em busca de escravos.
Do exame das antigas relações, roteiros e cartas concluímos que no estuário Salum-Jumbas-Banjala confluiam os domínios de barbacins, sereres, jalofos e mandingas - reinos de Barbacin (Bor-ba·Sine, rei do Sine, afluente do Salum), Borsalo (Bor-Salum, rei do Salum), Nomemansa (Niom-mansa, rei de Niom). As razões desta conclusão levariam a alongar-nos demasiado, pelo que as omitimos. Não pudemos definir com exactidão as fronteiras dos vários reinos, que aliás cremos terem estado sujeitas a flutuações no decorrer dos tempos. Ora o Niom, zona entre o Jumbas e o Gâmbia, era habitado por mandingas, sob o domínio do Nomemansa, rei da foz do Gâmbia do lado norte. Portanto o facto de se concluir que foram muito provavelmente mandingas os atacantes de Nuno Tristão, não prova que tenha sido o Gâmbia o local do sucesso. Podia ter sido esse rio ou um dos braços do Salum-Jumbas-Banjala, principalmente um dos do sul.
(48) VALENTIM FERNANDES, B 45, rambém refere o facto, segundo parece baseado ern CADAMOSTO.
(49) GOMES, B 25, pg. 79.
(50) .ALVARES D' ALMADA, B 2, pg. 23.
(51) ALVARESs D’ALMADA, B 2, pgs. 38-9.
(52) ÁLVARES D'ALMADA, B 2, pg. 54
(52-a) O espigão do bagre não é venenoso, mas como é serrilhiado faz com que os ferimenlos sejam de difícil cicatrização. Deve ser neste sentido que ALVARES D'ALMADA emprega a palavra «peçonhento».
(53) AZEVEDO COELHO, B 2-a, fl 72.
(54) ALVARES D'ALMADA, B 2, pg. 59.
(54-a) Por Frei André de Faro sabemos que as frechas dos bceafadas não eram ervadas. «por não aver na sua terra aquella maldita erua que os outros tem» (Peregrinação de André de Faro à Terra dos gentios, publicada por LUIZ SILVEIRA. Lisboa, Bertrand, 1945. LXI - 124 pgs.). Os «outros» $ão os habitantesda Serra Leoa e do Nuno, de onde o frade vinha quando aportou à Guinala.
(55) ÁLVARES D'ALMADA, B 2, pg. 70.
(56) AZEVEDO COELHO,B 2-a, fls. 80 e 82.
(57) VALENTIM FERNANDES, B 45, pg. 79.
(58) Deve ser o Kassang das cartas inglesas, a uns 160 quilómetros da costa.
(58-a) Devemos notar que não encontrámos em AZEVEDO COELHO indicações que permitam a conclusão de ARMANDO CORTESÃO. No Geba nunca fala de frechas ervadas - o que invalida o argumento deste investigador - e dai para o Sul só as refere no Cubisseco e no Nuno. Cremos que houve confusão com o Cubisseco.
CONCLUSÕES
Da análise até aqui feita concluiu-se, dos elementos de carácter náutico-geográfico, que o términus de Nuno Tristão se afigurava como mais provâvel entre Sangomar Point e Cape Bald - um dos braços do Salum-Jumbas-Banjala ou o Gâmbia - e que o Geba e rios para o sul dificilmente se podiam aceitar.
Da análise cartográfica inferiu-se que não tinha qualquer valor o argumento que baseia numa identidade de nomes a determinação do limite da viagem. A idéia tradicional - o rio Nuno - fundada, como estava, nessa identidade não tem pois mais que a força da tradição, que aliás se viu ter nascido um século depois dos acontecimentos.
Da análise dos elementos etnográficos obtiveram-se conclusões em perfeita concordância com as deduzidas dos elementos náutico-geográficos.
Toda a discussão já feita, permitiria, por si só, aceitar com grande plausibilidade tais conclusões.
Mas há uma prova, que constitui a verdadeira chave para o problema, e que propositadamente guardámos para o fim, para não exercer qualquer sugestão durante a análise, e ainda porque o autor de onde ela vem tem sido fortemente contestado na sua autoridade.
Essa prova é o relato de DIOGO GOMES. Cremos que se tem sido demasiado severo para com o velho almoxarife do Paço de Sintra, e abusado demais da sua falta de memória, das erradas interpretações que MARTINHO DA BOÉMIA fez do seu relato, e sobretudo da sua – ainda não provada - gabarolice. Aos investigadores que seguem cegamente CADAMOSTO realçando-lhe as qualidades e esquecendo os seus manifestos erros e prosápias, e inversamente, a propósito de tudo e de nada, atacam DIOGO GOMES, desfiando-lhe as inexactidões, acumulando sobre ele labéus de ignorância e estultícia, e deixam no olvido os seus acertos, chamamos a atenção para a interessante exploração do Gâmbia, levada a cabo por este último. Até hoje ainda não mereceu o devido inlerêsse dos investigadores portugueses a viagem de cerca de 500 quilómetros que Diogo Gomes realizou pelo Gâmbia acima. Na ocasião própria se verá como ela está inteiramente comprovada. No entanto, a fama de explorador - que os nossos historiadores aceitam como a apresentam os compatriotas de CADAMOSTO - pertence ao veneziano, que não passou de 100 quilómetros além da foz.
O que agora interessa, na parte respeitante a Nuno Tristão, do relato de DIOGO GOMES são as seguintes passagens: «...navegaram o Cabo Verde, e o passaram chegando a uma terra de homens maus chamados Serreos... Navegando além ainda foram à terra de Barbacins e acharam um rio pequeno que agora chamam Rio Nuno Tristão. E indo além viram muitos negros daquela terra em almadias dentro no rio e fora no mar, com setas venenosas, e mataram todos estes cristãos...e eu, Diogo Gomes, tive muito tempo depois uma ancora que me deu de presente o rei dos prelos. E eu fui o primeiro cristão que fiz paz com eles, e este rei se chama Mains e é senhor de muitas almadias.»

Segue-se o relato da viagem de Valarte, onde diz que «...êstes navegaram ainda além do lugar dito, onde os cristãos tinham sido mortos.»
Ao falar da sua viagem (1456) diz DIOGO GOMES que, passada a foz do Gâmbia, «...pela manhã entrámos mais longe e vimos muitas almadias tripuladas, que assim que nos viram fugiram, porque eram os que assassinaram os supraditos cristãos com o seu capitão.»
No dia seguinte, entabuladas relações com negros da margem sul, souberam pelo seu chefe, Frangasick, «...porque os pretos do lado esquerdo do rio não quiseram falar e porque mataram os cristãos.»
Mais tarde, também outro chefe do lado sul, Batimansa, prestou análogas informações: «E ali soube eu a verdade, que todo o dano feito aos crisãos o fizera um certo rei, chamado Nomimans, que possui a terra que jaz neste promontório. Com o qual muito trabalhei em fazer paz, e mandei-lhe muitos presentes pelos seus homens em almadias suas, que iam buscar sal ao seu paiz; o sal abunda ali e é de côr vermelha.
E muito receava dos cristãos por causa do dano que Ihes fizera às caravelas já nomeadas. E fui pelo rio contra o oceano até ao pôrto que está cêrca da foz do rio. E êle mandou-me grande número de homens e mulheres para me experimentar se por acaso lhes faria algum mal; o que eu fi pelo contrário recebendo-os com afabilidade.»
Como já se disse, foi JOÃO BARRETO (pgs. 33-4) o primeiro a aproveitar estes informes, que o levaram a pensar na Gâmbia como local do ataque; mas a opinião de BARROS pesou, e o ilustre historiador da Guiné acabou por escrever que «devemos reservar o nosso juizo sobre o ponto em questão, enquanto novos elementos de informação não venham a esclarecer o caso».
Depois DUARTE LEITE (pg. 165), que após a sua análise concluira pelo Barbacins ou pelo Gâmbia, também deduziu de DIOGO GOMES a indicação do Gâmbia; mas refere-se ao facto em termos tais, que não se chega a perceber o crédito que lhe confere.
Por fim DAMIÃO PERES (pgs. 96-99) aproveitando a indicação de ZURARA de que os atacantes vinham da margem direita do rio, e confrontando-a com os dizeres de DIOGO GOMES (o rei Nomemansa, que matou os cristãos, dominava na margem direita do Gâmbia), conclue que Nuno Tristão foi o descobridor do Gâmbia.
Esta conclusão é de facto aliciante, mas parece-nos que não se pode tirar. Vejamos as razões.
Como nas outras viagens a analizar haverá que falar ainda muitas vezes dos povos ao sul de Cabo Verde, traça-se desde já um resumido quadro da sua distribuição geográfica nessa época, extraido principalmente da leitura dos velhos textos portugueses, que ainda estão muito longe de estudados e aproveitados para a investigação etnográfica.
Para o sul de Cabo Verde, na costa, viviam os Serreos, Çoreos ou Xeréos, (Sereres), raça que em tempos remotos parece ter habitado as margens do Senegal, de onde seria expulsa para o litoral pelos jalofos, e de que o núcleo mais puro são hoje os Niominkas, habitantes das ilhas entre o Salum e o Jumbas (Gandoul). É de crer que no século xv eles estivessem um pouco mais ao norte, embora os nossos autores pareçam confundir por vezes o seu grupo sul na designação geral de Barbacins, jalofos cujo habitat fundamental era a zona das margens do Sine (de onde lhes veio o nome – Borbacins, súbditos de Bor-ba-sine, rei do Sine:) (59). Ao tempo de AZEVEDO COELHO estavam os sereres da costa sujeitos ao reino de Porto Dale, reino de Ale-em-biçane de ALVARESD'ALMADA, parte norte do reino de Barbacin. Neste reino ficava o pequeno rio de Joala.
O Rio dos Barbacinss emparava este último reino do de Borçalo. O rio dos Barbacins é certamente o Salum. CADAMOSTO indica a distância de 60 milhas a Cabo Verde - correcta (I.ª, cap. XXXVI); VALENTIM FEMANDES confirma-o, e diz com exactidão que «de dentro tem hüa boca e faz dous braços», o Broçalo (Salum) para o Norte, e o Borjoníc (braço que liga ao Jumbas, e ao qual liga outro que ainda hoje se chama Guioníc) para o sueste (pg. 72); de ALVARES D'ALMADA também se deduz ser o Salum (pg. 19); PIMENTEL igualmente o indica (pg, 235.
Segue-se ao rio referido o reino de Borçalo (Bor-Solum, rei do Salum), de que não encontramos traça nos escritos de quatrocentos, mas que já vem em Cantino (Borsalo, 1502) e VALENTIM FERNANDES, e de que posteriormente se encontram abundantes provas do seu poder. Habitado por jalofos, barbacins e mandingas, por vezes aparece dominando no lado norte da foz do Gâmbia.
A partir do rio de Lago ou de Laco (que de VALENTIM FERNANDES e ALVARES D’ALMADA se vê ser o Jumbas) estendia-se uma zona ainda do estuário Salum-Jumbas-Banjala (com o Banjala e o Jinnak) sobre a qual dominava por vezes o Borçalo, outras o chefe da margem norte do Gâmbia junto da foz (no tempo de AZEVEDO COELHO era este:«saindo do rio de Borçallo pela costa abaixo está o rio de Felám, cuja gente da banda do Sul he sogeita ao Rey da Barra»).
Vinha finalmente este, imperando para dentro do rio por uma certa extensão e para fora ao longo da orla marítima num raio de acção que incluía a parte ao sul do Jumbas.
Vista a distribuição dos povos ao sul de Cabo Verde, voltemos ao relato de DIOGO GOMES. Ao falar da viagem de Tristão diz ele que o rei dos pretos lhe deu uma âncora. Já se viu que a âncora não devia pertencer à caravela daquele navegador, mas a outra, provàvelmente a encalhada na região nesse mesmo ano. O que importa é o nome do rei: nome mains (60). Mais adiante a êle se atribui também o ataque a Valarte (conclusão que se tira por DIOGO GOMES dizer: «dano que fizera [aos crntãos] e às caravelas), chamando-se-lhe Nomymans. Noutro lugar ainda, que não transcrevem os atrás, vem Nominans.
Nome mains, Nomymans, Nominans são as várias maneiras como MARTINHO DA BOÉMIA escreveu o som que DIOGO GOMES lhe ditou, e que deve ter sido Nomemansa ou Nomimansa, palavra composta de Nomeou Nomi e mansa. Mansa ou Mansó é designação mandinga que significa rei ou chefe e se junta geralmente ao nome da região onde êle impera.
Entre os mandingas o seu afamado imperador supremo chamava-se Mandimansa - Rei de Mandi, Mali ou Meli – que no entanto os jalofos já designavam por Bormeli (Bor-Meli).
Nomemansa ou Nomimansa é pois o Rei de Nome ou Nomi.
A primeira conclusão a tirar de DIOGO GOMES é que os negros que chacinaram Nuno Tristão e os companheiros eram mandingas ou estavam mandinguisados. Os jalofos designavam os seus chefes por Bor. Que o rei desses mandingas dominava na margem norte do Gâmbia, junto da foz, também se conclui expressamente de DIOGO GOMES.
CADAMOSTO (Il.ª, Cap. V) chama ao rei dessa região Guermimensa e vai-nos advertindo de que «todas as suas armas são envenenadas». O da “Colecção de Notícias para a Historia e Geografia das Nações Ultramarinas”, erro que não pudemos ver se já vem na 1ª edição italiana, a de 1507 (62)
Há portanto concordância entre DIOGO GOMES e CADAMOSTO. O primeiro chama ao rei Nomimans, o segundo Gumimansa: os sons são semelhantes, e não pode haver dúvida de que se trata do mesmo nome - o rei de Nomi ou Gnumi, região da margem norte do Gâmbia junto à foz. E um exame às cartas de hoje comprova a asserção. Nos mapas franceses lá vem no mesmo sitio a palavra Niom. Nas cartas do Almirantado Inglês a região vem dividida em duas partes: ao norte, incluindo a margem sul do Jumbas, o Niumi-Bato; ao sul, junto do Gâmbia, o Niumi-Banta.
Foram portanto os negros do Nomi, Gnumi, Niom ou Niumi os atacantes de Nuno Tristão e dos seus companheiros.
Apurado quem matou o navegador, pode-se ainda saber onde foi? É o que se vai ver.
ZURARA, no cap. 88, ao descrever a viagem de Estêvão Afonso, diz que chegaram a um rio «assaz de boa largueza», 60 léguas além de Cabo Verde. A identidade do número de léguas levaria a supor que se tratava do mesmo atingido por Nuno Tristão. Mas, como já DUARTE LEITE (pg. 166) notou, é estranho que o cronista só agora falasse da grande largura do rio, e não referisse o desastre lá sucedido. É portanto de crer que os rios sejam diferentes, possivelmente de Estêvão Afonso o Gâmbia e o de Tristão um dos braços do Salum-Jumbas-Banjala.
Esta suposição acentua-se notando que DIOGO GOMES dá a caravela de Valarte como ida mais além, embora o dinamarquês atacado pelo mesmo rei que Nuno Tristão. É certo que DAMIÃO PERES entende que o «mais além» pode significar que subiram em maior extensão o mesmo rio (pg. 99). Tristão teria chegado à foz do Gâmbia e Valarte subido mais a montante.
Parece-nos, contudo, que mais se ajusta ao relato de DIOGO GOMES a suposição de que Nuno Tristão não passou a barra do Gâmbia e foi atacado num dos braços do estuário que o precede.
Quanto a nós, cremos que o mais provável foi o navegador ter descoberto o Rio dos Barbacins (muito possivelmente o Rio Nuno Tristão de que fala DIOGO GOMES) - o Salum·- e, prosseguindo para o sul, ter atingido o Rio de Lago ou de Laco - o Jumbas - que tem uma maior embocadura (63). Aí, ou num dos braços mais a meio-dia – o Banjala ou o Jinnak -  tentou subir o rio no batel, sendo então atacado, mas já em terras do Nomimansa.
O indício de que DAMIÃO PERES se serve, prova apenas que o rei dos atacantes dominava na margem direita do Gâmbia, mas de maneira nenhuma que aí se deu o ataque. No labirinto de braços e canais do estuário Salum-Jumbas-Banjala, onde partilhavam domínios o Barbacim, o Borçalo e o Nomimansa, o facto de os negros virem de uma margem ou da outra de um desses vários cursos de água não nos pode servir de indicação quanto à origem dos atacantes. A associação que o referido investigador faz entre os relatos de ZURARA (os negros vinham da margem direita do rio) e de DIOGO GOMES (o rei dos negros dominava na margem direita do Gâmbia) não prova que o ataque se desse no Gâmbia.
Nuno Tristão não esteve portanto em 1446 em território actualmente português. No sítio onde ele e os seus aventurosos companheiros bàrbaramente pereceram, dominavam os mandingas, senhores de segrêdo que levava nas pontas das flechas oculta a terrível morte. Lá se hasteia hoje bandeira estrangeira, muito provàvelmentc a francesa (que nem isso se pode ao certo saber, pois quis o acaso que a linha da fronteira ficasse a meio do Jumbas e do Gâmbia).
Mas traçou o destino que fosse ele o primeiro português a encontrar gentio de uma das raças que pululam em chão nacional. Era o primeiro contacto com o rnandinga, que já vira brancos, mas vindos por outros caminhos, pelas multi-seculares rotas das caravanas que atravessavam de norte a sul o Saará, e que não sonhava sequer que eles pudessem vir pelo mar, até ai Tenebroso. Quis ainda o destino que êsse contacto se revestisse da forma brutal que o caracteriza - para os papéis virem afinal a mudar de maneira tão completa! Os poderosos Imperadores de Mali, que lá muito para o Oriente, das margens do Niger, dirigiam os seus vastos domínios, ignoravam talvez a existência do obscuro Nomimansa, o último dos chefes que reinava no extremo da flecha que os seus exércitos haviam lançado até ao Atlântico através do Gâmbia. Mas enquanto a grandeza mandinga entrava no ocaso, levantava-se a portuguesa e ainda não seria decorrido meio século, e já o Mansa Mamadú, dos confins do Sudão, faria chegar o seu apêlo a D. João II, pedindo-lhe auxilio contra os inimigos que cresciam. E menos de meio século após novo apêlo chegava a D. João III, vindo de Mamadú II. Mas nada conseguiu deter a derrocada, e o Império Mandinga pulverizou-se, deixando o seu rasto aureolado pela lenda.
E o que se passou com o Nomimansa? Arrependido, solicitou as pazes a Diogo Gomes e pediu o baptismo. Em 1458 lá lhe chegava o sacerdote, com outros portugueses.
Depois, por muito tempo deixamos de ouvir falar em Nomimansa.
Os portugueses vieram-se estabelecer no seu domínio para comerciar. Vieram os lançados, e depois os franceses e os ingleses. Disputa-se a posse do Gâmbia, e estes nem nos reconhecem os nossos direitos, por sermos demasiado fracos para os defender.
Em 1696 um dos chefes do Gâmbia, o régulo de Tunhi, dirigia uma carta ao capitão-mor de Cacheu, pedindo o estabelecimento das autoridades portuguesas no rio, pois não se entendia com franceses e ingleses. O convite - em termos curiosos - era feito em nome de vários reis, entre eles o de Barra. A carta foi ao Conselho Ultramarino, que emitiu parecer desfavorável, com o qual o rei de Portugal concordou. O assentimento poderia trazer consequências desastrosas - era perigoso irritar a poderosa Inglaterra…
Quem era o rei de Barra? Nem mais nem menos o nosso Nomimansa, em cuja côrte se havÍam instalado os portugueses, e que havia mudado para a nossa língua a sua designação (64).
E ainda hoje por lá restam no Gâmbia os vestígios da nossa passada influência, nalguns nomes que ficaram - Barra, Ponta da Barra, Cabo de Santa Maria, llha dos Elefantes, etc.
Como já vai longe esse dia em que Nuno Tristão de maneira fatal sofreu o primeiro embate dos mandingas!
Avelino Teixeira da Mota, 2.º tenente
Aditamento - A amabilidade do Sr. Administrador António Carreira, profundo conhecedor da língua e costumes dos mandingas, devemos, sobre o significado da toponímia da região onde pereceu Nuno Tristão, algumas informações que completam o que deixámos já dito. Niom, Niumi, Nome, Nomi, Gnumi são várias formas como tem sido escrita a palavra Numi ou Niumi que em língua mandinga significa Litoral. Os nomes das duas regiões em que se divide o Niumi (Niumi-bantae Niumi-bato) devem ter a seguinte explicação: Poilão (bantan-ò) do litoral e porto (bàhto, de bàh, mar) do litoral.
Fica portanto absolutamente explicada a designação Nomimansa de Diogo Gomes, e igualmente comprovado que na região tinham assento os mandingas. Os domínios destes eram todos do interior, mas exactamente através do Gâmbia haviam penetrado até ao Oceano, e dai ser natural que designassem a última região atingida por Niumi, o litoral.
