«Neste
anno fez Luiz de Cadamosto a sua segunda viagem em huma caravela, acompanhado
de outra em que ia António de Nola, e de outra do Infante D. Henrique, tudo com
licença, e aprazimento deste Principe. Sahírão de Lagos no principio de Maio.
Na
altura de Cabo-verde descobrirão
quatro das ilhas, que do mesmo cabo se denominão, e diz Cadamosto, que outros, que depois ali forão, as reconhecerão, e
acharão serem dez, entre grandes, e pequenas, e todas desabitadas. Das
quatro que agora se descobrirão, derão á primeira o nome da Boa-vista por ter sido a primeira que
naquelles mares avistarão; a outra (que lhes pareceo a melhor das quattro),
chamarão de Santiago. As outras duas,
a que Cadamosto aqui não dá nome, serião provavelmente a de S. Filippe e de S. Christovão, que também se chamou do Sal. Parece que todas forão descobertas no dia 25 de Julho.
Deixadas
estas ilhas, vierão em demanda do Cabo-verde.
Tocarão o lugar das duas palmas
(entre o Senegal e o Cabo), assim chamado das que ali collocou ou designou
Diniz Fernandes, como marco para denotar o sitio em que os povos Azenegues, se
apartão dos negros idolatras. Forão ao Gambia, e entrarão por elle mais de 60
milhas, até o senhorio de Battimanza, aonde estivarão 11 dias, permutando as
fazendas, que levavão, por ouro, e escravos.
Do
Gambia, navegando ao sul, descobrirão o rio que chamarão de Caramanza, do nome do senhor, que ali
governava, o qual ficava 25 léguas ou cem milhas, alem do Gambia. O seu nome,
segundo Damião de Góes, era Rha. D'aqui correndo sempre a costa no rumo do sul,
descobrirão, a cousa de 20 milhas de distancia, hum cabo a que derão o nome de Cabo-vermelho, pela apparencia da çôr da
terra (ou Cabo-roxo). Pouco adiante
chegarão a hum rio, que denominarão de Santa-Anna.
D'aqui navegando descobrirão outro rio, a que derão o nome de S. Domingos, e por estimativa julgarão
distar do Cabo-vermelho obra de 55 a 60 milhas. Continuando a navegar mais huma
jornada pela costa, descobrirão outro rio grandíssimo, que tinha na bocca mais
de 20 milhas de largura. Este se ficou chamando o Rio Grande. Defronte delle avistarão ao mar algumas ilhas, que
estarião a cousa de 30 milhas de distancia da terra.
«Rio Gambia, denominado pelos
oriundos Badiman; o Rio Grande, que comparo
com o Ganges, pelas suas muitas bôcas, caturhamado pelos naturaes do
interior Comba, (onde he
situada a nossa Colonia de Bissáo) e outros mais…»
DESCRIPÇAO
DE SERRA-LEOA E SEVS
CONTORNOS. ESCRIPTA EM DOZE CARTAS A' QUAL SE
AJVNTÃO OS TRABALHOS DA COMMISSÀO-MIXTA PORTUGUEZA E INGLEZA, ESTABELECIDA
NAQUELLA COLONIA. O. D. C. À SOCIEDADE LITTERARIA E PATRIOTICA
Desta
paragem voltando ao reino fizeram caminho por aquellas ilhas, e observarão que duas
dellas erão grandes, e habitadas de negros, e as outras duas mais pequenas; mas
não se podendo entender com os habitantes, continuarão viagem para Portugal.
Vê-se
pois, que nas duas viagens, em que foi Cadamosto, se descobrio a costa desde o
rio Barbacim, 60 milhas ao sul de Caboverde, até o Rio Grande, e no mar as
quatro ilhas de Cabo-verde, e as outras quatro, de que acabamos de fallar, e
que são sem duvida as que formão o archipelago dos Bissangos.