Ora numa zona do estuário Salum-Jumbas-Banjala, o grupo de ilhas que ficam entre o Salum e o Jumbas (Gandoul), vive hoje um núcleo de sereres que se apelidam Niominkas. Sabemos porém que eles se instalaram lã não há mais de quatro ou cinco séculos. Como a palavra niominkasé puramente mandinga e significa homens (nkas) do litoral (como mandingas, homens de Mandim, e Cassangas, homens de Casa), concluimos que os sereres tomaram para si a designação do povo que lá encontraram. De onde se infere finalmente que o Niumi ia do Gâmbia ao Salum, e que o facto de ter sido o Niumansa o chefe dos indígenas que mataram Nuno Tristão não prova que tivesse sido o Gâmbia o local do ataque.
(59) O reino Jalofo (Gelofa, Cyloffa) era já muito antigo. Além do Jalofo propriamente dito, o reino exercia por vezes certa influênciasôbre o Oualo, o Caior (Encalhor dos nossos cronistas, de que o rei era tambéin por eles denominado Budumel, ou seja Bor-Damel, isto é, rei Damel; Damel era o titulo privativo dos reis de Caior, reino que na costa abrangia desde o Senegal ao Cabo Verde), o Baol(Boól de AZEVEDO COELHO), o Sine (reino de Barbacin dos nossos autores) e o Salum (reino de Borça/o}. Aos jalofos estavam misturados numerosos sereres. Em meados do século XIV o reino de Jalofo revoltou-se e sacudiu o jugo de Tucuror, habitado por tucurores (designação de BARROS; os franceses dizem toucouleurs), povo do curso médio do Senegal. Durante cérca de dois séculos o reino de Jalofo impôs o seu domínio aos estados entre o Baixo Senegal e o Salum. Os tücurores, por sua vez, ainda  no século XV dependiam do famoso Império de Mali, que então começava a entrar no ocaso. DUARTE PACHECO PEREIRA escreveuque o reino de Jalofo ia do Senegal ao Gâmbia (I, 27.º).
(60) Na tradução de que nos servimos vem apenas Mains. No original latino incluido em VALENTIMFERNANDES, B 45, está nome mains, que deve ser a forma correcta, onde se conclui que há manifesto erro na edição de CADAMOSTO de que nos servimos.
(61) VALENTIM FERNANDES, B 45, pg. 232
(62) Seria interessante fazer o estudo comparativoentre os extractos de VALENTIM FERNANDES e as edições CADAMOSTO. Teria o moraviano aproveitado a 1ªedição italiana, ou servir-se-ia de algum manuscrito existente emPoriugal?
(63) VALENTIM FerNANDES, B 45, pg. 72, diz que nele pode entrar um navio pequeno.
(64) LEGRAND, B28, dá-nos curiosas elucidações sobre o reino da Barra em meados do século XVIII: «Les roitelets nègres des deuz rives (de la Gambie) - étaient sous la dépandances des rois du Bar-Salum (Saloum actuel) du Kantor et du Ouli. Eux-mêmes étaient tributaires d'un monarque très puissant dont l'em pire s'étendait vers l'Est, probablement l'empire mandingue. Le roi de Barra est celui dont le nom rvient le plus dans l'histoire de cette époque. La résidence de ce roi de race mandingue se trouvait sur la rive gaucbe à l'embouchure du fleuve, cn face de l'ile Saint-André (appelée aussi ile aux Chiens) - Dog lsland – et ile Saint-Charles}. Le roi résidait une partie de l'annéeà Barra el le reste du temps à Amador.» (pg. 442}.
«La population de Barra c'étaitt composéen partie de métis portugais, qui servaient d'intérmédeaires principalement aux Français et aux «interlopes» pour la traite sur la Gambie, moyennant un bénéfice qui atteignait certainement 100 f» (pg. 443).
PIMEMTEL, B 37, p. 236, referinodo-se a uma árvore notável da foz do Gámbia, escreve que «a qual arvore se chama o Pavilhão del rei do Barra, e todos os navios que entrão e costumão entrar com alguns tiros de artilheria, e pagão de tributo hurna barra de ferro ao rei de Gambea, que por isso se cham-a rei da Barra.» Cremos porém que o nome nasceu por força da situação geográfíca.
☻ Os primeiros anos de caça humana foram uma empresa perigosa com muitos portugueses mortos em guerra ou doenças. (um dos primeiros negreiros NUNO TRISTÃO, foi morto em 1446, junto com outros 18 no rio Gambia na sua quarta expedição de saque.) Um método mais simples era necessário para o sucesso do comércio. Os portugueses entraram em contacto com reis e outros potentados das regiões costeiras e gradualmente conseguiram arranjar parceiros comerciais, que em troca de tecidos e cavalos vendiam ouro, peles de antílope e até mesmo escravos.
Conta Diogo Gomes: «Depois que o senhor infante soube nova tão nefanda, mandou uma caravella armada de paz e guerra, na qual foi por capitão NUNO TRISTAN, já nomeado, que foi ao paiz dos Cenegos com outros nobres. Os quaes de Portugal directamente navegaram a Cabo Verde, e o passaram chegando a uma terra de homens maus chamados Serreos. E acharam muitos d'elles na praia com seus arcos e setas venenosas, e não quizeram fallar com os christãos. Navegando alem ainda foram á terra de Barhacins e acharam um rio pequeno que agora chamam Ryo Nuno Tristan. E indo alem viram muitos negros d'aquella terra em almadias dentro no rio e fora no mar, com setas venenosas, e mataram todos estes christãos. E tomaram a caravella e levaram-na para dentro do rio e destruiram-na. E eu Diogo Gomes tive muito tempo depois uma ancora que me deu de presente o rei dos pretos. E eu fui o primeiro christão que fiz paz com elles, e este rei se chama Nomemains e é senhor de muitas almadias


Este Reino de Gambia começa à entrada do seu rio mui famoso, 5 legoas da barra do Rio dos Barbacin. He mui facil a entrada delle, sem perigo, porque fica sendo aentrada como buma enseada, ficando a julavento delle o Cabo do Santa Maria (que he terra dos mesmos Mandingas), e a barlavento humas ilhas, dellas alagadiças, dellas não; as quaes ficão entre o Rio dos Barbacins e este de Gambia,cobertas d’arvoredo do mangues e outras arvores, algumas povoadas de gente e outras não.
Este Rio de Gambia he todo povoado de negros Mandingas de huma banda e outra, e em cada espaço de vinte legoas.
Saindo do Rio de Gâmbia está o Cabo de Santa Maria, o qual está em 13 gráos e meio. Na entrada deste Rio da banda do Sul delle ba huma terra não alta, manchada de alguns lenções amarellos e manchas que faz a propria terra, arvorada de algumas arvores. No rosto delle, em fundo de 4 e 5 braças,estão os baixos chamados de Santa Maria, de arrecifes de pedra. Do Cabo Verde a este de Santa Maria se corre a costa Noroeste Sueste, e em toda ella não há outros baixos, senão a baixa de Joala, a qual não arrebenta senão com muito mar e passão alguns navios entre ella e a terra; e os baixos dos Barbacins que estão na boca daquela barra, da qual he fácil a entrada; e depois destes estão neste Cabo os de Santa Maria, que de maravilha não tem os navios que fazer com eles, porque lhes manda o Regimento que não passem das 7 braças para a terra, salvo indo demandar as barras para entrarem nellas. Correndo deste Cabo para o Sul ainda são os negros delles Mandingas e chamão por ali Combo-Mansa. Resgata-se arroz e cera, mas já vão sendo os negros bravos. Passando estes para o Sul vão outros negros que confinão com estes Mandingas, chamados Arriatas que ficão de fronte dos baixos de S. Pedro, e do Cabo de Santa Maria até à entrada da Barra de S. Domingos,que he perto de 30 legoas.
São mui guerreiros estes negros, e nesta terra há mais armas que em nenhuma outra de Guiné, porque, como ha nella ferro que fundem, f'azem muitas armas de azagaías, dardos, facas, e muita freclha; e a sua herva he a mais peçonhenta que todas as outras; porque vimos no porto de Cação terem com os nossos huma briga, seria às 10 do dia, na qual houve mortos de huma parte e da outra; e depois de recolhidos, á hora de vespora, querendo os nossos dar sepultura aos mortos, os que estávão feridos de frechas hervadas não podérão ser levados a ellas, porque era tão fina a herva da peçonha que estavão já os corpos corruptos, de maneira que apegando por hum braço se despedia do corpo, e de huma perna da mesma maneira. Não houve remedio senão fazerem a sepultura ahi onde estavão mortos, e bota-los dentro dellas. Tal he a herva destes negros. São pela maior parte atraiçoados. Toda a banda do Sul deste rio são máos; prezão-se de matarem brancos, e tomarem navios; como já fizeram, a alguns. Nem se póde ir a elle senão em bons navios, que levem boa gente e boas armas, e ter boa vigilância nelles, porque nunca fazem a sua senão á traição…Há algumas fortalezas de guerra chamadas por elles Cão-sans, ao longo do rio e esteiros, fortes de madeira muito forte fincada toda a pique e terra-plenada, com suas guaritas, baluartes, e praças d'armas; nas quaes pelejão e frecbão. Fazem tambem hum betume como breo, que cosem em panella, e no tempo de dar o assalto os imigos lhes deitào aquellas panellas cum que os fazem retirar. Fazem os seus fortes, como está dito,  ao longo do Rio e esteiros por causa da agoa e das suas embarcações que tem, com que dão nos outros lugares, e assi roubão os que passão por aquellas partes estando elles de guerra. (Almada)
☻ Em 1446, ESTÊVÃO AFONSO atingiu o rio Gâmbia, na região dos Mandingas; ÁLVARO FERNANDES terá atingido o rio Casamansa (ou chega à enseada de Varela (?)), no limite Norte da actual Guiné-Bissau; JOÃO INFANTE, filho de Nuno Tristão, descobriu o rio Grande, depois denominado rio Geba, na actual Guiné-Bissau; segundo Gomes Eanes de Azurara, em 1446 foram 51 caravelas às terras da Guiné.
☻ Entrando pe!o Rio acima de Casamança, que fica a barlavento do Cabo Roxo, vão correndo na entrada pela banda do Norte os Jabundos, e pelo lado do Sul os Banhuns de lxgichor, como ja fica díto; os quaes ·se entendem todos uns com os outros; o qual reino he grande, porque fica no sertão sendo como muro aos Banhuns e Flupos, que lhe ficão à beira-mar. Houve nelle reis primorosos, principalmente hum chamado Masatamba, o qual comia em meza alta com suas toalhas postas, assentado em cadeira alta e comer cosido e feito ao nosso modo.
Andão os desta nação vestidos como os Jalofos e Mandingas, e ficão cingidos estes por cima dos Mandingas. Nesta terra corre alguma roupa de algodão. Usão cavallos, mas poucos, porque alguns que tem se levão da Ilha de Cabo Verde, ou da terra dos Jalofos ou Mandingas, os quaes andâo continuos na côrte deste Rei, principalmente· daquelles religiosos, dizendo muitas mentiras aos negros, e fazendo-lhes· crer muitas cousas. Veio aqui ter hum destes, das três casas que no Rio de Gambia ha, chamado Ale-mame. Este falava muitas vezes com o rei, e quando o rei queria saber alguma cousa do que se fazia em outra parte,tomava este caciz hum moço d'outra nação com quem se elle não entendia, de muitas leoas d''ali. Escrevia na testa deste moço humas linhas, e rnandava-lhe pôr huma bacia d'agoa de diante, e vendo nella, e não sabendo a lingoa do caciz de antes, depois de ter as letras na testa vendo na agoa; falavâo ambos e se entendião; e perguntando-lhe por muitas cousas que se fazião em outra parte, bem longe d'ali, dava tudo razão; e tanto que deixava de ver a bacia onde estava a agoa, não se entendião hum ao outro.
☻ 1446-Álvaro Fernandes
Viagem referida apenas por ZURARA (Cap. Lxxxvn) e BARROS (Déc. I, Liv. I, Cap. x1v). Os elementos principais para a identificaçãodo términus são os seguintes:
ZURARA
1 - A caravela passou para sul do Cabo dos Mastos.
2 - A caravela esteve nun rio, onde houve um ataque de indígenas com frechas.
3 - Para sul desse rio a caravela chegou a uma ponta de areia, junto de uma enseada, onde foram avistados indígenas.
4 - A enseada fica 110 léguas a sul do Cabo Verde.
5 - A rota até ela é «toda geralmente ao sul».
6 - A caravela de Álvaro Fernandes foi nesse ano a que avançou mais para sul.
BARROS
Além dos mesmos elementos de ZURARA, acrescenta:
1 - O rio onde Álvaro Fcntandes foi atacado era o de Tabite, 32 léguas além do rio Nuno.
As principais interpretações dos historiadores e investigadores acerca do âmbito da viagem têm sido as seguintes:
a) 1567 – DAMIÃO DE GOES (B19) - Rio Tabite.
b) 11141 – VISCONDE de SANTARÉM (B1) - Rio de Lago e Cabode Santa Ana.
e) 1844 - LOPES de LIMA (B24) - Rio de Cacé e Furna deSanta Ana.
d) 1868 - R. HENRY MAJOR (B 6) - Rio de Lago e Cabo deSanta Ana.
e) 1896/99- C. R. BRAZLEY e E. PRESTAGE (B 2) - Rio deLago e Cabo de Santa Ana.
f) 1931 - ARMANDO CORTESÃO (B 12) - Local perto da SerraLeoa. O Rio Tabite não pode ser o de Lago.
g) 1938 - JOÃO BARRETO (B 4) - Rio Tabite, que identifica oomo Caabite de DUARTE PACHECO, 11 léguas ao sul das Ilhas dos Ídolos.
h) 1941- DUARTE LEITE (B 22) - Ponto a pouco mais de 60 léguas a sul do Cabo Verde.
i) 1943 - DAMlÃO PERES {B 30) - Limite norte da actual Guiné Portuguesa.
i) 1945 - MACALBÃES GoDINHO (B 25) - Enseada ao sul do Cabo Roxo.
k) 1946 - A. TEIXEIRA DA MOTA (B 33) - Enseada de Varela.
l) 1946 - A. J. DIAS DINIS (B 14) - Ponto 65 léguas ao nortede Serra Leoa (ou ainda mais para norte).
m) 1946 - M. C. BAPTISTA DE LIMA (B 3) - Local da Guiné Portuguesa actual.
n) 1946 – JOSÉ DE OLIVEIRA. BOLÉO (B 28) - Não pode ser o·Tabite.
o) 1946 - DUARTE LEITE (B 23) - Parte norte da Guiné Portuguesa actual.
Do mesmo modo que para a viagem de Nuno Tristão se pode verificar que a opiniâo de BARROS fez escola antes da descoberta do manuscrito parisino de ZURARA.
Depois do achado deste, prevaleceu a interpretação de SANTARÉM (b) que tinha por certas as 110 léguas de ZURARA.
É só em 1938 que JOÃO BARRETO (g) identifica o Rio Tabite com o Caabite do DUARTE PACHECO, sem porém o localizar devidamente. Até aí correra a errada identificação de SANTARÉM (Rio de Tabite - Riode Lago).
Com DUARTE LEITE (h) inicia-se finalmente a nova interpretação, baseada sobretudo nos incontestáveis exageros de distâncias de ZURARA. DAMIÃO PERES (i) tem a mesma opinião sobre o términus da viagem (limite norte da actual Guiné Portuguesa).
MAGALHÃES GODINHO (j), baseado em elementos geográficos, pronuncia-se pela enseada ao sul do Cabo Roxo (de Varela), opinião que também seguimos.
Mostrámos igualmente (k) que o Tabite deve ser o actual Forikaria,o que torna absurda a versão de BARROS, pois esse rio está a mais de135 léguas a sul do Cabo Verde.
Da mesma maneira que para Nuno Tristão, DIAS DINIS (1) deu crédito à distância de ZURARA, pretendendo porém quei sso não significava fazer chegar Álvaro Fernandes às proximidades da Serra Leoa, pois que poderia, sem haver erro no cronista, ter estado 65 léguas ao norte dessa serra. Não reparou porém que tal afirmação vinha a colocar o términus da viagem por alturas do Rio Grande (12 léguas da Serra Leoa ao Rio Tabite - mais 32 do Tabite ao Nuno - mais 23 do Nuno ao Grande, somam 67 léguas). Isto é, sem dar por isso, tornou iguais as110 léguas de Álvaro Fernandes e as 60 de Nuno Tristão; implicitamente vem assim a admitir um considerável erro para mais em ZURARA. ·Posteriormente, BAPTISTA DE LIMA (m), OLlVEIRA BOLÉO (n) e DUARTE LEITE (o) inclinaram-se também para o limite norte da Guiné Portuguesa. E esta continua também a ser a nossa opinião (enseada de Varela).
VIAGEM DE ALV ARO FERNANDES
Antes de investigar qual o seu términus transcrevem-se os textos de ZURARA e BARROS nas partes que interessam. DIOGO GOMES não faz qualquer referência a esta viagem; outros cronistas que a citam limitam-se a sumariar os dizeres de BARROS, pelo que não vale a pena encher espaço com textos que nada adiantam.
ZURARA, CAP. LXXXVII (65)

Como Alvaro Frrã tornou outra vez na terra dos Negros e das cousas que fez
«...O navyo abitalhado, fezerom vyagem direitamente ao Cabo Verde, onde o outro anno tomarom os dous Guineus de que ja fallamos em outro lugar, e dally passarorn ao Cabo dos Matos, e fezerom ally pouso por lançarem algüa gentef ora. E oomente por veerem a terra juntaronse sete, os quaes postos na praya, acharom rastro de homees, que hyam per huü caminho, e seguindo em pos eles,chegarom a huü poço, onde acharom cabras, as quaes pare que ally leixarom os Guineus, e esto segundo penso que serya porque sentiryam que hyam despos elles. Ataa ally chegarom os xpaãos, porque nom teverom ousyo de seguyr mais avante; e seendo tornados a sua caravella, acrescentarom mais em sua viagem, e lançando seu batel fora, achaarom em terra esterco dallifante de tamanha grossura, segundo juizo daquelles que o viram, oomo podya seer huú homem; e por lhe nom parecer lugar pera fazer presa, tomaronse outra vez a sua caravella. E hindo assy per a costa do mar, nom passarom muytos dyas sairom outra vez em terra, na qual encontrarom hüa aldea, onde sairom os moradores della come homeës que mostravom que queryam defender suas casas, antre os quaaes vinha huü bem adargado com hüa azagaia em sua maão, o qual veendo Alvaro Frrã, parecendolhe principal daquelles, foe rijamente a elle, e deulhe com sua lança tam grande ferida que deu comi elle morto em terra, e tomoulhe a darga e o azagaya, aqual trouve ao Iffante oom outras cousas, como ao dyante sera contado. Os Guineus veendo aqulle morto, sobresseverom de sua peleja, nem os nossos nom viram tempo nem lugar pera os tirarem daquelle temor, ante se tornarom a seu navyo, e no outro dya forom a terra, alguü tanto dally mais afastados, onde viram andar certas molheres daquellas Guinees, as quaes parece que andavam acerca de huü esteiro apanhando marisco, e tomarom hüa dellas, que serya de idade ataa xxx anos, com huü seu filho que serya de dous, e assy húa moça de xiii, naqual avya assai boa apostura de membros, e ainda presença razooda segundo Guinee; mas a força ·da molher era assaz pera maravilhar, cada tres que se ajuntarom a ella, nom avya hi alguü que nom tevesse assaz trabalho querendoa levar ao batel, os quaaes veendo a deteença que faziam, na qual poderya seer que sobrechegaryam alguús daquelles moradores da terra, ouve huü delles acordo de lhe tomar o filho e levallo ao batel, cujo amor forçou a madre de se ir apos elle sem muyta prema dos dous que a levavam. Dally seguirom mais .avante alguü spaço, ataa que acharom huú ryo, no qual fezerom entrada com o batel, e em hüas casas que allly acharom filharom hüa mulher, e despois que ateverom na  caravella, tornaram outra vez ao ryo, com entençom de sobirem mais avante pera trabalharem de fazer algüa boa presa. E indo assy seguindo suà viágem, vierom sobre elles quattro ou cinquo barcos de Guineus, corregidos come homëes que queryam defender a sua terra, cuja peleja o do batel nom quiserom sperimentar veendo a grande avantagem que os contrairos tinham, temendo sobretodo o grande perigo que havya na peçonha com que tiravam. E começarom de se recolher o rnilhor que poderom pera seu navyo; mas veendo como huü daquelles barcos se adyantava muyto, voltarom sobre elle, o qual tornando pera os outros, querendo os nossos chegar a elle ante que se recolhesse, porque parece que era ja afastado boa parte de companhia, chegousse o barel tanto que huú daquelles Guineus fez huü tiro contra elle, e acertousse de dar com a frecha  a Alvaro Frrã per a perna: mas porque elle era ja avisado de sua peçonha, tirou aquella frecha muyto asinha, e fez lavar a chaga com ourina e azeite. Desyhuntou há muyto bem com teriaga, e prouve a Deos que lhe aproveitou como quer que sua saude passasse per gram trabalho, ca certos dyas esteve em passo de morte. Os outros da caravella, ainda que seu capitam assy vissem ferido, nom leixarom porem de seguir avante per aquella costa, ataa que chegarom a hüa ponta darea, que se fazia em dereito de húa grande enseada, onde puserom seu batel fora, e forom dentro pera veer a terra que acharyam; e seendo a vista da praya, viram viir contra elles bem Cxx Guineus, huüs com dargas e azagayas,outros com arcos; e tanto que forom acerca da augua, começarom de tanger e bailar, come homeés afastados de toda tristeza; e os do batel querendo scusar o convite daquela festa, tornaronse pera seu navyo. E era esto a allem do Cabo Verde Cx legoas, e toda sua rota he geeralmente ao sul. E esta caravell afoe mais longe este anno que todallas outras, pello qual lhe foe dado de grado duzentas dobras, scilicet, cento que lhe mandou dar o iffante dom Pedro, que entam era regente, e outras cento que ouverom do ifante dom Henrique. E ainda se nom fora a infirmidade d’Alvaro Fernandez, daqual foe muy apressado, a caravellas eguira mais avante; porem foilhe mecessaryo de se tornar daquelle postumeiro lugar que ja disse, viindose dereitamente aa ilha dErgym, e dally ao cabo do Resgate, onde acharom aquelle Ahude Meimom, de que jafallamos per vezes em esta storya. E como quer que nom trouxessem turgimam, porem assy per seus acenos, ouverom hüa Negra, que lhe os Mouros derom por alguüs panos que trazyam; e se tam pouco nom fora, muyto mais poderom aver, segundo o desejo que os Mouros mostravom. E dally fezerom sua vyagem pera o regno, onde ouverom as dobras que ja disse, e mais outras rnercees do Iffante seu snõr, que com sua viinda foe muy allegre pella avantagem que fezerom em sua ida.»
BARROS, DECADA l, LIVRO l, CAP. XlV (66)
(66) Segunda edição de 1945.
«…E de quam desestrado aquècimento foi êste de Nuno Tristão, tarn próspero aconteceu a Alvaro Fernandes, sobrinho de João Gonçalves, capitão da Ilha da Madeira. O qual neste mesmo ano tornou outa vez a Guiné, passando desta viagem mais de cem léguas além de Cabo Verde. E a «primeira cousa que fêz, foi dar em üa aldea, o senhor da qual matou per suas próprias mãos, por êle, como homem animoso, vir ante os seus cometer os nossos, cuja morte assi os espantou, que tomaram por salvação os pés. Os quais, como eram ligeiros e despejados de roupa, não houve algum dos nossos que se atrevesse aos alcançar, nem menos se  quiseram meter no mato, onde se embrenharam; e tornando-se ao navio, tomaram duas negras que andavam mariscando.
Alvaro Fernandes, como se queria vantajar dos outros descobridores, passou mais avante, té chegar à bôca de um rio a que ora chamam TABITE, que será além do Rio do Nuno trinta e duas léguas, onde o logo cinco almadias vieram receber. E porque o caso de Nuno Tristão os fazia temer estas entradas dos rios, não se quis meter em lugar estreito, e oontudo não se pôde livrar de perigo, porque üa das almadlas, confiada em sua ligeireza, tanto se chegou ao batel, té que fizeram seu emprego de setas em a própria pessoa de Alvaro Fernandes.
O qual, como ja de cá ia provido pera esta erva de que os negros ali usavam, a poder de triaga e de outras mèsinhas escapou da morte, e assi maltratado, como era homem de ánimo, passou mais avante té úa ponta de área onde quisera sair, vindo a terra escampada e descoberta pera isso, mas obras de cento vinte negros que Ihe saíram ao encontro lha defenderam com muita frèchada, tóda com erva.
E porque o Infante encomendava muito aos capitães que não rompessem guerra com os moradores da terra que descobrissem, senão mui forçados, e isto depois de lhe fazer suas amoestaçõcs e requerimentos da fé, paz e amizade, vendo Alvares Fernandes que a sua saída, segundo se os negros dispunham e davam pouco pelos sinais de paz, não podia ser sem custar a vida de algum dos nossos, não os quiz aventurar à peçonha de que êle já tinha experiência, e contestou-se com ter descoberto mais terra que quantos capitães té então tinham ido àquelas partes.
Com a qual determinação partiu para êste reyno, onde foi recebido do InfanteDon Hanrique com muita honra, e assi do Infante Dom Pedro, seu irmão, que então era regente, cada um dos quais lhe fêz mercê de cem cruzados...»
É fácil concluir que para a descrição dos sucessos da viagem não teve BARROS outra fonte além de ZURARA. Tudo que ele diz não passa de um sumário deste, apenas com uma ligeira variante: a de que os últimos negros que os navegadores viram lhes impediram a saida em terra disparando frechas ervadas, facto que ZURARA não refere, pois se limita a dizer que os indigenas estavam armados. O que BARROS escreve não deve ser derivado de nova fonte, e é certamente uma ilacção.
Diz, porém, BARROS que o rio onde Álvaro Fernandes foi ferido era o Tabite, que localiza a 32 léguas além do rio Nuno. O valor deste argumento e a sua origem serão analisados adiante. Antes de mais nada vejamos sumàriamente qual o âmbito que os investigadores têm atribuído à viagem de Álvaro Fernandes.
Em 1841, SANTAREM dizia que o rio em questão era o rio de Lago das cartas antigas (que na análise da viagem de Nuno Tristão se viu ser o actual Jurnbas) e que a enseada onde iniciaram o torna-viagem ficava já para além da Serra Leoa e era limitada ao sul pelo Cabo de Santa Ana (67).
Ern 1844 LOPES DE LIMA dizia que o rio talvez fosse o de Cacé (já na actualcolónia da Serra Leoa) e que a enseada era a Furna de Santa Ana, 6 léguas a sul da serra (68).
ARMANDO CORTESÃO (1931), guiando-se por BARROS, faz chegar o navegador perto da Serra Leoa. Estranha, com razão, que SANTAREM ídentífique o Rio Tabite com o de Lagos (69).
JOÃO BARRETO, em 1938, identificou o Rio Tabite de BARROS, como Caabite de DUARTE PACHECO, 11 léguas ao sul das ilhas dos Ídolos,  afirmando parecer lícito concluir-se que Álvaro Fernandes chegou a esse local, já na proximidade da Serra Leoa (70).
Em 1941, DUARTE LEITE, que traçou novas bases para o estudo das viagens à Guiné, contestou com fortes argumentos o âmbito tradicionalmente atribuido à viagem de Álvaro Fernandes, reduzindo o seu términus a pouco mais de 60 léguas além do Cabo Verde 71).
Tal opinião também seguiu DAMIÃO PERES, que, baseado nos mesmos argumentos, afirmou que o navegador, quando muito, atingiria o principio da actual Guiné Portuguesa (72).
Do mesmo modo se pronunciou MAGALHÃES GODINHO, que apresentou a hipótese de a enseada final ser a que se estende para o sul do Cabo Roxo (ª).
As indicações que de ZURARA se extraem e que podem ter alguma utilidade para o apuramento do términus da viagem são as seguintes:
1 - Depois do desembarque no Cabo dos Mastros a caravela avançou para o sul por espaço e tempo não indicados até um local, impossível de identificar, onde de novo desceram os mareantes em terra, encontrando aí excremento de elefante.
2 - Daí a caravela retomou a navegação, e «não passados muitos dias» efectuou-se novo desembarque, perto de uma aldeia, sendo morto um indígena.
3 - No outro dia, e mais adiante já, mais uma vez desceram em terra, num local onde algumas mulheres apanhavam marisco num esteiro.
4 - Novamente reencetada a navegação para sul, após percorrido «algum espaço» - o que indica não ser grande - chegaram a um rio.
5 - Subiram o rio num batel, sendo perseguidos a certa altura por embarcaçóes indígenas. Na retirada Álvaro Femandes foi atingido numa perna por uma frecha, que o cronista diz ser envenenada. O navegador retirou-a prontamente e desinfectou o ferimento, o que não obstou a que estivesse alguns dias «em passo de morte».
6 - A caravela prosseguiu para além do rio por espaço e tempo não indicados, até chegar a «uma ponta de areia, que se fazia em direito de uma grande enseada».
7 - Na praia avistaram indígenas armados de «dargas, zagaias e arcos», que se entregaram a manifestações de alegria, tocando e bailando.
8 - A enseada fica a 110 léguas ao sul do Cabo Verde.
9 - A rota até ela «é toda geralmente ao sul».
10 - A caravela de Álvaro Fernandes foi naquele ano mais avante que todas as outras, pelo que o navegador foi recompensado.
(67) ZURARA, B 3, pgs. 408 e 410, notas.
(68) LOPES DE LIMA, B 30. Vol. I, Parte II, pág. 83.
(69) CORTESÃO (Armando), B 16, págs. 21-2.
(70) BARRETO, B 6, págs. 37-38.
(71) LEITE, B 29, págs. 167-8.
(72) PERES, B 36, pâg. 101.
(73) MAGALHÃES GODINHO, B 32, págs, 249-50.
a) Rio Tabite
Antes de prosseguir torna-se indispensável fazer a identificação do Rio Tabite de que fala BARROS.
As mais antigas referências a esse rio vêm em DUARTE PACHECO (c. 1505) e VALENTIM FERNANDES (c. 1507).
É de notar que na descrição da costa do Rio de Buba à Serra Leoa há entre os dois grandes divergências, principalmente no que respeita à localização de rios que ambos designam pelo mesmo nome. No entanto nalguns pontos há acordo, o que já permite averiguar alguma coisa.
DUARTE PACHECO refere quatro rios entre o Cabo de Sagres e a Serra Leoa: Cristal, Caabite, Tamarae Case (74).
Na compilação de VALENTIM FERNANDES o Cabite não vem no «Livro de Rotear» final, mas sim na descrição inicial que começa em Ceuta e chega à Serra Leoa. Dessa descrição a parte até Arguim tem noções extraídas de ZURARA e de outras fontes desconhecidas; o relato de Arguim e do seu interior foi ouvido de JOÃO RODRlGUES; o que se refere aos reinos negros, para o Sul do Senegal, parece já ser de origem diferente, com uma pequena parte tirada de CADMOSTO; o fecho,relativo à Serra Leoa, deduz-se provir de ÁLVARO VELHO.
Ê talvez já na parte deste que surge a referência ao Rio de Cabitos,que se depreende ficar perto do Cabo de Sagres (75). Quer do «Livro de Rotear», quer do «Esmeraldo» com segurança se deduz que o Rio de Case é o actual Skarcies das cartas inglesas (76).
A mais antiga carta onde conseguimos encontrar o nome do rio que tentámos localizar é uma devido a Luís Teixeira, de c. 1600; nela,a seguir ao Cabo de Sagres, vem a palavra Tabite. Depois disso volta-se a encontrar a mesma designação, igualmente após Cabo de Sagres, no Atlas dito da «Duqueza de Berry» (1630?) e numa carta de João Teixeira Albernaz de 1667.
É fácil portanto concluir que o Rio Cabite ou Tabiteé um dos que fica entre o Cabo de Sagres e o Rio Case. Nas cartas actuais os rios da região são oManca, o Merebaia, o Forikaria e o Mellakori ou Mellacorée Os dois primeiros são bastante pequenos, enquanto que os dois últimos têm uma barra bastante ampla (de cerca de 5 milhas). DUARTE PACHECO diz do Cabite que tem «urna boca larga», o que não aplica ao de Cristal nem ao de Tomara. De onde se infere finalmente que o Rio de Cabite ou de Tabite é o Forikaria ou o Mellakori, mais provavelmente o prirneiro, porquanto o roteirista coloca entre o Cabite e o Case o Rio de Tamara, que deverá portanto ser o Mellakori.
Os rios Forikaria e Mellakori são contíguos, pois as suas águas convergem junto das barras, apenas separadas por uma estreita faixa de terra. BARROS diz que o Rio Tabite fica 32 léguas além do Nuno. Medidaessa distância na carta ela vem a dar exactamente a meio do estuário comum dos dois rios acima indicados, o que comprova a identificaçãojá deduzida (77).
(74) PACHECO PEREIRA, B 34, Livro 1, Cap. 32.
(75) VALENTIM FERNANDES, B 45, págs. 88 e 218.
(76) O «Livro de Rotear» refere a caracteristica ilha na sua foz, e indica ser o rio imediatamente ao norte do que corre junto do Cabo Lelo (Rio de Maypula), bordejando a Serra Leôa. O mesmo se conclui do «Esmeraldo», que no entanto denomina este último rio de Rio de Birtombo.
(77) CASTILHO, B 15, I, pág. 190, idmlifica, erradamente, a nosso ver, o Tabite com o Componi.
b) Distância além do Cabo Verde
As referências de ZURARA aos desembarques de Alvaro Fernandes após o Cabo dos Mastros não fornecem qualquer indicação que permita averiguar o espaço e o tempo entre eles, o que impossibilita a sua localização.
Já a propósito da viagem de Nuno Tristão se viu que o cronista exagera sempre as distâncias, com erros em excesso de 23 % a 55%. No caso de  Nuno Tristão, admitindo, como parece mais lógico, que o términus atingido foi o Rio Jumbas, o erro seria de 60%; pois ZURARA disse ser de 60 léguas uma distância que na realidade não vai além de 24.
Aplicando estas conclusões à viagem de Álvaro Fernandes, obtem-se:
1) - Para umerro nulo - as 110 léguas vêma findar no Cabo daVerga.
2) - Para um erro de 23% - as 110 léguas reduzem-se a 85, o que localisa o extremo atingido por alturas da parte sul do arquipélago dos Bijagós (em linha recta e passando por cima do arquipélago terminariam no rio Cacine).
3) - Para um erro de 55 % - as 110 léguas reduzem-se a 50, o que localiza o extremo atingido na Ponta Varela.
4) - Para um erro de 60% - as 100 léguas reduzem-se a 44, o que localiza o extremo atingido no Rio Casamansa.
Seguindo o mesmo raciocínio que foi aplicado no caso de NunoTristão, a exclusão dos erros de 0% e 23% é imediata. Nessas hipóteses, na realidade, o banco e arquipélago de Bijagós teria sido avistado e passado, pelo menos em parte, e o cronista não faz a mais pequena referênciaao facto, o que o torna fortemente inverosímil, pois não deixaria de haver desembarques nas ilhas, exploração dos canais, constatação daexistência de um grande rio, o Geba, contactos com indígenas, etc. (LEITE, pág. 167).
Já se viu também como era difícil e perigosa a navegação em toda esta zona, o que torna muito improvável o ter-se passado, na mesma via em que foi descoberto, o arquipélago dos Bijagós.
Por esta mesma ordem de ideias difícil também se torna aceitar que o navegador tivesse chegado ao Rio Forikaria (Tabite). Acresce ainda que este rio fica a cêrca de 135 léguas ao sul do Cabo Verde. Estranho seria que o cronista, que sempre exagera, neste caso ficasse aquém da distância real, errando, por defeito, em mais de 20%.
Aceitar que Álvaro Fernandes chegou ao Rio Tabite vem a significar ainda que nos 12 anos de 1434-1446 se descobriram cerca de 375 léguas de costa, e que nos 14 seguintes apenas... 12, que tantas são as que vão do Rio Forikaria à Serra Leôa, términus das viagens henriquinas. Creio ser bastante absurda semelhante conclusão - do que se deduz haver erro nas premissas. Que a Serra Leôa foi o limite das viagens até 1460 parece ser já hoje facto suficiente aprovado por DUARTE LEITE, apesar das afirmações de JAIME CORTESÃO. (78) A premissa errada é portanto a que estabelece o limite da viagem de Álvaro Fernandes no Rio Forikaria ou Tabite.
Do que se conclue finalmente que esse limite tem de se procurar muito mais para o norte, antes do Geba e dos Bijagós, e que SANTARÉM, LOPES DE LIMA, ARMANDO CORTESÃO e  JOÃO BARRETO erraram grandemente, arrastados por BARROS.
Não é difícil imaginar como nasceu a ideia do Rio Tabite neste cronista: convencido de que o términus de Nuno Tristão havia sido o Geba e como ZURARA referira 60 léguas para ele, mediu para além desse rio umas 50 léguas para prefazer as 110 que ZURARA indicava para aviagem de Álvaro Frmaudes - e veio assim a encontrar o primeiro rio que as cartas mencionavarn para além do Cabo de Sagres, o Rio Tabite:
Do Cabo Verde ao t.énninus de A. Fernandes.. 110 léguas
Do Cabo Verde ao términus de N. Tristão  (que seria o Gêba)...60 léguas
Do Rio Nuno ao Rio Tabite (BARROS)..32 léguas
192léguas
-92léguas
18 léguas
Restariam assim 18 léguas para a distância do Gêba ao Nuno, no que não há grande erro, pois ela é de 23 léguas.
(78) LEITE, B 29, págs. 243-269.
c) A recompensa
ZURARA indica que, no regresso ao reino, Álvaro Fernandes recebeu200 dobras dos infantes D. Pedlro e D. Henrique por nesse ano terido mais além que todos os outros navegadores. Este facto comprovaque Álvaro Fernandes ultrapassou o local onde morreu Nuno Tristão.Não parece deslocado supor que aquele percorreu, para além doCabo Verde, uma distância aproximadamente dupla da deste.
A flecha ervada
Pode-se tirar do ataque que Álvaro Fernandes sofreu dos indígenas alguma indicação de carácter etnográfico que ajude a identificar o local? Não é de crer.
Só Álvaro Fernandes foi atingido por uma flecha, mas não morreu, apesar de o cronista dizer que ela era envenenada. Surge agora a dúvida: se a morte não sobreveio, foi em virtude do tratamento (e a eficácia do remédio aplicado é bastante discutível...) ou resultou do facto de não haver veneno na flecha? Embora ZURARA aiirme que o havia, e que Álvaro Fernandes esteve à beira da morte, poderá isso ser prova suficiente? Não resultará da suposição, então geral, de que todos os indígenas ao sul do Cabo Verde aplicavam veneno nas armas? No caso de Nuno Tristão não pode haver dúvidas: de cerca de vinte e dois feridos só dois escaparam. Uma hecatombe tal explica-se pelo veneno. Com Álvaro Fernandes já assim não sucede, e creio que nada se pode concluir de seguro.
Últimos indígenas vistos
Na enseada final um batel chegou-se a terra, e, já perto, dele viram que à praia acorria um grupo de indígenas armados de «dargas, azagaiase arcos», que se entregaram a manifestações de alegria «tangendo e bailando».
A indicação das armas nada permite concluir quanto ao grupo tribal dos indlgenas em questão. Os tangeres e bailados parecem contudo revelar que eles não haviam ainda visto portugues. O seu proceder contrasta com o dos que atacaram Nuno Tristão (mandingas, como se viu), e não é ousado supor tratar-se de um outro agrupamento étnico. E como já se viu que Álvaro Fernandes não deve ter atingido o Geba, lógico é concluir-se serem tais indígenas os que habitavam na zona costeira que vai do Combo (pouco ao sul do Gâmbia) até ao rio Cacheu, e que se seguiam, para o meio dia, aos mandingas - os Felupes.
Conclusões
Já se viu que Álvaro Fernandts não deve ter chegado ao Geba nem deve ter avistado os Bijagós.
Em face das 110 léguas indicadas por ZURARA e da recompensa que recebeu inferiu-se que foi mais além que Nuno Tristão, e que percorreu, a partir do Cabo Verde, uma distância aproximadamente dupla.
Como Nuno Tristão ficou muito provàvelmente pelo Rio Jumbas (a 24 léguas do Cabo Verde - erro de 60%), aquela consideração vem a colocar por alturas do Cabo Roxo (a 48 léguas do Cabo Verde – erro de 56 %) o términus de Álvaro Fernandes.
E esta simples constatação está de acordo com tudo o mais. O rio onde o navegador foi atacado seria o Rio Casamansa, e a enseada final a extensa aba arenosa de Varela, que se alonga desde o Cabo Rôxo à foz do Cacheu. Desta maneira já o cronista podia escrever que a rota até à enseada «é toda geralmente ao sul», pois o Cabo Roxo marca exactamente o ponto onde a costa inftecte para sueste (facto já registado por MAGALHÃES GODINHO, II, 250).
Aceitar que o rio foi o Cacheu parece menos provável, pois já set eria percorrido um razoável espaço ao rumo sueste, e após tal rio e antes de Geba não há enseada alguma notável que se possa contrapor à característica de Varela.
Recuando para norte do Casamansa cair-se-ia no Gâmbia - o que não parece também indicado, por muito próximo do términus de NunoTristão.