Os
nossos navegadores denotavão a embocadura do Rio Grande em 11° de lat.
septemtr., e parece que o remontarão por espaço de algumas 90 léguas até
chegarem a huma cataracta, que os não deixou hir avante.
Pelo
tempo adiante se fundarão nas suas margens alguns estabelecimentos portuguezes.
(2.ª
Relação das navegações de Cadamosto — Cordeiro Hist. Insulan.)»
Índice chronologigo das navegações, viagens, descobrimentos
e conquistas dos portuguezes nos paizes ultramarinos desde o principio do
século xv. Francisco de S. Luiz, Lisboa, na Imprensa Nacional, 1841, pg.31-33
«Em 1446 - Desejoso de descobrir novas terras, Nuno Tristão a quem se deveu o reconhecimento do Cabo Branco e de Arguim,
voltou novamente à costa da Guiné com uma caravela, «e passando per o Cabo
Verde, foi mais avante LX leguas, onde achou um rio em que
lhe pareceu que deveria de haver algumas povoações; pelo
qual mandou lançar fora dois pequenos bateis que levava, nos quais entraram 22 homens, scilicet:
em
um dez e no outro doze.
E começando assim de seguir pelo rio
avante, a maré crescia com a qual foram assim entrando,
seguindo contra umas casas que viam à mão direita. E acertou-se
que antes que saíssem em terra saíram de outra parte 12 barcos, nos quais seriam
até 70 ou 80 Guinéus, todos negros, e com arcos nas mãos. E porque a água
crescia, passou-se a além um barco de Guinéus e pôs os que levava em
terra, donde começaram de assetar aos que iam nos bateis.
E os outros que ficavam nos barcos trigavam-se quanto podiam
por chegar aos nossos e despendiam aquele mal aventurado almazem, todo cheio de peçonha sobre os corpos dos nossos
naturais. E assim foram seguindo, até chegarem à caravela que estava fora
do rio, no mar largo». (Azurara, cap. LXXXVI).
Morte de Nuno Tristão
Perseguidos sempre pelos indígenas, Nuno
Tristão e os seus companheiros passaram para bordo da
caravela, abandonando apressadamente os dois bateis.
Cortaram as amarras e fizeram-se ao largo. Dos
22 homens que haviam desembarcado, vieram a falecer 20, incluíndo
o chefe, João Correia, Duarte d'Holanda, Estevão de Almeida, Diogo Machado e outros escudeiros. Os seus cadáveres
foram
lançados ao mar.
A tripulação do navio era
diminuta e constituída apenas por 24 homens, o que demonstra
o arrojo dos nossos expedicionários.
Com a perda dos 20 tripulantes
ficaram a bordo apenas cinco pessoas: o escrivao do navio, Aires Tinoco, dois escudeiros, 1 grumete e 1 rapaz preto,
aprisionado dias antes. Aires Tinoco auxiliado pelo grumete, conduziu o navio, durante
dois meses em direcção
norte, pelo mar alto, até que já na costa de Portugal avistou um navio gaIego que o orientou em direcção ao Algarve.
Assim descreve o cronista Azurara a descoberta dos
rios
da
Guiné e a morte de Nuno Tristão em 1446. Em homenagem à
memória dêste valoroso cavaleiro, deu-se o nome de Rio Nuno (ou
rio Nunes) a um rio situado na actual Guiné Francesa, supondo-se que o
desastre teria ocorrido nesse local. Mas sôbre êste
ponto não podemos chegar a uma conclusão segura.
Como Azurara declara que o rio em questão ficava situado 60
léguas ao Sul do Cabo Verde, fácil seria determinar
na carta a sua posição, se pudessemos saber com segurança
o
valor métrico da légua a que Azurara se refere.
Mas já vimos atrás, em relação à Pedra
da Galé, que a contagem de léguas na Chronica não merece grande confiança;
ou temos de atribuir à légua de
Azurara uma extensão especial, não superior
a 2.500 metros. Sendo
assim, teríamos
de concluir que Nuno Tristão não passou além do rio Gâmbia, onde terminam as
60 léguas de Azurara, contadas do cabo Verde.
É curioso notar que esta hipótese
condiz com a descrição que Diogo Gomes
faz
dêste desastre.
Referindo-se à viagem de Nuno Tristão, informa o almoxarife de Sintra:
«Navegando além ainda foram à terra de Barbacins e acharam
um rio pequeno que agora chamam Ryo Nuno Tristan. Indo além viram muitos
negros daquela terra em almadias dentro no rio e fora no mar, com setas venenosas,
e
mataram
todos estes christãos. E tomaram a caravela ·e levaram-na para dentro do rio e destruíram-na.
E eu Diogo Gomes tive muito tempo depois uma ancora que me
deu de presente o rei dos pretos. E eu fui o
primeiro christão que fiz paz com eles, e este rei se chama Nomemains
(ª) e é senhor de muitas aImadias...»
Mais adiante, descrevendo a sua viagem no rio de Gâmbia, Diogo Gomes volta a falar
da morte de Nuno Tristão e dos homens de Nomemansa que teriam sido ou autores não só
dessas mortes, mas também dos desastres sucedidos aos
companheiros de Estêvão Afonso e Valarte. Nestas condições, Nuno Tristão não teria passado
além da Gâmbia e não seria o descobridor do Rio Grande de Geba, como geralmente se costuma
dizer.
Mas à morte dêste intrépido navegador refere-se também João de Barros.
Na Decada I (cap. XIV do liv. I) da Asia lemos o seguinte: «...O ano de 446 tornou
Nuno Tristão em uma caravela por mando do Infante a
descobrir mais costa...e como era diligente nestas coisas, passou
alem do Cabo Verde obra de sessenta e tantas leguas, até chegar onde ora chamam o rio
Grande (b)...por ter uma grande entrada... Alguns
dizem que este caso aconteceu em um rio a que ora chamamos de Nuno, que é alem do rio
Grande vinte leguas, e que desta morte de Nuno Tristão lhe ficou
o nome...»
Nestes termos, segundo a versão de João de Barros, a
caravela de Nuno Tristão teria alcançado em 1446 o rio de Geba, onde aliás
terminam as 60 e tantas léguas de 5.800 metros a contar do· Cabo
Verde. Mas, como vimos, esta informação está em desacôrdo com o relato de Diogo Gomes, que foi contemporâneo dos
acontecimentos, ao passo· que João de Barros escreveu 100 anos
depois.
Por tôdas estas razões parece que devemos reservar o nosso juízo
sôbre o ponto em questão, enquanto novos elementos de informação
não
venham esclarecer o caso.
(a)Nomemansa é
palavra composta de Mansa, que significa
rei, e de Nome,
designação da tríbu indígena, do grupo de mandingas, que habita as
margens do rio Gâmbia.
(b)Sob o nome de Rio
Grande designam os autores urnas vezes o rio de Buba ou de Bolola e
outras vezes, o rio de Geba ou de Bissau. Daqui resulta por vezes confusão na
interpretação dos textos antigos e até modernos. Na realidade trata-se de dois
braços de mar ou canais, o de Bissau e o de Buba. O primeiro vai até as
proximidades de Xime e ali recebe as águas de dois rios, o Geba que banha a povoação de Bafatá e
do rio Corubal, que percorre
muitos quilómetros no território francês e é chamado por estes Rio Grande, talvez por se ter sido
considerado outrora como continuação do Rio Grande de Bolola.
O canal de Buba, não
obstante ser menos largo e menos extenso que o de Bissau, é muitas vezes
designado pelo nome de Rio Grande, principalmente nos escritos e mapas
ingleses. Para prevenir possíveis confusões, neste nosso trabalho, evitaremos de empregar a designação de Rio Grande, preferindo
chamar rio de Bissau ou de Geba ao que banha estas povoações, e rio de Buba ou
de Bolola ao canal que começando ao sul da ilha de Bolama. vai até à povoação
de Buba. Este canal foi também conhecido pelo nome de Rio de Biguba.»