Quanto aos indígenas, na zona do Casamansa e de Verela habitavam os Felupes – que já vimos não usarem flechas ervadas (o que explicariaa razão porque não morreu Alvaro Fernaudes). Era lógico atacarem, visto que lhes haviam capturado uma mulher. Natural era a sua reacção em Varela - pois antes não haviam visto caravelas nem brancos a persegui-los.
Em resumo: Álvaro Fernandes, no ano de1446, atingiu muito provàvelmcnteo limite norte da actual Guiné Portuguesa, depois de ter descoberto o rio Casamansa.
Depois do encontro de Nuno Tristão com os mandingas era o segundo agrupamento tribual com assento no presente território português que se descobria.
EXPEDIÇÃO DE 8 CARAVELAS. ESTEVÃO AFONSO, FERNÃO VILARINHO, LOURENÇO DIAS, LOURENÇODE ELVAS, JOÃO BERNALDEZ (1446) (79)
Comecemos mais uma vez por transcrever os textos de ZURARA e BARROS. DIOGO GOMES não refere esta expedição.
ZURARA, CAP. 1.XXXYIII (80)
Como as nove caravellas partirom de Lagos, e dos Mouros que filharom.
«Como quer que as novas da morte deNuno Tristão pozessem grande receoa muytas gentes do nosso regno de quererem prosseguyr a guerra que tiinhamcomeçada, ca dezyam huús contra os outros que era muy dovidosa cousa cometer pelleja com homeës que tam claramente trazyam amorte consigo; porem nomfalleceo hi quem com boa voontade filhasse a empresaca posto que o perigoo fosse tam manifesto pera todo abastavamos coraçooës daquelles que desejavam cobrar nome de boõs, e specialmente se moviam a ello pollo conhecimento que avyam da voontade do Iffante, veendo os grandes acrecentamentos que fazya aaquelles que se em ello trabalhavam, ca segundo Vegecio, ally sam os homeẽs fortes onde a foortalleza he gallardoada. E porem se moverom em este anno certo scapitaaés, com nove caravellas, pera irem em aquella terra dos Negros, dos quaes o primeiro foi Gil Eannes, cavalleiro morador na villa de Lagos: e o segundo huu nobre scudeiro, criado na camara do Iffante de moço pequeno, o qual com huú mancebo muy ardido, e nom menos acompanhado doutras muytas vertudes, cujos feitos achareis mais compridamente na cronica do regno, specialmente onde se falla das grandes cousas que se fezerom em Cepta; e este avya nome Fernam Vallarinho. O terceiro era aquelle Stevam Affonso, de que ja fallamos em  outros lugares desta nossa storya, o qual levava sob sua capitania três caravellas. Ally era Lourenço Diaz, de que ja fallamos antes desto, e assi Lourenço Delvas, e Joham Bernaldez pilloto, que levavam cada huú sua caravella. E era ainda em esta companhya húa caravella do Bispo do Algarve, de que era capitam huú seu scudeiro. As quaes per ordenança do Iffante se forom aa Ilha da Madeira pera receberem ally suas bitalhas. E da dicta ilha partirom com estas caravellas que de ca forom, dous navyos, scilicet, huú de Tristam; huü daquelles capitaaés que ally moravom, de que elle mesmo levava capitanya, e outro em que era Garcia Homem, genro de Joham Glli Zarco, que era outro capitam…
E depois de seu grande trabalho que acerca dello ouverom, visto como nom podyam fazer presa, tornaronse as duas caravellas da ilha, e tambem Gil Eannes, aquelle cavalleiro de Lagos; e os outros forom sua vyagem atee chegarem a allem do Cabo Verde Lx. legoas, onde acharom huü ryo que era assaz de boa larrgueza, no qual entrarom com suas caravellas: mas nom fez aquella entrada muy proveitosa peraa caravelfa do Bispo, porquanto se acertou de topar em huü banco de area, de que abryo da tal guisa, que o nom poderom dally mais tirar; pero scaparom as gentes com todallas outras cousas que lhes della prouve tirar.Mas enquanto alguús em esto ocupavam, Stevam Affonso, e seu irmaaõ, forom em terra, cujos moradores eram em outra parle, e com entençom de os ir buscar partiram dally, guyando-se per alguú sentido que avyam do rastro que achavam acerca do lugar. E seguindo assy per seu caminho algüa peça, disserom que achavam terra com grandes sementeiras, e muytas arvores dalgodom, e muytas herdades sementadas darroz, e assy outras arvores de desvairadas maneiras. E diz que toda aquella terra lhe parecia a maneira de pauues. E parece que se adyantara Diegaffonso ante os outros, e com elle XV, daquelles que mais traziam o desejo prestes de chegar a algum feito, entre os quaes era hun moço da camara do Iffante, que se chamava Joham Vílles, que entre aquelles hia por scrivam. E entrando aissy per huu arvoredo de grande spessura, sairom a elles de revesos Guineus com suas azgayas e arcos, chegandosse a elles quanto mais podyam. E assy quis a ventura que de sete que forom feridos, os cinquo ficarom logo ally mortos, dos quaes os dous eram Portugueses, e os tres strangeiros. E estando assy o feito em este ponto, chegou Stevam Affonso com os outros que viinham detras, o qual veendo o periigoso lugar em que eram, recolheos todos o milhor que pode, no qual recolhimento ouverom assaz traballho, ca os Guineus eram muytos, e com armas tam empeecivees como veedes que eram aquellas que em tam breve matavam os homeës com ellas; onde receberom avantagem de louvor quatro mancebos, que forom criados na camara do lffante, dos quaes o princiçal era aquelle Diego Gllz, nobre scudeiro, de cuja vertude ja em outras partes leixamos fallado. Era o outro huu Henrique Lourenço, tambem mancebo desejoso de fazer por sua honra. Huú dos oulros dous avya nome Affonsennes, e outro Fernandeannes. E tanto que forom em suas caravellas teverom seu conselho, no qual acordarom dese tornar, visto como ja eram descubertos, e mais que tiinham seus navyos empachados com as guarniçooes que tirarom da caravella do Bispo. Mas que elles esto assy dissessem, eu me tenho mais que a principal causa de sua partida foio temor dos imiigos, cuja periigosa pelleja era muyto de recear a qualquer homem entendido, porque nom se pode chamar verdadeira fortelleza,s em outra mayor necessidade que elles  tiinham, quererem tomar contenda com quem sabyam que lhes tanto dano podya fazer...»
BARROS, DÉCADA I, LIVRO I, CAP. XIV (81)
«…Estas mercês e honras animavam mais aos homens a seguir êste descobrimento do que os metia em temor o caso de Nuno Tristão, de maneira que neste mesmo ano se armaram dez caravelas de que êstes eram os capitães: Gil Eanes cavaleiro morador em Lagos, Fernão Valarinho, homem mui experimentado nas cousas da guerra, principalmente em Ceita, onde êle fêz honrados feitos. Estêvão Afonso, Lourenço Diase João Bernaldes, pilôto, todos homens mui honrados, e os mais deles criados do Infante, com os quais ia tambem úa caravela do Bispo doAlgarve e outras três dos moradores de Lagos.
Os quais, juntos com üa conserva per mandado do Infante, passaram pela Ilha da Madeira pera tomar algum mantimmto e também porque com eles se haviam de ajuntar duas caravelas mais: üa de Tristão Vaz, capitão de Machico, e outra de Garcia Homem, genro de João Gonçalves, capitão do Funchal. E de aqui da ilha foram todos Gomeira, a levar os canários que atrás dissemos que João de Castilha e os outros capitães saltearam, os quais iam em os navios de Lagos per mandado do Infante, mui contentes e satisfeitos das mercês e dádivas que lhe deu.
Com ajuda dos quais quiseram os nossos fazer üa entrada na Ilha da Palma e por serem sentidos não lhe sucedeu a saída como cuidaram, que foi causa de os capitães das caravelas da Ilha da Madeira de tomarem dali, porque parecerem sòmente vindos a êste feito da Ilha da Palma; e os outros fizeram sua derrota, caminho do Cabo Verde.
Na qual parte, por razão da terra ser mui apaülada e chea de arvoredo, no modo de peleja ajudavam-se dos negros tam mal que sempre recebiam mais dano dêles do que lhe faziam, como lhe aconteceu esta vez perdendo cinco homens que morreram às frechadas por causa da erva de que usavam, e assi perderam em um banco de area a caravela do Bispo do Algarve…»
(79) De Lisboa partiram 9 caravelas, a que se juntaram 2 na Madeira. Porém a carevella de Gil Eanes e a da Madeira não prosseguiram álém das Canárias, motivo por que referimos apenas 8 navios, os que na realidade foram à Guiné.
(80) Segundo a edição de 1841.
(81) Segundo a edição de 1943.
É fácil ver que BARROS se limita a resumir os dizeres de ZURARA.
Sumàriamente, as indicações que deste se tiram, e que podem ter utilidade para a ídentificação do términus da viagem, são as seguintes:
1 - Passaram 60 léguas para além do Cabo Verde.
2 – Aí encontraram um rio, de «assaz boa largueza», no qual entraram as caravelas.
3 - A caravela do Bispo do Algarve encalhou num banco de areia,sendo abandonada.
4 - A terra tinha grandes sementeiras, muitas árvores de algodão, arroz em profusão e bastante arvoredo. A abundância de água dava-lhe aspecto pantanoso.
5 - Parece que os indígenas utilisavam flechas envenenadas. O cronista assim o afirma, acrescentando mesmo que foi o receio destas a principal causa de os navios não prosseguirem mais para o sul. De setef eridos morreram logo cinco.
Como com as outras viagens principiemos por ver qual o âmbito que os investigadores têm atribuido a esta.
SANTARÉM diz que «é indubitàvelmente o Rio Grande [actual estuário do Geba] onde eles chegaram». (82)
Em 1931 ARMANDO CORTESÃO disse também que as caravelas entraram no Geba, salientando ser então a primeirn vez que os portugueses «pisaram o solo da actual Guiné Portuguesa». Referindo-se à âncora que o Nomimansa deu a Diogo Gomes observou que ela não devia pertencer à caravela de Nuno Tristão, mas a outra, possivelmente a do Bispo do Algarve. (83)
Em 1938 JOÃO BARRETO situa términus da viagem entre o Gâmbia e o Geba, notando que a referência às sementeiras de arroz coloca o acontecimentopor alturas do mês de Agosto. (84)
Em 1941 DUARTE LElTE chama a aienção para o facto de ZURARA dar a mesma distância para as viagens de Nuno Tristão e Estevão Afonso (60 léguas além do Cabo Verde), mas dizer só na segunda que o rio tinha uma embocadura larga, não referindo também a morte de Tristão, como seria lógico, se ela se tivesse dado no mesmo local. Conclui assim que se trata de dois rios diíerenles e que ZuRARA errou ao dizer que ambas as expedições chegaram a 60 léguas para além do Cabo Verde. (85)
Finalmente, em 1945, MAGALHÃES GODINHO, baseando-se nas 60 léguas e nalgumas informações de carácter local extraídas de CADAMOSTO e VALENTIM FERNANDES, inclina-se para ver no rio em questão o Casamansa. (86)
(82) ZURARA, B 3, pág. 414, nota.
(83) CORTESÃO (Armando), B 16, pags. 22-3 e 29.
(84) BARRETO, B 6, págs. 35-36.
(85) LEITE, B 29, pág. 166, nota.
(86) MAGALHÃES GODINHO, B 32, TI, pág. 254.
Passemos agora à análise dos vários elementos atrás indicados.
c) Distância além do Cabo Verde
Cabem aqui as considerações já atrás expostas sobre os erros de ZURARA e a pouca precisão do cálculo de distâncias nas primeiras viagens.
Resumindo:
1) Para um erro nulo - as 60 léguas viriam a terminar por alturas do Rio Cacheu (seguindo de perto os contornos da costa) ou do Geba (navegando pelo largo).
2) Para um erro de 23 % - as 60 léguas reduzem-se a 46, o que situa o términus entre o rio Casamansa e o Cabo Roxo.
3) Para um erro de 55 % - as 60 léguas reduzem-se a 27, o que faz terminar a viagem no Gâmbia.
4) Para um erro de 60 % - (análogo ao provável de Nuno Tristão) - as 60 léguas reduzem-se a 24, e o términus cairia no Rio Jumbas.
O cronista dá Nuno Tristão e Estevão Afonso como chegados aigual distância para além do Cabo Verde.
Mas, como com razão nota DUARTE LEITE (pág. 166, nota), é estranho que ZURARA só na segunda dessas viagens fale da notável largurado rio e não refira então, como seria lógico, o anterior insucesso de NunoTristão.
É-se assim levado a concluir que, apesar da identidade de distâncias,se trata de dois rios diferentes.
Este facto serviu a DUARTE LEITE para afirmar que o cronista errou ao referir a distância para a segunda viagem. Creio, porém, que o erro tem fácil explicação. De Sangomar Pt. ao Cabo de Santa Maria vão umas escassas sete léguas, e nesse espaço desembocam o Salum (rio dos Barbacins), o Jumbas (rio de Lago), o Banjala, o Jinnak e o Gâmbia. Ora ZURARA não leva geralmente a aproximação das distâncias que indica além das dezenas de léguas. Já se viu que Nuno Tristão chegou muito provàvelmente ao Jumbas. Estevão Afonso poderia ter estado noutro dos rios das imediações, e a diferença de distâncias seria, no máximo, de 4 léguas. Tal diferença, para o grau de aproximação normal de ZURARA, é perfeitamente desprezível, e por isso não é de estranhar que o cronista refira, nos dois casos, a mesma distância.
Julgo, portanto, licito concluir que Estevão Afonso chegou a um rio próximo daquele atingido por Nuno Tristão. A escolha deve assim fazer-se entre os que desembocam entre Sangomar Pt. e o Cabo de Santa Maria. O Banjala e Jinnak são demasiado insignificantes para poderem ser subidos pelas sete caravelas. O Salum também não parece merecera designação de «assaz largo». Restam o Jumbas e o Gâmbia. O primeiro foi aquele onde mais provàvelmcnte chegou Nuno Tristão; além disso a sua barra é bastante difícil e VALENTIM FERNANDES diz que só a passam os navios pequenos (87) (notar que no caso de Nuno Tristão a caravela ficou de fora do rio, e foram os batéis que o subiram). Parece portanto ser o Gâmbia o mais indicado.
(a) Natureza da região
Os informes que ZURARA dá são demasiado gerais para poderem servir para qualquer identificação. Sementeiras de arroz, árvores de algodãoe outras em abundância, «lalas» e «bolanhas» (os «paúes» do cronista) encontram-se, mais ou menos uniformemente, desde o Salum à Serra Leoa.
Não julgo por isso que tenha valor o argumento de MAGALHÃES GODINHO, que se baseia naquelas indicações, comparadas com a descrição de VALENTIM FERNANDES, para concluir pelo Casamansa.
87) VALENTIM FERNANDES, B 45, pág. 72.
b) Flechas envenenadas
O cronista diz que as flechas eram envenenadas, atribuindo mesmo ao facto a razão de os mareantes não terem prosseguido para sul. A larga percentagem de falecidos entre os feridos e a rapidez da morte («ficaram logo ali mortos») parece dar-lhe razão.
A ser assim, o Casamansa e o Cacheu apresentam-se como muito pouco prováveis. Na foz de ambos habitavam os Felupes - que já vimos não empregarem veneno nas armas. No Casamansa seguiam-se a eles,para o interior já, os Jabundos e os Banhuns, e no Cacheu os Banhunse Brames, de quem também não temos noticia de envenenarem as flechas.Não sabemos o espaço por que subiram o rio, mas deve ter sidobastante restricto, e não se afigura fácil gue ultrapassassem estes agrupamentos étnicos para virem a encontrar os Cassangas e Mandingas que,pelo menos os últimos, eram mestres na arte do veneno.
(c)A caravela encalhada
O encalhe da caravela do Bispodo Algarve serviu também de argumentoa MAGALHÃES GODINHO para se pronunciar pelo Casamansa, baseado nos característicos baixos da foz deste rio, referidos já por VALENTIM FERNANDES.
Mas a barra do Gâmbia, embora seja muito mais fácil, também tem bancos perigosos, de que já DUARTE PACHECO (I, 29.º) fala:
«o dito rio de Guambea, temh uma muito grande enseada, e hum muito grande palmar que dura grandes duas leguoas & mais & no peguo desta  ponta quasy em mar della huma leguoa estaa huma baixa de pedra que tambem tem area que se chama a baixa de Santa Maria em que nom ha mais de huma braça daugua sobre ella & he muy perigosa & já se aly perderam nauios».
O encalhe da caravela podia portanto ter-se dado também na barra do Gâmbia, o que diminui o valor do argumento de MAGALHÃES GODINHO.
Já atrás, na análise da viagem de Nuno Tristão, se viu que a âncora que o Nomimansa entregou a Diogo Gomes não devia pertencer à caravela do primeiro. Como já se disse também, ARMANDO CORTESÃO admite a hipótese de ela provir do navio do Bispo do Algarve.
Não parece forçado aceitar esta hipótese, tanto mais que Diogo Gomes refere que os indígenas levaram a caravela para dentro do rio e a destruiram. É por isso provável que a conseguissem desencalhar e, aproveitando a enchente, a fizessem subir o rio. E, desmantelada por eles ou pela acção do tempo - tanto mais que é natural não a ter deixado em boas condições o encalhe - uma âncora sua viria a ficar em poder do Niumimansa.
Evidentemente que este argumento não tem o valor de uma certeza - pois podia tratar-se de outro navio - mas nem por isso deixa de constituir apreciável indicio a juntar aos já apontados.
Conclusões
Em face do que ficou exposto parece lícito admitir que no ano de1446 uma expedição de 8 caravelas chegou à barra do Gâmbia. Aí se perderia um dos navios por encalhe. Estevão Afonso e alguns dos seus companheiros desembarcaram em terra, travando luta com os indígenas.
Pela segunda vez, e no mesmo ano, os portugueses estabeleciam contacto com os NiuminKas. Nos rios e em terra essas relações iniciais revestiam-se de carácter bélico.
O rio Gâmbia era assim descoberto e nas suas margens efectuava-se o primeiro desembaque. Daí a poucos anos um ousado navegador subi-lo-ia até aos primeiros rápidos, a 400 quilómetros da foz, estabelecendo relações pacificas com o povo que habitava as suas margens - o mandinga.
Desta maneira se estava conseguindo um dos objectivos que D. Henrique tão ardorosamente procurava - o ouro da Guiné e do Sudão. O Gâmbia revelar-se-ia a grande via fluvial de penetração que levaria ao importante mercado aurífero de Cantôrá, na órbita do Império Mandinga.
(a)1446- Estêvão Afonso
Viagem referida apenas por ZURARA (Cap. LXXXVIII) e BARROS (Déc. I, Liv. I, Cap. XIV).
Indicações principais:
ZURARA e BARROS
1 - Passaram 60 léguas para além do Cabo Verde.
2 - O términus foi num rio largo.
3 - Uma caravela encalhou à entrada do rio.
4 - Parece que os indígenas empregavam flechas envenenadas.
Principais interpretações dos historiadores e investigadores acerca do térmlnus:
a) 1841 - VISCONDE DE SANTARÉM (B 1) - Rio Grande.
b) 1868 - R. HENRY MAJOR (B 26) - Rio Grande.
c) 1896 - C. R. BEAZLEY e E. PRESTAGE (B 2) - Rio Grande.
d) 1931 - ARMANDO CORTEZÃo (B 12) - Rio Grande.
e) 1938 - JOÃO BARRETO (B 4) - Ponto entre o Gâmbia e o Geba.
f)  1941 - DUARTE LerTB (B 22) - Rio diferente do descoberto por Nuno Tristão.
g) 1945 - MAGALlHÃESGODINHO (B 25) - Rio Casamansa.
h) 1946 - A. TEIXEIRA DA MOTA (B 33) - Rio Gâmbia.
i)  1946 - A. J. DIAS DINIS (B 14) - Rio Grande.
j)  1946 - JOSÉ DE OLIVEIRA BOLÉO (B 28) - R. de S. Pedro ou R. das Ostras.
A identicidade do número de léguas percorridas para além do Cabo Verrde em relação à viagem de Nuno Tristão levou naturalmente a ooncluir que foi atingido nos dois casos o mesmo rio.
DUARTE LEITE (f) fez porém notar que o cronista só agora diz tratar-se de um rio largo, e não refere a tragédia de Nuno Tristão como ocorrida nele. Objectou portanto que deve haver engano no facto de ZURARA indicar nos dois casos a mesma distância, e que se trata de dois rios diferentes.
MAGALHÃES GODINHO (g), baseado em certos elementos de carácter local, pronuncia-se pelo Casamansa. No nosso traballlo (h), admitindo tratar-se de dois rios diferentes, explicámos de maneira simples o chamado erro de ZURARA: sendo dois rios próxirnos, e no caso de Nuno Tristão um dos braços do Salumn-Jumbas, o de Estêvão Afonso poderia ser uma das imediações, o que dava a distância máxima de 4 léguas entre eles; como ZURARA arredonda geralmente as distâncias para as dezenas de léguas, tudo fica explicado.