João Barreto, HISTÓRIA DA GUINÉ 1418-1918, edição do autor,
Lisboa, 1938, pg. 32-35
☻
Depois de invocar as cinco razões «por que o senhor Infante foi movido buscar
as terras da Guiné» o cronista Azurara fala-nos das sucessivas viagens de
caravelas ao longo da costa de África e conta-nos da aventura de NUNO TRISTÃO, «cavaleiro criado na câmara do
Infante. Que depois de por três vezes passar com a sua caravela pelo cabo
Branco, a quarta chega a um rio em que lhe pareceu que deveria haver algumas
povoações»... Corria o ano de 1446.
☻
Entremos agora no ano de 1446, ano de grandes acontecimentos.
NUNO TRISTÃO é pela quarta vez
encarregado de descobrir novas terras e como nobre cavaleiro que era cumpriu a
honrosa missão que lhe fora confiada, embora neste acto tivesse perdido a vida
com mais 19 companheiros. Transpôs Cabo Verde algumas léguas e atingiu os rios da Guiné. O primeiro
contacto com os guinéus não foi favorável, houve sacrifícios e não pequenos
da gente portuguesa.
Viagem descrita por ZURARA (Cap. x.xxxvr), DIOGO GOMES e JOÃO DE BARROS (Déc. I, Liv. I, Cap. XIV).
O
âmbito desta viagem tem provocado grande controvérsia, por estar ligada à
descoberta do território da actual Guiné Portuguesa. Os elementos principais
que podem permitir a identificação do términus são os seguintes:
ZURARA
1
-A viagem para o Sul terminou num rio.
2
- Esse rio distava 60 léguas do Cabo Verde.
3
- Os indígenas da região
usavam canoas rápidas e flechas envenenadas.
4
- Nuno Tristão e a maior parte dos companheiros foram mortos pelos indígenas.
DIOGO GOMES
1
- A caravela passou à terra dos Sereres e chegou à dos Barbacins.
2
- O ataque deu-se na terra dos Barbacins, num rio chamado NutioTristéüj ou
noutro perto e para Sul.
3
- Os indígenas usavam flechas envenenadas.
4
- O
rei dos indígenas atacantes chamava-se Nomimatu, e dominava na margem
norte do Gãmbia, junto da foz.
5
- Nuno Tristão e os companheiros foram mortos, sendo a caravela tomada.
JOÃO DE BARROS
1
- A caravela chegou ao Rio Grande (Canal do Geba), a sessentae tantas léguas do
Cabo Verde.
2
- Os indígenas usavam canoas rápidas e flechas envenenadas.
3
- Nuno Tristão e a maior parte dos oompanheiros foram mortos pelos indígenas. ·
4-
No
tempo de JOÃO DE BARROS (meados do século xvi) corria tambérn que Nuno Tristão
fora morto no Rio Nuno.
Vejamos agora como se têm
pronunciado os historiadores e investigadores quanto ao términus da viagem:
a) 1563 - ANTÓNIO GALVÃO
(B 18) - Rio além do Rio Grande (deve referir-se ao Rio Nuno).
bj
1567 -
DAMIÃO DA GOES (B 19) - Rio Tristão (Rio Nuno).
c)
1662 - MANUELDE FARIA ESOUSA (B 16) - Rio Grande.
d)
1762 - MANUEL PIMENTEL (B 31) - Rio Nuno.
e)
1841 -
VISCONDE DE SANTARÉM (B 1) - Rio Nuno.
f) 1844 - LOPES DE LIMA (B 24)
- Rio Nuno.
g)
1866 - A. MAGNO DE CASTILHO (B 11) - Rio Nuno.
h)
1868 -
R.HENRY MAJOR (B 26) - Rio Grande.
i)
1896/99 - C. R. BEAZLEY e E. PRESTAGE (B 2) - Rio
Nuno.
j)
1925 - CHARLES DE LA RONCIÈRE (B 32) - Rio
Gãmbia.
k)
1931 -
ARMANDO CORTEZÃO (B 12) - Rio Gnnde.
I)
1937 - JOSÉDEBRAGANÇA (B 35) - Rio Grande.
m)
1938 - JOÃO BARRETO (B 4) - Rio Gâmbia ou Rio Grande.
n)
1938 - DEMOUGEOT (B 13) - Impossibilidade deidentificação,mas o rio Nuno
não pode ser.
o)
1940 -
FONTOURA DA COSTA (B 18) - Rio Grande.
p)
1941 -
DUARTE LEITE (B 22) - Rio Gãmbia.
q)
1943 -
DAMIÃO PERES (B 30) - Rio Gãmbia.
r) 1945 - MAOALIIÃES GODlNHO (B 25) - Rio Gâmbia.
s)
1946 -
A. TEIXEIRADA MOTA (B ·33) - Niumi (talvez o R. Jumbas).
t)
1946 - A. J. DIAS DINIS (B 14) - Rio
Grande
u)
1946-A. J. DIAS DINIS (B 15) - Rio Grande.
v)
1946 -
M. C. BAPTISTA o-a LutA (B 3) - Rio Gâmbia.
w)
1946 – JOSÉ DE OLIVEIRA BOLÉO (B 28) - Considera difícil a identificação,
inclinando-se, porém, para o rio Gâmbia.
x)
1946 -
DUARTE LEITE (B 23) - Rio Gâmbia.
y)
1947-
MORAIS TRIGO (B 27) - Rio Nuno.
As opiniões expendidas
podem agrupar-se facilmente da seguinte maneirae
consoante os seguintes factos:
1
- Desde a Década I de BARROS (poucos anos depois da sua publicação perdia-se
em Portugal o rasto da Crónica de ZURARA) até à 1.ª edição da crónica de ZURARA
(VISCONDE DE SANTARÉM, descoberta do Códice de Paris) - Só é
conhecido o texto de BARROS, pelo que as opiniões se dividem pelo Rio Grande e
pelo Rio Nuno, com fundamento apenas no referido texto.
2
- Desde a 1.ªedição de ZUARA até à pulicação da História da Guiné de
JOÃO BARRETO - A indicação das 60 léguas além do Cabo Verde como términus da viagem (ZURARA),
vem confirmar a opinião de BARROS. No entanto continua também a persistir a
tese do Rio Nuno.
A
descoberta do códice de VALENTIM FERNANDES, com o relato de DIOGO GOMES, passa
despercebida aos que se ocuparam do assunto.
3
- Desde a publicação da História da Guiné de JOÃO BARRETO ao estudo
«Acerca da Cronica dos feitos de Guinee» de DUARTE LEITE - Pela primeira vez o
relato de DIOGO GOMES é trazido para a discussão, suscitando a dúvida entre o
Rio Grande e o Rio Gâmbia.
4
- Desde a publicação do estudo de DUARTE LEITE até agora.
A
fidelidade da narrativa de ZURARA é fortemente contestada. Verifica-se nas
distâncias um erro permanente para mais, atingindo por vezes valores consideráveis.
As opiniões inclinam-se para o rio Gâmbia; suscitam-se debates e de novo
aparece a tese do Rio Grande, e, mais uma vez, a doRio Nuno (baseada em lenda
nalú). É deste último período que nos ocupamos agora com mais pormenor.
DUARTE
t.EtTE (p), baseado em vários factores, mas principalmente no
facto, demonstrado por si, do constante erro para mais de ZURARA, pronunciava-se
pelo Rio Gâmbia. Tal opinião seguiu DAMlÃO PERES (q) acrescentando novo
elemento (acordo entre ZURARA e DIOGOGOMES quanto à margém de onde vieram os
atacantes). MAGALHÃES GODINHO (r) também se pronunciou de igual forma.