Pondo de parte os elementos de MAGALHÃES GODINHO, por não provarem, excluímos o Casamansa e pronunciámo-nos lògicamente pelo Gâmbia, com base em argumentos coerentes. Apresentámos ainda a hipótese de que a âncora recolhida nesse rio por Diogo Gomes, 10 anos depois, poderia ser a do navio encalhado.
DIAS DINIS (l) voltou à tese do Rio Grande, com os fundamentos que decorrem do que dissemos acerca da viagem de Nuno Tristão e por entender que se trata nos dois casos do mesmo rio.
OLIVEIRA BOLÉO (m) inclina-se porém para a opinião de serem dois rios diferentes, neste caso o de S. Pedro ou o das Ostras, entre o Gâmbia e o Casamansa.
DUARTE LEITE (B 23, págs. 129, nota 25) mostrou que de ZURARA se verifica terem os ferros da caravela do bispo do Algarve sido recolhidos pelas outras, pelo que deixa de ter fundamento a hipótese que havíamos apresentado (aliás também já indicada por ARMANDO CORTEZÃO).
Mas como esse argumento é secundário, continuamos a sustentar a tese do Rio Gâmbia como aquela que melhor se ajusta ao relato de AZURARA.
☻ 1446 - Neste anno Luiz de Cadamosto e Antonio Nolle armárão novamente duas Caravelas, para irem completar o descobrimento do Rio Gambia, obtendo primeiro a indispensavel licença do Infante, que folgou tanto com esta determina ção, que mandou em companhia delles huma Caravela sua.
No principio de Maio sahírão de Lagos as três Caravelas, e em poucos dias vrão as Canarias, onde não quizerão demorar-se, para aproveitarem o bom vento que trazião; e seguindo a sua derrota, reconhecêrão Cabo Branco, do qual se amárarão hum pouco, e na noite seguinte as assaltou huma tempestade de S.O., com que se puzerão á capa no bordo de O.N.O. por tres dias e duas noites, e ao terceiro dia virão com espanto duas Ilhas, de que não folgárâo por saberem que erão ainda desconhecidas; e dirigindo-sea hua, que era grande, rodeárão alguma parre della, até descobrirem hum local, que lhes pareceo bom surgidouro; e abonançando o tempo, enviárâo huma lancha bem armada a examinar se havia povoação.
Dcsembarcárâo os Portuguezes, e não vendo caminho, nem vestigio algum de gente, voltárão para bordo; e na manhã seguinte mandou Cadamosto á mesma diligencia doze homens armados, com ordem de subirem a hum monte mais alto, e observarem se havião outras llhas. Estes homens achárâo muitos pombos, que se deixavão tomar á mão, e do monte descobrirão outras tres Ilhas grandes, huma das quaes ficava para o Norte, e lhes pareceo verem para o Sul a modo de outras; assim as Ilhas agora descobertas erâo quatro.
Desta primeira Ilha se dirigírâo as CaraveIas ás outras duas, que nâo ficavão tanto a sotavento da derrota, que deviâo seguir para a sua comissão, e rodeando huma dellas, que parecia cheia de arvoredo, descobrírão a boca de hum Rio, que julgárâo seria de boa agua, e surgírão para se proverem della. Aqui desernbarcárâo alguns homens da Caravela, e caminhando pela margem do Rio, achárâo algumas lagoas de excellente sal; daqui embarcárão muito, e os navios renovárâo a sua aguada. Colheo-se quantidade de grandes tartarugas, cuja carne era tão branca, como a de vitella, e de optimo gosto, e por isso salgárâo muitas pera a viagem; e o peixe era innumeravel, algum de especíes novas, e muito saboroso. O Rio tinha de largo hum tiro de seta, e podia entrar nelle qualquer embarcação de 75 toneladas. Nesta Ilha se demorarão dous dias, matando infinitos pombos, e puzerão o nome de Boa Vista a primeira que descobrirão, e a esta segunda o de S. Tiago, por ter ancorado nella dia de S. Filipe, e S. Tiago (I).
(I)Acho aqui huma contradicção manifesta: Cadamosto conta; que sahio de Lagos no principio do mês de Maio, e que deo o nome de S. Tiago a esta llha, por haver ancorado nella no dia de S. Filippe, e S.Tiago, que he juntamente no primeiro daquelle mer. Ceio por tanto haver erro de impressão, ou de copista oa data da sua subida de Lagos, escrevendo-se.Maio em lugar de Abril. Concorda isto com a namrração de Goes (Chronica do Principce D. João, Cap.º 8.º, em que colloca esta Viagem no anno dê 1445), onde diz: Desta vez descobrirão estes cavalleiros as Ilhas de Cabo Verde, levando dezeseis dias de viagem; e á primeira que virão chamarão Boa Vista, e á outra S. Filipe, por chegarem a ella no 1º de Maio; e á terceira chamarão Maio pela mesma razão.
Partirâo as Caravelas na volta de Cabo Verde,eem poucos dias avistárâo terra em hum lugar chamado as Duas Palnas (1); entre o Cabo e o Senegal; e correndo a Costa, na manhã seguinte dobrárão o Cabo, e chegando ao Gambia, entrárão logo por elle, navegando de dia com a sonda na mão. As Almadias dos Negros andavão ao longo das margens, sem ousarem chegar-se. Cousa de oito milhas da barra acharão huma Ilhota em que surgírão e lhe chamárâo de SãoThomé, por ser o nome de um marinheiro, que ali sepultarão (2).
Deixando a Ilha, continuárâo a sua navegação pelo Rio seguidos das Almadias dos Negros, que a final, attrahidos com mostras alguns panoos, e seguranças de paz, e amizade, vierão á Caravela de Cadamosto, a que subio bum, que fallava a língua do interprete, e se mostrou maravilhado de ver a grandea do navio, e sobre tudo das vélas, porque eles não as usâo nas suas Almadias; e igualmente se espantava da côr branca, e do trajo dos Portuguezes. Estes acariciárão muito o Negro, e elle disse que estavão no Paiz do Gambia, cuio principal Senhor se chamava Forosangoli, que habitava a nove ou dez jornadas de distancia pela terra dentro para a parte do Sueste,e dependia de Melli, o grande Imperador dos Negros; mas que havião outros muitos Senhores menores, que viviâo junto das margens do Rio, e que elle os levaria a hurn destes por nome Battimansa, com quem poderiâo tratar amizade.
Acceitando-se-lhe a offerta, e sendo bem recompensado, ficou a bordo, e as Caravelas continuárão a subir o Rio, levando a proa sempre ao Nascente, até que chegárâó ao Estado de Battimansa, que ficava perto.
(1)Não achei este ponto notado em Carta alguma,e creio que só·foi reconhecido ele Cadamosto, por haver alli notado aquellas duasPalmeiras na sua primeira Viagem.
(2)He provavel que esta llhota de S. Thomé seja a Ilha de James dos ingleses.
Sahidos do Rio., navegárâo a Oeste· para se afastarem da Costa, que he mui baixa, e depois continurâo ao Sul, navegando só de dia, com boas vigias, e pouca véla, dando fundo todas as noites. As Caravelas ihião huma na esteira da outra, e cada dia por escala tomava huma a vanguarda. Ao terceiro dia vírao hum Rio (1), que teria de largo meia milha; e logo adiante hum pequeno golfo, que mostrava ser embocadura do Rio (2); e por ser ja tarde, surgírão. Na manha seguinte se fizerão á véla e, engolfando-se algum tanto, descobrirão outro grande Rio, cujas margens estavão revestidas de belíssimas arvores. Aqui deram fundo, e mandaram duas lanchas armadas com os interpretes a tomar língua da terra, os quaes voltarão com a noticia, de que este Rio se chamava de Casamansa, nome do Senhor daquele Paiz, que habitava cousa de sete legoas por elle acima, e não se achava então alli, por haver ido á guerra: por esta causa se partirão no dia seguinte, avaliando a distancia do Rio ao Gambia em setenta e cinco milhas (3).
(1)Parece que seria o Rio de S. Pedro , oito ou nove legoas ao Sul do Gambia.
(2)Devia ser o Rio de Santa Anna, ou a boca do Norte do Rio das Ostras, que ambos ficão. ao Sul do Rio de S. Pedro.
(3)O Rio de Casamansa está situado (a ponta do Norte) na latitude" de 12° 28', e longitüdede 1º 30’,e dista do Gambia sessenta milhas, com pouca diferença. Podem entrar nelle embatcações medianas, porque tem duasmilhas de largo, e de tres a quatro braças defundo. Toda a Costa, entre elle e o Gambia, be guarnecida de recifes, a que he perigoso aproximar-se. Da banda do Norte da sua entrada fica huma Ilha pequena, chamada dos Mosquitos. Este Rio comunica-se por dous braços com o Gambia, e por quatro, ou cinco com o de Cacheo. Habitão este Paizentre elle e o Gambia os Arciates, e Falupos,Negros mui azevichados, e boçaes, que cultivão arroz, milho, e outros mantimentos, e muito gado, e são bons pescadores; as armas de que usão, são frechas, e facas.
Continuando a sua viagem, virâo mais adiantecousa de quinze milhas hum Cabo, cujo terreno era mais alto e avermelhado, e por isso he puzerão o nome de Cabo Roxo (1); e alem delle acharão outro Rio, que lhes pareceo ter de largura hum tiro de bésta, e denominárao Rio de Santa Anna; e mais adiante outro da mesma grandeza a que chamárão de S. Domingos (2); de Cabo Roxo a este ultimo Rio arbitrárão a distancia em quarenta e cinco milhas, pouco mais ou menos.
Continuando a seguir a Costa por outra singradura, chegárâo á boca de hum grandíssimo Rio, que primeiro cuidarão ser hum golfo (3), cuja largura reputárão ser de mais de quinze milhas; e dobrando a pontado Sul da sua foz, descobrirão algumas Ilhas ao mar; e desejando saber algumas noticias do Paiz, derâo fundo. No dia seguinte vierâo duas Almadias, huma muito grande com trinta Negros, e outra com dezeseis, e depois de fazerem reciprocos signaes de paz, abordou a primeira á Caravela de Cadamosro, que tinha a sua gente em armas. Os Negros mostravão-se pasmados de ver gente branca, e da fórrna, e mastreação das Caravelas; porém como nenhum dos interpretes os pôde entender, não souberâo os Portuguezes nada do que desejavão; e só comprárão alguns pequenos anneis de ouro.
Dous dias se demorárão as Caravelas, e conhecendo os Commandantes que estavâo em Paizes novos, onde não podiâo ser entendidos, e que o mesmo lhes sucederia d'alli por diante, regressarão a Portugal. Nesre Rio tornou Cadamosto a notar, que a estrella do Norte apparecia muito baixa; e vio hum fenomeno, para elle novo, e foi que a enchente da maré durava quatro horas e a vasante oito e no principio da enchente era tal a força da corrente, que ainda surtas a três ancoras não se podião as Caravellas aguentar, e a algumas vezes forão obrigadas a fazer-se á véla com bastanre perigo.
Partindo deste Rio, fizerão-se na volta do mar para reconhecerem as llhas (4), que ficàvão sete, ou oito légoas da terra firme, e chegando a ellas, achárao duas grandes, e outras pequenas: as duas grandes erão razas, com frondosos arvoredos , e habitadas de Negros, cuja linguagem não entendêrão.
Daqui tomarão rumo para as partes dos Christãos, para as quaes tanto navegarão, até que Deos por sua msericortiia os conduzio a bom Porto.
(1) Cabo Roxo está situado na latitude N. de 12º 17', e longitude 1º 22’. A traducção diz Cabo Yermelho, mas eu não doptei este nome, por não confundir este Cabo, que se acha hum pouco ao Sul da Bahia de Rufisco, •m 14° 37' de latitude, e 0º 36' de longitude, com o Cabo de que falla aqui Cadamosto, o qual ainda conserva a denominação de Roxo.
(2) Passado Cabo Roxo, o primeiro Rio, a que Cadamosto chamou de Santa Anna, he o Rio de S. Domingos, ou de Cacheo; e o segundo, a que elle deo ete nome, he o braço do Norte do Rio chamado das Ancoras nas Cartas Inglesas. Os Navegantes, que se lhe seguirão, restitulrão ao de Cacheo o seu verdadeiro nome, e esquecêrão o de Santa Anna. Este Rio de Cacheo está situado na latitude N. de 12º 25’, e longitude 1º 23’.'
(3) Tatvez seria este Rio o braço do Sul do das Ancoras, ou antes o Rio de Bissau, que pela curvacura da terra se figuraria a Cadamosto muito maior.
(4) Indo do Rio de Cacheo para o Sul, ficão de parte de Oeste muitas Ilhas, humas povoadas, e outras não.
1446
Neste anno (se não foi no antecedente) partirão por ordem do Infante Antão Gonçalves, e Diogo Affonso (1) em duas Caravellas, e com eles Gomes Pires em huma do lnfante D. Pedro, com instrucções para entrarem no Rio do Ouro, e darem principio á introducçâo do Christianismo entre aqueltes Povos, estabelecerem algumas relações commerciaes. Mas como regeitárão humas e outras proposições, os três Commaodantes regressárão para Portugal, trazendo só hum Mouro velho, que voluntariamente os quiz acompanhar (e o Infante mandou restituir á sua patria), e hum Negro que comprárão. Aqui ficou entre os Barbaros hum Escudeiro de nome João Fernandes, com projecto de examinar o interior do Paiz habitado pelos Azenegues, para informar depois o Infante do que visse, ajustando com Antão Gonçalves a época em que havia tornar por elle.
☻ 1446 - Partio do Algarve Nuno Tristão (2) por Commandante de huma Caravela, e desembarcando ao Sul do Rio do Ouro, assaItou huma Aldêa, em que cativou vinte pessoas; e com ellas voltou a Portugal.
☻ 1446 - Neste anno expediuo Infante (3) a Antâo Gonçalves por Commandante de tres Caravelas, sendo os outros dous Garcia Mendes, e Diogo Affonso, com ordem de ir buscar João Fernandes (por serem  passados sete mezes que Iá estava), objecto este do seu maior interesse, pelos desejos que tinha de saber por elle noticias exactas daquelles Povos, e dos recursos commerciaes do Paiz, por ser homem que entendia bem o idiomados Azenegues.
Hum temporal espalhou os navios, e Antão Gonçalves foi o primeiro que chegou ao Cabo Branco, onde arvorou huma grandeCruz de páo, para servir ás outras Caravelas de signal de haver alli aportado; e por fazer alguma presa, que lhe compensasse os trabalhos da viagem, depois de desembarcar sem fructo em alguns pontos da Costa, demandou a Ilha de Arguim,a que a abundancia da pesca atrahia quantidade de pescadores (4), a pesar do risco a que os expunhão os frequentes assaltos dos Portuguezes.
Nesta Ilha se lhe reunirão as outras duas Caravelas e, como os Mouros havião desamparado a Ilha, por terem descoberto os navios, desembarcou Antâo GonçaIves na terra firme; e dando com huma Aldea, se bem que os Mouros se puzerão a tempo em fuga; como costumavão, cativárão os Portuguezes no alcance vinte e cinco, dos quaes Lourenço Dias de Setuval tomou nove, por ser mui ligeiro. Quando voltavão mui alegres desta especie de caçada, encontrarão João Fernandes,que havia dias os andava esperando por aquela Costa, e posto que muito queimado do Sol, vinha bem pensado e gordo, e acompanhado de alguns Azenegues, tanto para o defenderem dos pescadores, como para traficarem com os Portuguezes; e com effeito Antâo Gonçalves lhes comprou nove Negros, e algum ouro em pó, e por esta causa chamou áquelle lugar Cabo do Resgate (5).
Para celebrar este feliz encontro com João Fernandes, armou Antão Gonçalves Cavalleiro a Fernão Tavares, homem de nobre nascimento, que havendo-se achado em brilhantes acções militares, não quiz nunca receber similhante honra, senão neste Paiz, por ser novamente descoberto; e fazendo-se á véla para Portugal, veio correndo a Costa, e em Cabo Branco assaltou huma Aldea, em que cativou cincoenta e cinco pessoas, depois de hum combate, em que morrerão alguns Mouros; e chegou ao Reino a salvamento. O Infãnte folgou muito mais de ver João Fernandes, que o ouro, e os escravos que as suas Caravelas trazião, e delle soube: Que os Azenegues do interior daquelle Paiz erâo pastores, que vivião em Aduares, ou Tribus, e se nutriâo de hervas, sementes dos campos, e gafanhotos seccos ao Sol, ou de leite do seu gado, que tambem ás vezes lhes servia de bebida, por se nâo achar agua, senâo de poços, quasi salôbra, e ainda em poucos lugares, para onde transportavão os rebanhos, segundo as estaçóes do anno; e só comiâo carne de alguma caça que matavão. Que os habitantes da Costa erão pescadores, cujo alimento consistia em peixe fresco, ou secco, sem sal. Que o Paiz era todo de planicie, parte areal, parte charneca, onde de longe em longe cresciâo algumas palmeiras, e figueiras bravas; e assim, por falta de pontos de direcçao, quando os naturaes queriâo fazer huma jornada para mudar de pastos, governavam-se pelos ventos, estrellas, e vôos daquellas aves que costumão frequenfar es lugares povoados. Que as suas habitações erão tendas, em que viviao humas Tribus independentes das outras, e muitas vezes em guerra pela posse de hum pedaço de terra de hervagem, ou de hum poço. E que o seu idioma era quasi identico ao dos Mouros da Barberia.
De resto João Fernandes ainda que foi logo despojado dos vestidos por estes Azenegues nao recebeo delles outro damno, e habituando-se em breve ao seu modo de vida, e de sustento, mereceo a confiança de Huade Meimom, hum dos principaes Azenegues que vivia com mais comodidades que os outros; e foi quem o mandou com alguns dos seus a esperar os navios (6).
☻ 1446 - Neste anno Gonçalo Pacheco, Thesoureiro da Casa de Ceuta, rico Cidadão de Lisboa, armou huma embarcaçâo á sua custa, com a necessaria licença do Infante, para mandar á Costa de Africa (7), cujo commando deo a Diniz Annes da Grã, Escudeiro do Infante D. Pedro; e em sua conserva forão Alvaro Gil, Ensaiador da Moeda, e Mafaldo (não se sabe sabe o nome), por Commandantes de duas Caravelas. Chegados a Cabo Branco, achárâo hum escrito de Antão Gonçalves, em que avisava todos os navios se poupassem ao trabalho de desembarcarem alli, por quanto elle deixava destruida a Aldêa dos Mouros. Com esta noticia, e por conselho do Piloto João Gonçalves Gallego, dirigirão-se á Ilha de Arguim, em que cativárão sete indivíduos; e Mafaldo, instruído por hum dos cativos, desembarcou na terra firma, e atacando huma Aldea, tomou quarenta e sete pessoas: depois executarão outros desembarques inúteis.
Desconfiados de fazerem desta mais prezaz, pela cautela com que os Mouros se vigiavam, navegarão oitenta légoas de costa para o Sul, e dalli voltarão á Ilha das Garças a fazer carnagem; e nesta ida, e na volta desembarcarão algumas vezes, e cativárão cincoenta pessoas, com perda de sete homens, que os Mouros lhe matarão em huma das outras Ilhas de Arguim, por meterem a lancha em paragem tal, que ficou em seco. Na Ilha das Garças acharão Vicente Dias.
(1)Vede Barros, Decada Iª, L.º I, Cap. 9 – Soares da Silva, tomo Iº, Cap.º 84 – Faria e Sousa, Asia Portuguesa, tomo Iº, Parte Iª, e tomo 3º no fim – Antonio Galvão, pag. 24.
(2)Vede os Escritores acima citados, menos Galvão, que não faz menção desta pequena Viagem
(3)Vede Barros, Cap.º10. - Soaresda Silva, Cap.º 85. Faria e Sousa nos mesmos lugares citados,onde põe esta viagem no anno de 1447. - Galvão não faz menção della
(4)Segundo o testemunho positivo de Cadamosto, que ja referi, começava-se a construir nesta Ilha hum Forte no anno de 1445 por ordem do Infante, e concentrava-se alli o Commercio daquella Costa, cessando em consequência toda esta guerra de assaltos, e cativeiro dos naturaes do Paiz; mas esta viagem, e as outras emprehendidas neste anno, e no seguinte, desmentem aquella asserção, e a difficuldado não póde resolver-se, senão ou negando a authoridade de Cadamosto, que he mui grande pelo credito que lhe dá Damião de Goes, ou suppondo erro nas datas destas Viagens. Com effeito os nossos Historiadores são inconcordaveis nas épocas dos descobrimentos da Africa! Eu não decido a questão, siga cada hum a opinião que lhe parecer mais provavel; só advirto, que não falta quem duvide da veracidade de Cadamosto.
(5)Não achei este Cabo mrcado nas Cartas; mas sem dúvida he alguma ponta de terra fronteira á Ilha de Arguim.
(6)A narração de João Fernandes, ainda que tão antiga, concorda com a do lngles Mungo Parker, que visitou aquelles Paizes no seculo actual.
(7) Vede os Authores ja citados: Faria põe esta Viagem em 1447. Vede Soares da Silva, Capitulos 85, e 87. - Faria e Sousa noslugares citados, que colloca esta expedição em 1447. - Barros no lugar ja indicado, pag. 7, diz que as Caravelas sahiráo de Lagos a 10 d’Agosto de1445, no que ha engano, pois nomêa entre ss Commandentes a Diniz Fernandes, o que primeiro passou á terra dos Negros, isto he, a Cabo Verde; e no Cap. 9, , pgg. 73,e 74 o faz descobridor deste Cabo em 1446. Creio que devem trocar-se estas datas. N. B. A edição de Barros, de que trato, he a de 1778. – Goes tambem põe esta Viagem. (Cip. 3) em 1445, na Chronica do Principe D. João.
1446/08/00
Novos incidentes nos rios da Guiné
Ao desastre sucedido a Nuno Tristão e seus companheiros seguiu-se um outro ocorrido pouco tempo depois, quási nas mesmas condições e no mesmo local.
Do pôrto de Lagos haviam saído oito barcos sob o comando de Gil Eanes, Fernão Vilarinho, Estêvão Afonso, Lourenço d'Elvas e João Bernardes, aos quais se juntou um navio pertencente ao bispo do Algarve. A esta frota associaram-se na ilha da Madeira mais dois barcos de Tristão Vaz e Garcia Homem. Depois de uma acção infrutífera no arquipélago de Canárias, regressaram os navios da Madeira e o de Gil Eanes.
Os restantes oito «foram sua viagem até chegarem a além do Cabo Verde, LX léguas, onde acharam um rio que era assás de boa largura, no qual entraram com suas caravelas; mas não foi aquela entrada mui proveitosa para a caravela do Bispo, por quanto se acertou de topar em um banco de areia, de que abriu por tal guiza que a não poderam dali mais tirar... Mas se alguns em isto ocupavam, Estêvão Afonso e seu irmão foram em terra cujos moradores eram em outra parte...
E seguindo assim em seu caminho alguma peça, disseram que acharam a terra com grandes sementeiras e muitas árvores de algodão e com muitas herdades sementadas de arroz e assim outras árvores de desvairadas maneiras. E diz que tôda aquela terra lhe parecia a maneira de paues... E entrando assim por um arvoredo de grande espessura, saíram a êles de revez os Guineus com suas azagaias e arcos, chegando-se a êles quanto mais podiam. E assim quiz a ventura que de sete que foram feridos, os cinco ficaram logo ali mortos, dos quais os dois eram portugueses e os tres estrangeiros.
E estando assim o feito em êste ponto, chegou Estêvão Afonso com os outros que vinham de trás, o qual vendo o perigo em que eram, recolheu-os todos o melhor que pôde; no qual recolhimento houveram assaz trabalho...»
Por esta singela descrição se que, algum tempo depois da morte de Nuno Tristão, deu-se um segundo desastre, nas margens de um rio notável pela sua largura, situado também a 60 léguas ao Sul de Cabo Verde, num local que não se pode indicar com precisão, possivelmente entre os rios de Gâmbia e Geba, qualquer deles notável pela sua largura.
A circunstância de se mencionar as sementeiras de arroz, feitas pelos indígenas, leva-nos a supôr que o facto se teria passado por volta do mês de Agosto. Azurara não indica o ano em que saíu esta importante expedição, sendo muito provável que sse em 1446, ou no ano imediato.»
João Barreto, HISTÓRIA DA GUINÉ 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 35-36
PASSAGEM DO RIO PUNGO
A sorte foi mais propícia com Alvaro Fernandes, que saíu pela segunda vez da ilha da Madeira, com indicação de seu tio Gonçalves Zarco para que «seguisse mais avante quanto pudesse e que se trabalhasse de fazer alguma presa, cuja novidade e grandeza pudesse dar testemunho da boa vontade».
A caravela passou pelos cabos Verde e dos Mastos e, depois de ter tocado em alguns portos da costa que ia explorando, chegou à foz de um rio, situado a 110 léguas ao Sul do Cabo Verde. Nesse ponto os nossos expedicionários tentaram desembarcar, mas foram atacados por alguns barcos indígenas. Na contenda ficou ferido numa perna o capitão Alvaro Fernandes, com uma seta envenenada; «mas porque êle era avisado da sua peçonha, tirou aquela frecha muito asinha e fez lavar a chaga com urina e azeite, e dali untou-a muito bem com triaga e prouve a Deus que lhe aproveitom».
Deu-se durante esta viagem um episódio referido por Azurara, que merece ser reproduzido. Tendo os nossos exploradores encontrado, numa das praias, duas mulheres que andavam a apanhar mariscos, tentaram prendê-las. Mas uma delas, que trazia um filho dos seus dois anos, opôs tanta resistência que nem três homens conseguiram dominá-Ja. Para resolver a dificuldade, um dos marinheiros conduziu a criança para o bote fazendo menção de se retirar. Vencida por êste ardil deshumano, a indígena cessou de lutar e deixou-se aprisionar fàcilmente, preferindo seguir o destino incerto do filho, a perdê-lo.
«E era isto a além do Cabo Verde CX léguas... E esta caravela foi mais longe êste ano que todolas outras, pelo qual lhe foi dado de grado 200 dobras, scilicet, cento que mandou dar o Infante D. Pedro e outras cento que houveram do Infante D. H enrique», (Azurara, cap. LXXXVII).
Até onde chegou Álvaro Fernandes nesta sua última viagem?
Na resolução dêste problema surgem as mesmas dúvidas que já encontrámos em relação ao número e comprimento das léguas indicadas por Azurara. Admitindo que o conto das léguas esteja certo e atribuíndo-se-lhes a extensão de 5.920 metros, poderemos concluir que Alvaro Fernandes chegou até à baía de Konakry, a moderna capital da Guiné Francesa,
Mas sôbre êste ponto encontra-se uma referência de João de Barros. Analisando êste trecho da Asia, escreve o sr. Armando Cortesão no Boletim da Agência Geral das Colónias, aludido:
«Diz Barros que êste rio em que Alvaro Fernàndes foi ferido é o rio Tabite, situado 32 léguas além do Rio de Nuno, o que está de acôrdo com o que diz Azurara de êle ter navegado alguns dias a partir do Cabo ·dos Mastros e ter depois chegado quási tão longe como a Serra Leoa.
Em nenhuma das cartas antigas do Atlas do Visconde de Santarém vem indicado o rio Tabite; na altura indicada por Barros encontra-se em algumas dessas cartas o rio Pichel que deve corresponder ao actual rio Pongo da Guiné Francesa...»
A dificuldade encontrada por Armando Corteo na descoberta do rio Tabite parece-nos que é resolvida por uma passagem do Esmeraldo, que nos fala do rio Caabite, situado também na Guiné F rancesa.
No capítulo 32 do livro I da obra de Duarte Pacheco acha-se esta informação: «... Adiante destas ilhas dos Idolos 7 leguas acharam um rio que se chama do Cristal... Quatro leguas deste rio do Cristal está outro rio que se chama Caabite, o qual tem uma boca larga... Adiante do Caabite cinco Ieguas está o rio que se chama de Tamara...»
Temos portanto um rio Cabite ou Tabite, situado a II léguas das ilhas dos Idolos, ao Norte do Melancorê, e dentro das 32 léguas indicadas por João de Barros.
De tôdas estas informações de diversos autores, Azurara, Duarte Pacheco e João de Barros, parece lícito concluir-se que no ano de 1446 Alvaro Fernandes chegou às proximidades da Serra Leoa, a II leguas ao Sul das Ilhas dos Idolos. (Los Islands).»
João Barreto, HISTÓRIA DA GUINÉ 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 36-38
1447
«Em 1447 - Nos capítulos 89 a 94 da sua obra, Azurara descreve mais quatro expedições enviadas com o fim meramente comercial, uma ao norte do Cabo Bojador, e três para o Rio de Ouro, sob a capitania de Gomes Pires, Antão Gonçalves e Jorge Gonçalves.
Finalmente a Crónica de Guiné termina com o relato da viagem que vitimou o gentil-homem dinamarquês, de nome Vilarte (Valarte, Bolarte, ou Abelhart) que, levado por espírito aventureiro, viera a Portugal com o propósito de tomar parte nas explorações da costa africana.
Esta última expedição, que parece ter sido organizada pelo Regente D. Pedro, saíu de Lisboa em 1447, com especial missão de entabular negociações com o rei do cabo Verde que se dizia muito poderoso e possivelmente cristão. Depois de uma demorada viagem de seis meses, «chegaram à ilha da Palma, que é...acerca do Cabo Verde...fizeram depois vela para diante... e, sendo a fundo da ponta, em um lugar que entre os naturais é chamada Abram, ali fizeram lançar o seu batel fora em terra...»
Vieram ao seu encontro os chefes de nome Guitany, Satan e Minef, que se diziam subordinados a um rei chamado Boor, cuja residência ficava a uns seis dias de jornada (ª). Embora se mostrassem sempre desconfiados, os indígenas da região, durante os dias que a caravela esteve no pôrto efectuaram a permuta de algumas mercadorias.
Estas transacções não lograram, porém, inspirar inteira confiança nos indígenas que pareciam estar em desacordo entre si sôbre a atitude a adoptar com os portugueses e assim numa ocaião em que Vallarte se encontrava na praia com o seu batel, os indígenas caíram sôbre êle e seus companheiros, conseguindo apenas escapar a nado um dos marinheiros. Parece que dos portugueses foi morto apenas um e os restantes quatro feridos foram levados prisioneiros para a presença do rei Boor. Depois deste desastre, Fernando Afonso, que comandava o navio, conduziu-o directamente para PortugaI.
Diz João de Barros que a morte de Vallarte se deu no ano em que D. Afonso V chegou à maior idade, isto é, no ano em que tomou conta do govêrno, em 1448. Se atendermos que· o navio saído de Lisboa levou seis meses para chegar ao cabo Verde, pode dizer-se que coincidem as indicações dos dois cronistas, Azurara e Barros. Segundo Diogo Gomes o desastre teria sucedido na margem direita do rio Gâmbia.
O relato da expedição de Valarte constitue um dos últimos capítulos da Chronica do Descobrimento e Conquista da Guiné. Supõe-se que Azurara teria acabado de a escrever no ano 1453, pois é precedida de uma carta-dedicatória ao Rei D. Afonso V, datada de 18 de Fevereiro dêsse ano. Ela é, sem contestação, o melhor e o mais seguro documento histórico que se conhece sobre as expedições enviadas pelo Infante D. Henrique para a exploração e conquista da costa africana.
Não se sabe se Azurara teria chegado a escrever o segundo volume, como prometia fazer, abrangendo o reinado· de· D. Afonso V. Por isso, a seguir ao ano 1447 não é fácil reconstituir-se a história dos descohrimentos da costa africana, com a minuciosidade que caracteriza a obra de Azurara. No entanto pode-se afirmar que, depois da viagem de Vallarte, houve uma considerável interrupção na série dos descobrimentos novos. De 1448 até à morte de D. Henrique, em 1460, as caravelas portuguesas não tinham passado além do ponto alcançado por Alvaro Fernandês, isto é, além da baía de Konakry.
(ª) Diz João de Barros que um dos chefes chamava-se Farim. Deve, porém, notar-se que a palavra Farim é corrupção do vocábulo indígena Faram, que significa chefe duma maneira geral e não uma determinada pessoa. Não se trata portanto de um nome próprio.»
João Barreto, HISTÓRIA DA GUINÉ 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 38
VIAGEM DE VALARTE E FERNANDO AFONSO (1447)
Dos textos de ZURARA, BARROS e DIOGO GOMES nos vamos aproveitar na análise desta viagem. Limitamo-nos agora a transcrever os dois primeiros, porquanto já no respeitante à expedição de Nuno Tristão se apresentou o terceiro.
ZURARA, CAP. LXIV (Segundo edição de 1841)
Como Vallarte foe a terra de Guinee, e per que maneira foe sua ficada.
«Spargendosse a fama deste feito pelas partes do mundo, ouve de chegar aa corte delRey de Dinamarca e de Suecia e Noruega, e como veedès que homeẽs nobres se entremetem de quererem veèr e saber semelhantes cousas, acertousse que huῦ gentil  homem da casa daquele principe, cobiiçoso de veer mundo, ouve sua licença, e veo a este regno. E andando per tempo em casa do Iffante, huῦ dya lhe veo a pedyr que fosse sua mercee de lhe armar hῦa caravella, e de o encaminhar como fosse a terra dos Negros. O Iffante como era ligeiro de mover a qualquer cousa em que algum boõ podesse fazer honra ou acrescentamento, mandou logo armar hῦa caravella o mais compridamente que se pode fazer, dizendo que se fosse ao Cabo Verde, e que vissem se poderyam aver segurança do rey daquela terra, porquanto lhe fora dicto que he muy grande snõr, mandandolle suas cartas, e que esso mesmo lhe dissesse algῦas cousas de sua parte por serviço de Deus e da sua sancta fe; e esto porque lhe afirmavam que era xpaão: e a conclusom de todo era que se assy fosse, que a ley de Xpõ tiinha que lhe provèsse seer em ajuda da guerra dos Mouros dAfrica, naqual elRey dom Affonso, que entom regnava em Portuga, e elle em seu nome, com os outros seus vassalos e naturaaes, continuadamente trabalhavom. Todo foe prestes muyto asinha, e aquelle scudeiro, que se chamava Vallarte, metido em seu navyo, e com elle huῦ cavaleiro da ordem de Xpõ, que se chamava Fernandaffonso, que era criado e feitura do Iffante, que elle mandava em aquella caravella, porquanto Vallarte era strangeiro, e nom sabya tam bem os costumes e maneira da gente, que encaminhasse os mareantes e as outras cousas que pertenciam na governança do navyo, e ainda casy por embaixador, se se acertasse de veerem aquelle rey, levando pera ello dous naturaaes daquela terra por turgymaães. Empero a capitanya principal era de Vallarte. E assy seguiram per sua vyagem, depois de grandes trabalhos que ouveram no mar, que passados seis meses, do dya que primeiro partiram de Lixboa, chegaram aa Ilha da Palma, que he na terra dos Negros acerca do Cabo Verde; onde tendo seu conselho sobre a maneira que dally avante avyam de teer, segundo os regimentos que levavm do Iffante, fezeram depois vella pera dyante porque ainda aquelle nom era o porto onde eles avyam de teer assessego. E sendo a fundo da ponta em huῦ lugar, que antre os naturaaes daquela terra he chamada a Abram, ally fezerom lançar seu batel fora em terra, noqual sayu Vallarte com alguῦs outros, onde charom já muytos daquelles Negros, dosquaaes Vallarte  requereu que lhe dessem huῦ, e que elle lhe darya outro, pera aver entre elles segurança per que podessem aver sua fallas; cuja resposta foe, que tal cousa nom era em eles de fazer sem autoridade de huῦ cavaleiro que ally estava, caasy como governador daquela terra, que avya nome Guitenya, oqual tanto que soube semelhante requerimento, veo ally, e prouvelhe muyto de outorgar o que Vallarte requerya. E tanto que huῦ daqueles Negros foe na caravella, Fernandaffonso que sabya milhor nossa linguagem portuguees, começou de falar com elle, dizendosse assy: O que requeremos tua vinda a este navyo, foe porque digas per nossa autoridade a teu snõr, como nós somos de huῦ grande e poderoso principe da Espanha, que he na fim do poente, per cujo mandado aquy viimos pera falar da sua parte ao grande e boõ rey desta terra; fazendo-lhe ler hῦa das cartas que levavam, aqual lhe foe declarada per huῦ dos seus entrepetadores, pera o dizer assy a aquelle cavaleiro que o ally envyara. Quanto, disse elle, se vós querees veer Boor, que he o nosso grande rey, nom podees pollo presente aver seu recado, porquanto he certo que he muy alongado daquy, one anda guerreando a huῦ outro grande snõr que lhe nom quer obedecer. E se ainda fosse em sua casa, disse Fernandaffonso, em quantos dyas podyam ir a elle com nosso recado, e esso mesmo tornar com a resposta? De seis ataa sete dyas, serya a maior tardança, respondeu o Guineu. Pois, disse Fernandaffonso, sera bem que digas a esse cavaleiro com que vives, que mande la huῦ homem com seu recado, fazendo-lhe saber todo o que te já disse, e se o teu snõr assy fizer, fara grande serviço ao seu rey e proveito a sua terra. Hora, disse o Guineu, eu direy todo muy bem a Guitanye. 

Mais uma vez se verifica que BARROS se limita a sumariar os dizeres de ZURARA. Uma única diferença - mais propriamente aumento- se nota: o primeiro denomina o Guytanyede Farim, por ser governador da terra.
Esquemàticamente tiram-se dos cronistas as seguintes indicações principais:
1 - A expedição tinha por fim estabelecer relações amistosas como senhor do Cabo Verde.
2 - Além das cartas para esse efeito destinadas seguiam na caraveladois intérpretes, «naturais daquela terra», e que se depreende facilmente terem-se feito entender no local a que chegou Valarte.
3 - O términus da viagem foi para sul da Ilha de Palma (Gorea). Desconhece-se porém qual a distância a essa ilha.
4 - O local era chamado pelos indígenas Abram e ficava a «fundo de uma ponta».
5 - O Governador da terra denominava-se Guitenya ou Guitanye (segundo BARROS, Farim). Outros indivíduos importantes tinham os nomes de Satam, Minef e Amallam.
6 - O «grande rei» da região era Boor, e estava a cerca de 3 dias de viagem do local
7 - Os indígenas não devem ter morto todos os que ficaram cativos.
8 - Segundo DIOGO GOMES a caravela de Valarte foi além da de NunoTristão (?) ou daquelas que travaram luta com o Bezeguiche (?)s endo porém ainda os Niuminkas os atacantes.
Não parece fácil à primeira vista com as indicações de ZURARA identificar o local onde chegaram Valarte e Fernando Afonso. Por isso os investigadores - tão categóricos a respeito das viagens anteriores- cautelosamente se têm abstido, de uma maneira geral, em se pronunciar sobre esta.
CHARLES DE LA RONCIÈRE (1925) refere-se ao assunto em termos tais que se é levado a supor ser o Guitanye umv asalo do Imperadorde Mali (90).
(90) RONCIÈRE, B 39, lI, pag. 48, «Descendu dans undroit appelé Abram, il croyait avoÍr desarmé l'hostilié de la tribu du chef «Guitanye», vassal du roi de Mali (Bomeli), qui guerroyait à huit joumées de Ià».
JOÃO BARRETO (1938) fez notar que pelo relato de DIOGO GOMES o desastre se teria dado na margem direita do Gâmbia (91).
DAMIÃO PERES já procura ir mais longe. Começa por notar que de DIOGO GOMES se deduz: ter Valarte ido além de Nuno Tristão. Como havia feito este último chegar à barra do Gâmbia, conclui que o «mais além» pode significar que o primeiro subiu esse rio em maior extensão. A observação de RONCIÈRE (o Boor seria o Bor·Meli) conjugada com uma informação de DIOGO GOMES (o Bormelli era o senhor de «toda a terra dos pretos da parte direita do rio») levam-no assim a aceitar como muito plausível que o dinamarquês tivesse sido aprisionado nas margens do Gâmbia. Para reforçar a conclusão apresenta ainda a hipótese de o Abram de ZURARA ser o mesmo que Habanbarranca, aldeia «das imediações do Gâmbia» citada por DUARTE PACHECO (92).
Finalmente MACALHÃES GODINHO (1945) também apresenta algumas hipóteses (93). Talvez sugestionado por RONCIÈRE aíirma que o rei para o qual Valarte era embaixador não devia ser o de Cabo Verde, por nenhuma fonte o mencionar, mas sim o Imperador Mandinga. Acha plausível a hipótese de DAMIÃO PERES, se bem que lhe pareça mais seguro afirmar que o insucesso de Valarte teve lugar entre o Cabo dos Mastros e o rio de S. Domingos. A designação de Farim dada por BARROS ao Governador da terra, fá-lo concluir que «a aceitar-se levariaa localizar a morte de Valarte no rio de S. Domingos (Cacheu) pois sabemos por Valentim Fernandes (Pág. 84) que o senhor deste rio é Farinbraço, de origem mandinga, bem como toda a sua gente».
(91) BARRETO, B 6, pag. 39.
(92) PERES, B 36, pág.99-100.
(93) MAGALHÃES GODINHO, n 32. II. Pág.s 262-3.
Passemos agora à análise dos vários elementos apresentados.
a)Elementos geográficos
Como já notou DAMIÃO PERES, o local atingido não deve ficar muito longe da Ilha da Palma, porquanto o cronista não refere nenhuma escala intermédia. ZURARA indica expressamente que o objectivo era um rei do Cabo Verde, o que reforça aquela suposição.