No
nosso trabalho (s), ainda que contestando alguns pormenores, seguimos, de uma
maneira geral, as conclusões dos três últimos investigadores,acrescentando à
discussão um certo número de elementos de carácter náutico-geográfico e
etnográfico, que não citamos para nos não alongarmos demasiado.
Em
nossa opinião o texto de BARROS não é mais que um resumo de ZURARA, sem
quaisquer elementos novos (àparte a referência às opiniões coevas), não
passando a sua identificação do términus da viagem
de uma ilacção baseada nas 60 léguas do cronista de quatrocentos.
Além
disso aprovámos:
a)
O carácter lendârio da tese do Rio Nuno,
demonstrado pela cartografia. Possivelmente a designação provém de outro
navegador como nome de Nuno (como já DUARTE LElTE sugerira).
b)
O
grande valor do relato de DIOGO GOMES, pela identificação do Nomimansa. Da cartografia e de antigos e actuais textos geográficos e
etnográficos mostrárnos tratar-se do Rei de Niumi, região entre o Gâmbia
e o Jumbas (aos elementos então citados acescentarnos que na carta de
PINET-LAPRADE, de 1865, B 6, págs. 4 - se encontra a citada região designada
por Gniome; de
DUARTE LEITE, B 23, págs. 130, nota 29,verificamos
estar provada a afirmação que fizemos de que o Guermimenso da edição de
CADAMOSTO de que nos servimos era uma deturpação de designação mais correcta da
1.ªedição, que agora sabemos ser Gnumimensso.
Por
esta forma ooncluínos então que NUNO
TRISTÃO deve ter sido morto no Niumi; em vez do Rio Gâmbia, inclinámo-nos porém
para a parte Sul do estuário Salum-Jumbas, mais possivelmente o Jumbas (o Rio
de Nuno Tristão de DIOGO GOMES deve ser o Salum). É esta a opinião que hoje
continuamos a sustentar.
Precisamente
na mesma altura em que era publicado o nosso trabalho, saía o de DIAS DINIS (t)
voltando à tese tradicional do Rio Grande. As bases da sua conclusão eram as
seguintes:
a)
É errada a afirmação de DUARTE LEITE de que as
distâncias indicadas por ZURARA estão sistematicamente eivadas de um erro por excesso.
- Deve portanto dar-se crédito às 60 léguas do cronista, queterminam
aproximadamentc no Rio Grande.
b)
O texto de BARROSé digno de toda a confiança na
parte em questão, e tem elementos estranhos a ZURARA, pelo que a sua opinião é argumento
decisivo.
c)
O texto de DIOGO GOMES não tem
qualquer valor, pois a sua relação foi decalcada pela de CADAMOSTO, e
possivelmente nem sequer aquele navegador henriquino esteve no Gâmbia. Não
prova portanto esse texto nada contra a tese do Rio Grande.
Pouco
depois, DIAS DINIS, numa tese (u) apresentada ao Congresso Comemorativo do V
Centenário da Descoberta da Guiné (Sociedade de Geografia de Lisboa), insistia
nas mesmas conclusões, tentando ainda numa comunicação especial (publicada
depois no jornal “AVoz”, de 22de Maio de 1946, Lisboa; transcrita no Boletim
Cultural da Guiné Portuguesa.,n.º 3, Julho de 1946, págs. 584-586), explicar a
designação do Rio de Nuno Tristãio (na terra dos Barbacins) de DIOGO
GOMES.
Nesse
mesmo Congresso BAPTISTA DE LIMA (v) seguia os pontos de vista de DUARTE LIMA;
e DAMIÃO PERES, inclinando-se também para eles.
OLIVEIRA BOLÉO (w) que, escreveu o seu trabalho antes da publicação dos
posteriores (r), não os oonhecendo portanto.