Deve-se notar ainda que não há qualquer referência a rios, o que faz pensar, até certo ponto, que a caravela não atingiu a região entre Sangomar Pt. E Cape Bald, abundante de desembocadouros fluviais, alguns dos quais bem notáveis e conspícuos.
Mas a palavra Boor exerceu uma irresistível influência sobre os investigadores citados, que nela quiseram ver uma referência ao Bor Meti, e assim puseram de parte as indicações que levavam a supor ficar o términus da viagem para o norte do Salum, a fim de poderem realçar a hjpótese do Gàmbia, habitado por mandingas, onde aquele rei dominaria.
Nesta ordem de ideias procurou DAMIÃO PERES identificar a palavra Abram com o nome de uma aldeia referida por DUARTE PACHECO na sua descrição do Gâmbia. Fàcilmente se pode porem verificar que tal identiíicação não tem cabimento.
Comecemos por notar que o Abram de ZURARA ficava na costa, «a fundo de uma ponta». Não há indicação alguma de que estivesse na margem de um rio; e se, apesar disso, tal sucedesse, certamente ficaria próximo da foz, pois o cronista não refere a subida de nenhum por grande extensão.
É no Cap. 29 do Livro I do «Esmeraldo» que DUARTE PACHECOf ala da aldeia de Habanbarranca. Depois de descrever o Reino Mandingado Gâmbia e várias das suas povoações e referir como os portuguesessubiam o rio até 180 léguas da foz (na realidade 85) paratrazer ouro,o roteirista prossegue da seguinte maneira: «...& duzentas leguas alem deste Reyno de mandingua estaa huma comarca de terra honde ha nuito ouro a qual chamon toom e os moradores desta provincia teem Rostro & dentes como caës & Rabos como de carn & som negros & de esquiua conuersasõm que nom querem uer outros homees & has gentes de uns lugares aos quaes hum deles chamon veetun & o outro habanbarranca & o oulro baha baião a esta terra de toom comprar ho ouro per mercadorias e escravos que que lhe levom os quaes no modo do seu comercio tem esta maneira...»
Segue-se a já tradicionaI descrição do comércio mudo do ouro, que outros viajantes da época igualmente referem, bem como a lenda dos homens-cães.
Não diz DUARTE PACHECO claramente qual a localização de Habanbarranca; mas visto que os seus habitantes iam comercial a Toom - 200 léguas para lá do Reino do Gâmbia - lícito é supor que aquele lugar ficaria situado no Alto Gâmbia, possivelmente na região de Cantôrá, que era o grande mercado aurífero (ou mesmo para leste, visto o roteirista indicar anteriormente em Cantôrá quatro povoações principais, distintas das três que agora menciona) (94). Difícil se torna aceitar que se Habanbarranca ficasse na foz do Gâmbia fossem os seus habitantes quem se ocupasse a ir buscar a cerca de 380 léguas o ouro para o venderem noutro local a 180 léguas da sua terra.
Mas a este argumento de natureza geográfico-comercial junta-se ainda um outro, de carácter linguístico. Verifica-se que DUARTE PACHECO reproduz com bastante exactidão os termos indígenas, como se constata com as quatro povoações de Cantôrá, cujos nomes escreveu com grande fidelidade. É portanto lícito admitir-se que o mesmo suceda com Habanbarranca ou Banbarranca (como mais abaixo volta a enunciar). Ora existem no idioma mandinga os dois termos ABAMBARANCA e BAMBARANCA. O primeiro significa «aquele Bambaranca»; o segundo «individuo oriundo da tribo BAMBARA» (95) . Os BAMBARAS são um povo afim do mandinga cujo núcleo principal tem assento na região entre o Alto-Senegal e o Alto-Niger, para leste já do Alto-Gâmbia. Natural era, em virtude da sua situação geográfica, que eles se dedicassem a transportar o ouro das regiões auríferas (provavelmente o Bambuk e o Bouré) para Cantôrá, onde recebiam outros produtos em troca; ainda hoje os Bambaras praticam um activo comércio desse metal, aproveitandoo facto de as zonas do litoral estarem divididas por várias soberanias.
Quer isto dizer que DUARTE PACHECO tomou o povo pela região onde ele habitava (o que aliás sucede frequentemente nos escritos antigos – Jalofo por Terra dos Jalofos; Mandinga por Terra dos Mandingas, etc.).
Conclui-se assim que Habambarranca ou Banibarranaa diz respeito à região habitada pelos Bambaras, a muitas centenas de quilómetros da costa. É portanto impossível identificá-la, como DAMIÃO PERES quer, com o lugar de Abram, que ficava no litoral.
Sobre a palavra Abram apenas conseguimos apurar que não tem relação com a lingua mandinga, o que exclui a hipótese de o lugar ficar no Niumi.
A suposição de Valarte não ter passado o Jumbas é assim reforçada.
(94) As quatro povoações são Sutucoo, Jalancoo, Bancoo e Jamnam Sura. Estes termos são mandingas, e perfeitamente identificáveis. São asseguintes as suas interpretações, segundo o Administrador António Carreira:
Sutucoo - SUTUCUÓ «coisa misteriosa da noite», on seja feitiço. É um nome utilizado para povoações bastante arborizadas.
Jalancoo - O termo pode equivaler a duas palavras mandingas, qualquer delas com a mesma raiz: JALANCUÓ «relativo a JALAN; JALAN é um pano branco de grandes dimensões, usado por pessoas de grande respeitabilidade. Ou então JALAN-COlÓ, a «veste propriamente dita».
Bancoo - BANCÓ, terra, local, pátria.
Jamnam Sura - JAMANAM SURÁ. Trata-se de designação de certa planta medicinal. O lermo é próprio dos mandingas do Gâmbia, pois na nossa Guiné essa mesma planta é designada por SAPATÉU. Dá-se tal nome às povoações que estejam situadas em local onde exista o arbusto.
(95) lnformação amavelmente prestada pelo Adminislrador António Carreira.
b) Elementos etnográficos
Deixou-nos ZURARA os nomes de vários indivíduos da região:Guitenya ou Guitanye (o chefe), Satam, Minef e Amallam.
Podemos afirmar de certeza que nenhuma das três primeiras palavras pertence à língua rnandinga (97). Embora não o possamos já garantir tão categoricamente, também não se afigura provável que sejam de algum dos idiomas das tribos que têm o seu habitat no actual território português.
Significa portanto esta conclusão que a zona costeirao onde Valarte aportou ficava ao norte do Niumi, o que equivale a dizer estar compreendida entre o Ilha de Palma e o Rio Jumbas (98).
Cremos que deve ser fácil a identificação dos referidos termos para quem conheça os idiomas jalofo e serere. Apesar de eles já estarem estudados pelos franceses, não conseguimos haver qualquer das várias publicações sobre o assunto, a fim de resolvermos definitivamente a questão.
A hipótese do Gâmbia resulta assim muito pouco provável. Ela assenta sobre o relato de DIOGO GOMES e sobre uma sugestão - a de que o Boo de ZURARA era o Bor Meli. Ao relato voltaremos mais adiante; a última identificação vamos mostrar desde já que não tem qualquer valor.
ZURARA diz que o Guitanye era um chefe local, dependente do «grande rei» Boor. O primeiro julgava-se com autoridade suficiente para tratar com os portugueses mas Fernando Afonso não se convenceu e impôs a sua vontade no sentido de um mensageiro ir levar a carta ao Boor, que nessa altura estava no interior guerreando um senhor revoltado. Previamente informara-se porém do tempo que a resposta demoraria, sendo-lhe dito que seis a sete dias: isto significa que o Boor estava a 3 ou 4 jornadas da costa.
Verificamos desde já que RONCIÈRE se enganou ao afirmar que o rei estava a 8 jornadas (talvez baseado em BARROS).
E éfácil mostrar que o mesmo lhe sucedeu ao dizer que se tratava do Rei de Meli - Bor Meli.
A designação Bor Meli é caracteristicamente jalofa. É certo que DIOGO GOMES só aplica essa designação, mesmo quando está a falar de informações colhidas no Gâmbia (Bormelli, Mormelli), mas deve-a te repetido por frequentemente ouvida entre os jalofos. Os mandingas dizem Mandimansa (99). O Bor é o equivalente jalofo do Mansa dos mandingas.O imperador mandinga era conhecid!o na generalidade por Mandimansa; a sua fama era porém muito grande, e, nalgumas regiões, mesmo naquelas onde não dominava, davam-lhe nomes equivalentes noutros idiomas, como é o caso presente com os jalofos, que estavam fora do seu poder.
Em resumo: o facto de ZURARA chamar ao Rei da região Boor demonstra que não se tratava de terra de mandingas, mas sim de jalofos, barbacins ou mesmo sereres (se bem que estes tenham para o mesmo caso a palavra própria Mad; no entanto, como estavam muito influenciados pelos jalofos, também podiam empregar o termo destes).
Aceitar que Boor em questão era o Bor Meli é absurdo. O Imperador Mandinga residia nas margens do Alto Nlger, a milhares de quilómetros para o interior (Valentim Fernandes, pág. 75, diz: «Este rey vive dentro no sartão 700 légoas»). Para chegar até ele seriam necessários meses, e de modo nenhum três ou quatro dias. Poder-se-ia supor ter-se ele deslocado para ocidente, a fim de combater algum súbdito desobediente; não temos porém informação alguma de que em tempo algum um Mandimansa viesse até ao Atlântico. As suas conquistas para os lados do Gâmbia eram efectuadas por cabos de guerra que ele mandava para esse fim; a administração corria por chefes locais ou enviados, de confiança.Para mais, nessa altura estava o Imperador mandinga bastante atarefado com vizinhos próximos, que aclivamente lhe retalhavam domínios perto de Mandem. Estranho seria supor que numa ocasião dessas ele se deslocasse tanto a ocidente para combater um senhor da periferia do império. Aliás o seu poder (já nessa altura bastante teórico) apenas atingia o litoral na zona do Gâmbia.
RONCIÈRE enganou-se portanto, obcecado como estava com o Imperador de Meli, que na sua obra constitui uma figura central.
O Boor de ZURARA era um chefe de menor importância, dos váriosque iam do Cabo Verde ao Jumbas, da tribo jalofa ou da serere. DIOGO GOMES fala de dois, na região do Sine, em seguida aos Sereres: o Barbacin  (Bor-Ba-Sine) durte o Barbacin negor. Também já a propósito da viagem de Nuno Tristão se falou de um outro Bor de maior poder que estes: o Borsalo (Bor-Salum), da região do Salum.
De ALVARES DE ALMADA (caps. III e IV) concluimos que por alturas do Cabo Verde o Budumel (Bor-Damel) do Encalhor (Caior) deixavade ter dominio na costa do mar. Ao longo desta corriam até o Rio dos Barbacins (Salum) os barbacins do Reino de Ale-em-biçane, e desse rio para o sul os do Reino de Borsalo.
AZEVEDO COELHO refere os Xeréos (Sereres), à beira-mar, entre os reinos de Encalhor e Bóol (Baol), sujeitos ao Reino de Porto Dale, ao qual se seguia, para sul, o Reino de Berbecin, depois o de Borçallo, e , após o Rio de Felam (Jumbas), o Reino de Barra (100).
Cita DIOGO GOMES, antes da última viagem de Nuno Tristão, uma expedição que passou para o sul do Cabo Verde chegando a terras do Besegichi, tendo este traiçoeiramente atacado os nossos.
Creio portanto ser fácil concluir que o Boor de ZURARA diz respeito a alguns dos chefes entre o Cabo Verde e o Jumbas, talvez o Bor-ba-Sineou o Bor-Salum. Em virtude do mau caminho que estavam tomando as relações com os potentados negros ao sul daquele cabo, natural era que de Portugal se enviassem expedições destinadas a estabelecer amizade com eles. Tal seria o objectivo daquela em que embarcou Valarte, objectivo esse bem claramente revelado por ZURARA.
Não vemos portanto razão para crer, como MAGALHÃES GODINHO,que «não deve tratar-se de um rei da região do Cabo Verde, que nenhumafonte menciona, mas do Imperador de Meli».
Evidentemente nenhuma fonte menciona um «Rei de Cabo Verde» - notar que o nome do Cabo éportuguês - mas na região e nas proximidades havia vários reis, cujos nomes gentilicos apontámos. O «senhor da terra» de que ZURARA fala seria o Bor Damel - caso o cabo estivesse então na jurisdição do Caior, o que não pudemos apurar em definitivo - ou o chefe dos Sereres do litoral, talvez o Besegichi de que tanto fala DIOGO GOMES. Não vemos razão alguma para ir buscar o Imperador de Meli e não aceitar a afirmação simples e clara de ZURARA.
Note-se ainda que os dois intérpretes que levavam se fizeram entender- no que o texto do cronista é bastante claro. Não é de excluir a suposição de que eles fossem alguns dos cativos das expedições anteriores. Temos repetidas provas de que havia este costume, de utilidade evidente. ZURARA não indica porérn que nas três viagens de 1446 se tivesse capturado algum homem; resta portanto a suposição de que os intérpretes teriam sido aprisionados nas expedições de 1444 e 1445, no sul do Senegal ou nas imediações do Cabo Verde. Seriam portanto jalofos, o que significaria que no local atingido por Valarte habitariam jalofos ou barbacins (ÁLVARES DE ALMADA indica que embora as línguas sejam diferentes, eles se entendem).
Evidentemente este argumento não tem demasiada importância, porquanto poderia tratar-se de escravos obtidos por outras vias, nomeadamente através dos mouros ao norte do Senegal (101).
Resta agora analisar uma hipótese derivada da versão de BARROS.
Já se acentuou que este dá ao Guitanye a designação de Farim, por ser o Governador da terra («sabido este recado per o Governador da terra a que eles chamam Farim»). Quer dizer, não se trata fundamentalmente de uma divergência, derivada de nova fonte (e a comparaçãodos dos textos prova que esta não existiu), mas sim de uma ilacção. A JOÃO DE BARROS, que estivera na Mina, não era desconhecido o facto de, entre os mandingas, ser muito vulgar a designação Farim (mais própriamente Faran - adiante trataremos pormenorizadamente do assunto) aplicada aos régulos. A palavra era muito corrente na Guinée no Sudão. Daí o cronista tê-la aplicado ao caso de Guitanye sem se proocupar se este era ou não mandinga. E fê-lo com infelicidade, porque errou, pois a referência de ZURARA ao Bor, chefe do Guitanye, prova que não se tratava de mandingas.
MACALHÃES GODINHO aproveitou-se do termo de BARROS para o ligar a uma passagem de VALENTIM FERNANDES onde se fala da existência de um chefe mandinga, Farinbraço, que tinha assento no rio de S. Domingos {Cacheu). Diz que, a aceitar-se a indicação de BARROS, a morte de Valarte localizar-se-ia no referido rio. O trecho de VALENTIM FERNAMDES é o seguinte:
«Ryo de samdomjgos he hüm ryo qentrã nanjos por elle ë cima 60 leguas a este ryo por seu lingoa chamã jaffada. Os navios q vam tãto acima vãm resgatar cauallos os quaes resgatã cõ hüm senhor ¨q se chama farinbraço. E he mãdinga e toda sua gente mandinga». (102)
Comecemos por notar que no Rio de S. Domingos habitavam então na foz os felupes. A estes seguiam-se, para montante, os brames e banhuns. Após eles vinham os balantas, ao tempo de AZEVEDO COELHO sujeitos ao Rei do Casamansa. Só então, a cerca de 20 léguas da foz, surgiam os mandingas do Brossuou Braço, cujo chefe (Farinbraço) residia normalmente a 30 léguas da barra (e não 60, como VALENTIM FERNANDES, com exagero, afirma) no local onde chegavam as caravelas, e perto do qual Gambôa Ayala, por volta de 1641, fundou a povoação de Farim - (a origem do nome fica demonstrada), uma das mais antigas da Guiné Portuguesa.
Como já se viu que Valarte desembarcou na costa - e não temos nenhuma indicação de que Abram ficava na proximdade de um rio - é fácil concluir que, se outras razões não houvesse, nunca poderia ser o Farinbraço o Guitanye de ZURARA.
Acresce ainda que entre o Gâmbia e o Rio Grande tinham então assento vários Farans, a que mais tarde nos referiremos, com vagar. A errada indicação de BARROS só viria afinal complicar a questão, dificultando a escolha.
Fica portanto demonstrado que não tem qualquer cabimento o que se viu ser uma ilacção de BARROS, e com mais forte motivo a interpretação de MAGALHÃES GODINHO.
(97) Os três referidos termos foram apresentados ao senhor Administrador António Carreira, que foi concludente em afirmar que nenhuma relaçáo têm oom a língua mandinga, admitindo como possível terem sido introduzidos no idioma jalofo pelos berberes da Mauritânia. Desde já declaramos que no decorrer deste trabalho por muitas vezes ainda recorreremos a informações de carácter linguístico amàvelmente prestadas por aquele Senhor Administrador, que conhece a fundo a vida dos mandingas. Essas informações revelaram-se de grande importância, pelo que desde já aqui lhe deixamos expresso o nosso agradecimento.
(98) Sabemos, com efeito, que da rnargem sul do Gâmbia, do Combo, alé ao Cacheu, a costa era habitada por Felupes, como já se demonstrou no relativo à viagem de Nuno Tristão. Da análise às respostas a um lnqnérito Antroponímico recentemente levado a cabo na Colónia pudemos verificar a não existência de tais termos, quer na língua felupe, quer nas restantes. Entre os muitos nomes indigenas que temos ouvido nunca nenhum se deparou que pudesse aproximar –se dos três primeiros referidos. Quanto ao quarto termo, apenas nos lembramos do fula e mandinga Malam, parecido oom o AmalIam de ZURARA. Tal termo é porém de origem árabe, e encontra-se largamente espalhado por toda a Africa Ocidental, pelo que unicamente se pode concluir que ele, na época e no litoral, apenas se encontraria no Combo, no Niumi ou daí para o norte (em regiões islamisadas).
(99) Já VALENTIM FERNANDES menciona expressamente o facto, ao descrever o Reino Mandinga:
«Elrey de Mandinga se chama Mãdimãsa porque os desta terra por seu lingoagë chamã a prouincia de Mãdinga, Mandi. E mansa quer dizer rei por sua lingoa. E a ssim se chama elrey delles Mandimãsa» (B 45, págs 75).
(100) AZEVEDO COELHO, B 2a, fls. 7-11.
(101) Com um indígena aprisionado por Pedro de Cintra numa zona do litoral que actualmnte está incluida na Liberia sucedeu ter sido compreendido em Lisboa por uma escrava, que evidentemente não podia ter sido antes capturada pelos portugueses no local, e devia assim ter chegado à Europa por outra via.
(102) VALENTIN FERNANDES, B 45, págs. 84.
c) Os cativos
De ZURARA parece concluir-se que nem todos os que ficaram retidos em terra foram mortos.
Diz o cronista que anos após se soube por alguns cativos que num «castelo» do interior haviam sido aprisionados quatro cristãos, um dos quais já morrera, concluindo tratar-se, talvez, dos companheiros de Valarte.
É bem conhecida uma carta, datada de 12 de Dezembro de 1455, dirigida aos seus credores por um Antonio Usodimare, italiano que fez uma viagem ao Gâmbia. Nessa carta fala Usodimare da existência na regiãõ de um indivíduo «della nostra natione, credo di quelli della galea Vivaldi» (103).
SANTARÉM, há um século, mostrara que se devia tratar de algum dos companheiros de Valarte. A suposição afigura-se bastante verosímil. No entanto continua a correr como certa a absurda afirmação de Usodimare - como se fosse possível que após 170 anos ainda andasse pelo Gâmbia alguém (onde aliás não é de crer que os Vivaldi pudessem chegar com seus batéis) no meio de povos negros, conservasse a língua italiana e recordação do facto.
Se abrimos um parêntesis para referir este ponto, que nada interessa à localização do termo de Valarte, foi porque nunca é demais contestar afirmações de uma historiografia tão abundante em fantasias.
(103) CADDEO, B 14, págs. 153-55.
d) Conclusões
Depois de eliminadas uma série de hipóteses sem fundamento – identificação de Abram com Habanbarranca, de Boor com Bor Meli, de Farim com Farinbraço -  continua de pé a suposição de que o ponto onde Valarte fui morto ou capturado tem de procurar-se entre a Ilha Gorea e o Rio Jumbas. Já atrás ficaram devidamente expostos os fundamentos geográficos e etno-linguísticos em que tal suposição se apoia.
Chegou agora a altura de voltar ao relato de DIOGO GOMES. Comecemos por notar que este refere apenas as expedições de NunoTristão e Valarte, omitindo a de Estêvão Afonso. Como já se acentuou, deduz-se de DIOGO GOMES que a região atingida pelos dois primeiros foi o Niumi. Com efeito diz ele ter sabido, de um chefe indígena, que fora o Niummansa quem fizera dano aos cristãos e «às caravelas já nomeadas». Como antes aíirmara que NunoTristão levara apenas uma caravela e Valarte outra, as caravelas só poderão ser as duas referidas.
Mas já se viu atrás que os elementos etno-linguísticos extraídos de ZURARA provam de forma coucludente que Valarte não atingiu a região dos mandingas, o Niumi.
Conclui-se portanto que DIOGO GOMtES laborou em confusão. Resta apurar como esta se formou.
Poderia ainda argumentar-se que quando ele diz que Valarte navegou «ainda além do lugar já dito, onde os cristãos tinham sido mortos» se está a referir não a Nuno Tristão, mas à expedição que descreve anteriormenteà deste, e em que os atacantes foram os homens do Besegichi. Não se consegue porém assim desfazer a confusão, porquanto fica de pé o passo relativo ao dano feito «àscaravelas já nomeadas».
Outra explicação há porém a apresentar, que se afigura mais plausível. Deve-se salientar que DIOGO GOMES:
1) - Não refere a expedição de Estêvão Afonso;
2) - Atribui à expedição de Nuno Tristão um facto que não se verificou - a destruição da caravela. Este facto diz porém respeito à expedição de Estêvão Afanso (encalhe da caravela do Bispo do Algarve);
3) - Atribui à expedição Valarte factos que não se verificaram - a grande mortandade dos tripulantes, a condução da caravela por moços e o encontro de um corsário na costa de Portugal. Estes factos dizem porém respeito à expedição de Nuno Tristão;
4) - Atribui à expedição de Valarte outro facto que se não verificou - o ter passado além da de Nuno Tristão. Este facto dis porém respeito à expedição de Estêvão Afonso.
Conclui-se portanto que DIOGO GOMES baralhou e resumiu em duas os sucessos de três expedições diferentes.
Julgo que à luz desta interpretação - que tem fundamentos evidentes - o desacordo entre ZURARA e DIOGO GOMES fica arrumado. E em conclusão os factos teriam sido os seguintes:
- Nuno Tristão passou o Rio dos Barbacins, chegando provavelmenteao Rio de Lago, onde foi morto. O sucesso deu-se já no Niumi – DIOGO GOMES está na razão.
- Estêvão Afonso passou além de Nuno Tristão e chegou à foz do Gâmbia, encallhando aí uma das caravelas. O sucesso deu-se igualmente no Niumi – DIOGO GOMES deslocou para a viagem de Nuno Tristão o encalhe (destruição) da caravela e a ultrapassagem para a de Valarte. O encalhe da caravela não foi porém no Rio do Lago, mas sim no Gâmbia.
-Valarte ficou aquém de Nuno Tristão, e ao norte de Niumi - DIOGO GOMES errou.
Como quer que seja, os argumentos extraídos de ZURARA no respeitanteà viagem de Valarte são suficientemente concludentes para localizar o seu termo entre a Ilha da Palma e o Rio de Lago. Há confusão manifesta em DIOGO GOMES.
Ocorre agora uma dúvida - assente que há confusão no relato de DIOGO GOMES, poder-se-á atribuir alguma importância à sua informação tendente a mostrar o Niumi - mais em especial o Jumbas - como términusde Nuno Tristão? Bem claramente demonstrámos, após a devida análise, que igual conclusão se extrai de ZURARA, pelo estudo combinado do relato que faz das viagens de Nuno Tristão e Estêvão Afonso. Fo imesmo por essa análise que começámos, e só no fim se apresentou o texto de DIOGO GOMES, como comprovação.
Quando duas fontes, uma mais segura que outra, se acordam, creio que não há razão para duvidar da menos segura; pelo contrário, ela fica verillicada no ponto em que há acordo. Significa isto que o relato de DIOGO GOMES tem certamente utilidade - mas necessita de ser empregado com a devida cautela.
Após tanta discussão chegou a altura das conclusões.
Nas primeiras viagens após a descoberta do Senegal as relações comos indigenas estavam-se manifestando francamente más. Os escravos capturados eram escassos, comparados com os obtidos na Mauritânia. Os negros mostravam-se aguerridos, e a mortandade entre os tripulantes dos navios era bastante grande, mercê dos ataques com frechas ervadas. Urgia mudar de orientação, e obter por meios pacíficos o que até ai senão conseguira.
Com este fim partiu a expedição onde Valarte embarcou. O seu objectivo era estabelecer as pazes com urn dos chefes da região do Cabo Verde - o Bor-Damel, o Bor-Ba-Sine ou o Bor·Salum. A caravela passou além da Ilha da Palma e chegou a terra do Bor-ba-Sineou do Bor-Salum, voltando sem que se conseguissem firmar as relações de amizade, ficando por lá Valarte e alguns portugueses, cativos ou mortos.
☻ 1447 - Para aproveitar a boa vontade, que os habitantes das margens do Rio do Ouro mostrarão a Gomes Pires quando ultimamente alli esteve, lhe deo o commando de duas Caravelas (1), e o mandou estabelecer com eles hum commercio regular. Chegou elle ao Rio, e em breve conheceo, que os Mouros só buscavão engana-lo, armando-lhes ciladas para o surpreender; de que irritado, assaltou as suas Aldeas, e cativando oitenta pessoas, recolhendo-se a Portugal.
(1)Faria , tomo l.º da sua Asia, Parte 1.ª - Barros, Cap. 15 da Decada 1ª, L.º 1.º
☻ 1447 - Nao sendo possível, em consequencia deste acontecimento, organizar o commercio dos escravos com os Mouros do Rio do Ouro, e sabendo o Infante que os de Meca (ou Meissa), cidade situada entre os Cabos de Guer, e de Nâo,na Lat. N. 30º 5’ e Long.8 50', desejavão a amizade, e commercio dos Portugueses, mandou em essa comissão Diogo Gil (1) homem experimentado, por Commandante de huma Caravela, e com elle por interprete João Fernandes, celebre pela sua habitação voluntaria entre os Azenegues. E como em Portugal se achavão dezoito Mouros captivos naturaes de Meca, que offerecião por si huma certa quantidade de Negros, o entregou o Infante a Diogo Gil, para que os resgatasse.
Chegado elle ao Porto do seu destino, e tendo recebido cincoenta Negros pelos dezoito Mouros, sobreveio tamanha travessia, que se fez á vela, deixando em terra a Joâo Fernandes, e voltou para Portugal, trazendo  ao Infante o primelro Leão, que veio daquele Paiz, o qual Infante enviou de presente a hum Fidalgo inglez seu amigo , que assistia no Principado de Walles.
(1)Barros (a quem seguem Faria, e Soares da Silva nos lugares já citados) colloca esta viagem, e a seguinte de Fernáo Affonso a Cabo Verde no anno de 1448; mas parece-me que hanisto manifesto engano, pois diz (pag. 30), que neste anno (1448) El·Rei D. Affonso sahio da tutoria do Infante D. Pedro seu tio, e houve inteiramente posse de seus Reinos em idade de dezasete annos. Eis aqui este acontecimento, Ségundo Ruy de Pina na Chronica d'El-Rei D. Affonso, Capitulo 86. Cumprindo El-Rei quatorze annos no mez de Janeiro de 1446, celebrárão-se no dito mez Cortes Geraes em Lisboa, e alli lhe entregou o Infante D. Pedro mui livremente, e sem cautela e Regimento. Concluido este Acto, e achando-se El-Rey na sua Camara com seu irmão o Infante D. Fernando, e os infntes D. Pedro, e D. Henrique, e outras Personagens, pedio ao Infante D. Pedro, que até nisto poderia fazer, elle inteiramente mandasse, e fizesse em seu nome o que dantes fazia. Tres dias depois fez o Doutor Diogo Affonso, em nome, e na presença d’El-Rey, em outra sessão das Cortes, huma Declaração solemne nesta Real resolução.
Continuou o Infante segunda vez na Regencia do Reino, e ocorrendo os memoráveis sucessos, que as Historias referem, e não são do objecto destas Memorias, largou de todo o Governo a El-Rei em .Maio do anno seguinte de 1447, senão foi antes; porque neste mez he que El-Rei em Santarem tomou sua casa, e sua mulher junlamente, e já o Infante se tinha de facto dimittido de todos os negocios da Regencia, não querendo assignar Diploma algum.
A' vista desta passagem de Ruy de Pina fica evidente, que a data das viagens de Diogo Gil, e Fernão Affonso, que Barros, e os seus seguidores põem no anno de 1448, devem recuar-se ao anno antecedente pelos seus proprios fundamentos.
☻ 1447 - A fama dos descobrimentos das novas regiões, e extranhos Povos, que os Ponuguezes sucessivamente fazião, atrahia a Portugal muitos homens notaveis, curiosos de cousas tão extraordinarias, e entre estes veio hum Gentil-Homem da Camara d’EIRei de Dinamarca, e por elle recommendado ao Infante; os nossos Historiadores lhe chamâo Balart, corrompendo talvez o nome. Este Fidaigo ardia em desejos de viajar na Costa d' Africa, para examinar de perto as maravilhas, que entre os gelos da sua patria ouvia relatar daqueles climas, em que as arvores nunca se despojâo da sua folhagem, e as producções da natureza são totalmente diversas.
O Infante mandou logo armar hum navio, cujo cornmando deo a Fernão Affonso. Cavalleiro da Ordem de Christo, que levava huma mensagem ao Soberano de Cabo Verde; e com elle se embarcou Balart, cuja curiosidade obrigou Fernão Affonso a fazer huma viagem costeira até ao Cabo para lhe ir mostrando todas as Bahias, Portos, Rios, e Promontorios já descobertos; e por esta causa, e por alguns ventos contrários gastou seis mezes na jornada,
Chegando ao Cabo, logo que os Negros virõ os navios, sahirão a reconhece-lo, em som de guerra, em suas Almadias, mas explicando-lhes os interpretes o verdadeiro objectivo da viagem, e informados dos presentes para o seu Principe, foram avisar o Governador da terra, por estar o Rei dalli oito jornadas occupado em huma guerra no sertão. Veio elle á praia receber em ceremonia a João Affonso, e a Balart, e alguns dentes de elefante dos quaes maravilhado o Dinamarquez, offereceo-lhes grande preço, se lhe mostrassem hum destes animaes vivos, ou lhe trouxessem a pelle, ou a ossada de algum. Os Negros, cobiçosos do premio, prometêrão tudo; e três dias depois o vierão chamar, para que fosse a num certo lugar, onde tinhão hum elefante vivo. Balart, sem mais consideração, nem receio, partio na lancha (única embarcação do navio), só com os marinheiros que a remavam, e chegando a terra, onde as ondas andavam de lavadío, cahio um marinheiro ao mar no momento de tomar huma cabaça de vinho de palma, que lhe dava um Negro; e querendo os companheiros recolhe-lo, foi tal a revolta, que se atravessou a lancha, e foi á costa. Os Negros vendo os Portuguezes em estado de não poderem defender-se, nem ser socorridos, derão sobre elles, e os matarão a todos, excepto hum, que se salvou a nado.
Assim acabou este ilustre Estrangeiro ás mãos de bárbaros traidores, sem que Fernão Affonso podesse tomar deles justa vingança, porque nem eles tornarão mais a bordo nem tinha outra embarcação, em que desembarcasse. Esta desgraça fez com que se recolhesse a Portugal.
Em 1447, já reinava D. Afonso V, Fernando Afonso, cavaleiro da Ordem de Cristo, e o nobre dinamarquês Valarte (ou Abelharte) são massacrados e os seus homens em Baol, uma localidade entre a ilha da Palma e o atual rio Jumbas. Paradoxalmente, esta viagem constituiu a primeira missão henriquina com um objectivo diplomático a sul do Senegal – encontrar um rei cristão ou mesmo Preste João que se aliasse ao rei de Portugal.
PEDRO AFONSO (?) e o dinamarquês VALLARTE vão a Caior (?), ao Sine(?) ou ao Salum(?), sendo o segundo morto ou feito prisioneiro. VALLARTE apareceu em Portugal recomendado pelo rei dinamarquês Cristóvão III. Sobrinho e sucessor de ErIk VII (da Pomerânia) o qual havia casado com D. Filipa de Lencastre, sobrinha da Rainha de Portugal sua homónima e, consequentemente, prima direita do Infante D. Pedro.
Conta Diogo Gomes:
«Ouvindo o senhor infante a má nova da morte dos seus christãos (Nuno Tristão e os outros) ficou mui triste. E estava então de visita no seu palácio um certo nobre do reino da Suécia, que veiu a Portugal para se fazer cavaleiro no ultramar em Africa, cujo nome era Ábelhart (Vallarte). Desejando ver terras estranhas, e principalmente Guiné, pediu ao senhor infante que o mandasse áquellas regiões. E o senhor infante cedeu ao pedido d'elle, deulhe uma caravella armada com alguns nobres da sua corte.
Estes navegaram ainda alem do logar já dito, onde os christãos tinham sido mortos. E acharam os pretos com almadias armadas, mais de trezentas, com as suas setas venenosas, e pelejaram com os christãos e ficaram muitos mortos e quasi todos feridos, excepto três rapazes. E sobrevindo vento forte foram levadas para o mar quebradas as ancoras e rotos os cabos, quasi por milagre de Deus. E na caravella estava um certo ancião gravemente ferido, grande marinheiro. Conhecendo que ia morrer disse aos meninos: depois que eu morrer ide para o norte com a vossa caravella e encontrareis o reino dos christãos.
Muitos dos christãos que estavam feridos com veneno morreram, e por milagre de Deus estes três rapazes lançaram ao mar os cadáveres d'elles, vendo sem temor de que modo os corpos desciam á profundeza, e assim fizeram também ao velho marinheiro. Quando elles, porém, entraram no grande mar oceano, seguindo o ensinamento do ancião, sem vista da terra nem das ilhas, vieram por instincto de Deus ter a Portugal.
E quando avistaram terra saiu-lhes ao encontro um certo corsário com muitos navios, chamado Maclán de Trapana, e um dos seus navios menores chegou á caravella dos meninos, e entraram n'ella, e acharam aquelles três meninos e ficaram muito admirados. E isto era ao pé do Cabo de Pichei, a 7 léguas de Lisboa. O corsário tripulou a caravella e dirigiu-a para Lisboa com os meninos
«Indo nós próximo da margem avistámos duas almadias que iam no mar. E puzemo-nos entre élles e a terra, e navegámos para elles, e em cada uma das almadias estavam 38 homens. E o interprete chegou-se-me e segredou-me que ali estava Besêghichi, senhor d'aquella terra e homem medroso de que já acima falámos. E eu fiz com que elles entrassem na caravella, e dei-lhes de comer e beber e presentes, e disse-lhes, como se não soubesse que o senhor delles estava ali, para o experimentar: esta terra é Beseghichi? E elle mesmo disse: Assim é. E eu disse-lhe: Porque é elle tão mau para os christãos? Era melhor para elle fazer pazes com os christãos, e que uns e outros trocassem as suas mercadorias, e teria cavallos, etc, como faz Burobruck e Badamel e outros senhores dos negros. E digam-lhe lá que eu vos tomei n'este mar, e que por amor d'elle vos deixo ir livres para terra. Ficaram muito contentes; e disse-lhes que entrassem nas suas almadias; e entraram. E depois de todos estarem nas suas almadias disse então ao senhor: «Beseghichi, Beseghichi, não julgues que te não conheci; certamente eu poderia fazer de ti o que quizesse. E visto que te fiz bem, tu agora faze o mesmo aos nossos christãos».E assim cada um de nós seguiu o seu caminho.»
Valarte e Fernando Afonso
Viagem descrita por ZURARA (Cap. LXIV), BARROS (Déc. I. Liv. I.Cap. XV e DIOGO GOMES.
Indicações principais:
1-   A expedição tinha· por fim estabelecer relações amistosas comuro chefe da região do Cabo ·Verde.
2-   A caravela passou para sul da Ilha da Palma (Gorea).
3 - O ténninus era denominado pelos indígenas Abram e ficava junto de uma ponta.
4 - O Governador da terra chamava-se Guitenya ou Guitanye. Outros indivíduos importantes tinham os nomes de Satam, Minef e Amallam.
5 - O grande rei da região era Boor, e estava a cerca de 3 dias de viagem do local.
BARROS
Resumo de ZURARA. Apenas difere em chamar Farim ao Guitanye,por ser o Governador da terra.
DIOGO GOMES
1 - A caravela de Valarte foi além de Nuno Tristão.
2 - Os indígenas que atacaram Valarte eram do mesmo agrupamento triboa! dos que mataram Nuno Tristão, sendo o seu chefe, nos dois casos, o Nomimans, senhor da margem norte do Gâmbia junto da foz.
Interpretações principais de historiadores e investigadores: sobre otérminus:
a) 1925 - CHARLES DE LA RONCIÈRE (B 32) - O Guitanye eraum vassalo do Imperador deMali (Bormeli).
b) 1938 - JOÃO BARRETO (B 4) - Margem direita do Gâmbia.
c) 1943 - DAMIÃO PERES (B 30) - Rio Gâmbia.
d) 1945 - MACALHÃES GODINHO {B 25) - Entre o Cabo dos Mastros e o rio de S. Domingos, provàvelmente este.
e) 1946 - A. TETXEIRA DA MOTA (B 33) - Local entre a llbada Palma (Gorée) e o rio Jumbas.
f) 1946 - JOSÉ DE OLIVEIRA BOLÉO (B 28) - Rio de S. Domiogos.
ZURARA não indica nenhuma distância; fornece porém alguns topónimos e antropónimos que permitem apurar alguma coisa. No entanto só muito recentemente eles foram aplicados para esse fim.
C. DE LA RONCIÈRE(a), sem apresentar argumentos, afirmou ser o Guitanye um vassalo do Bormeli, sendo este o Boor de ZURARA.
JOÃO BARRETO (b) utilizou pela primeira vez o relato de DIOGO GOMES, fazendo notar que, por ele, o ataque a Valarte se teria dado na margem direita do Gâmbia.
Foi porém DAMlÃO PERES (e) que procurou utilizar oom maior fundamento esse relato. Entende que o «mais além» significa que Valarte subiu o Gâmbia, em maior extensão do que Nuno Tristão. Como RONCIÉRE afirmava ser o Boor o Bormeli, e DIOGO GOMES dizia dominar este na margem direita do Gâmbia, julga este facto uma confirmação da estadia de Valarte nesse rio. Além disso vê no local Abram de ZURARA a aldeia de Habanbarranca de DUARTE PACHECO, nas imediações ainda do Gâmbia.
MAGALHÃES GODINHO (d) entende que o rei que Valarte procurava era o imperador mandinga. Acha plausível a hipótese de DAMlÃO PERES, se bem que lhe pareça mais seguro afirmar que o insucesso de Valarte teve lugar entre o Cabo dos Mastros e o R. de S. Domingos. A designaçãode Farim, aplicada por BARROS, levaria mesmo a supor tratar-se deste último rio, pois VALENTIM FERNANDES diz ser senhor dele o Farinbraço, de origem mandinga. OLIVEIRA BOLÉO (f) também se inclina para esta hipótese.
No nosso trabalho (e) pudemos desfazer alguns equívocos destes últimos investigadores:
a) Deve-se notar que o objectivo de Valarte era um rei da região do Cabo Verde, conforme revela ZURARA. Este não refere também rio algum.
b) O termo Habanbarranca de DUARTE PACHECO não é identificável com Abram; trata-se de uma referência aos Bambaras ou Banbarrancas, que comerciavam em ouro. Abram não tem relação com a língua mandinga.
c) Os termos Guitanye, Satam e Minef não se aparentam como sendo da língua mandinga, o que portanto leva a supor que Valarte não chegou ao Niumi.
d) O Boor de ZURARA não é o Bormeli, mas sim um dos vários chefes jalofos ou sereres da costa (lbor Damel, Bor-ba-sine, Bor Salum,por exemplo, ou ainda o Bezeguiche).
e) A aplicação da designação de Farim ao Guitanye, por BARROS, não passa de uma ilacção, pois os outros antropónimos provam não se tratar de mandingas. A identificação destes deve fomecer a solução do problema; cremos não errar em afirmar serem termos jalofos ou sereres.
f) A existência de vários farins na região entre o Gâmbia e o Geba tomaria difícil apurar de qual se tratava - a ser verdadeira a afirmação de BARROS. Por isso não se pode afirmar que fosse o farinbraço do R. de S. Domingos.
g) Em nosso entender Valarte não passou da região dos jalofose sereres, tendo portanfo atingido um local entre a IIha da Palma e o R. Jumbas.

h) O facto de DIOGO GOMES afirmar que Valarte passou além de Nuno Tristão, explica-se facilmente por uma confusão com a viagem de Estêvão Afonso. Ele não fala desta, e tudo leva a crer que resumiu e baralhou em duas os sucessos de três expedições diferentes.



Barreto, João, História da Guiné 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 41








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