Já
em noticia do livro de DIAS DINIS (no «Boletim Cultural da Guiné Portuguesa»,
n.º 3, Julho de 1946, págs. 628-629) havíamos discordado da opinião do autor,
não considerando os seus argumentos suficiente para creditar a tese tradicional
de BARROS.
Foi,
porém, DUARTE LEtTE (x) quem os veio contestar a fundo, mantendo a sua opinião
inicial do Rio Gâmbia. Da análise que fez o trabalho de DIAS DINIS, concluíu:
a) ZURARA erra
sistematicamente para mais nas distâncias que indica. As 60 léguas do cronista
devem portanto reduzir-se.
b) A afirmação de BARROS
(términus no Rio Grande) não é de confiança, pois não são os elementos de que
serve além de ZURARA e que aliás nem sequer indica. Os seus erros na descrição
das viagens henriquinas são frequentes.
c) O relato de DIOGO GOMES
é absolutamente independente do de CADAMOSTO e de maior valor, na parte em
questão, que os textos de ZURARA e BARROS.
Já
na nossa citada notícia havíamos manifestado exactamente os mesmos pontos de
vista, sem os basear. Como a argumentação principal já ficou exposta por DUARTE
LEITE, desistimos de o fazer, limitando-nos a acrescentar apenas alguns
pormenores, para melhor esclarecimento:
De uma
caravela que estivesse no Canal do Geba por alturas do Enchudé não era possível
ver qualquer povoação na margem Sul. Essa margem, completamente alagadiça,
prolonga-se muito para o interior por uma extensa planície. Só no· fim dela e
na orla da floresra era possível a existência de povoações - mas já não podiam
ser vistas de bordo devido à distância e ao mangal. Aliás temos fortes razões
para crer essa região despovoada então. Por mais que procurássemos nos
antigos textos geográficos nada encontrámos sobre relações comerciais com gente
da margem sul, desde a boca do canal até Jabadá. E a população que lá está hoje
é recente, emigrada da margem norte à procura das férteis e extensas planlcies.
São todos balantas; e embora a região fosse pertença dos biafadas, estes não
parece que lá tivessem povoações, pois hoje não há disso vestígios e eles não
se interessam pela cultura do arroz como os balantas. Aliás pudemos ainda
apurar que os primeiros balantas que foram para o Enchudé e Jabadá, sofreram,
de vez em quando, os ataques dos biafadas, vindos do interior da Guinala e da
margem norte do Rio de Buba. Por todas estas razões consideramos fortemente
improvável que Nuno Tristão pudesse ter avistado de bordo povoações no Enchudé
ou nessa margem daí para juzante.
(a)O
termo Mansa não é privativo do Mandimansa. Nos textos coevos e
posteriores encontram-se, entre outros, os seguintes mansas, perfeitamente identificados: Gormansa (de Coli), Gnumimansa
(do Niumi), Uli Mansa (de Uli), Nhanimansa (de Iani), Casamansa (de Casa), Batimansa (de Bati), Mansa Folup (Rei dos Felupes), Combomansa (de Combo). Portanto o termo Nomimansa e Gnumimansa, nada tem de imaginário, antes corresponde a uma
perfeita realidade geográfica e social. Basta consultar os textos antigos para
o verificar. Aliás perguntando ainda hoje a qualquer mandinga ele explica que mansa ou mansó é a designação de qualquer régulo ou rei.
(b)Não
tem qualquer fundamento a confusão, que CADAMOSTO e DIOGO GOMES teriam
praticado, entre Nianimansa e Nomimansa ou Batimansa.
(c)É
absolutamente imdemonstrável que o relato de DIOGO GOMES seja cópia do de
CADAMOSTO; a independência entre eles não tem qualquer dificuldade de prova.
(d)O
relato de ZURARA aplica-se com muito mais facilidade ao estuário Salum-Jumbas
ou ao Gâmbia mesmo, do que ao Canal do Geba.
(e)A
confiança que merecem as afirmações
(e ilacções) de BARROS, neste capítulo, pode avaliar-se pela transformação do Guitenia de ZURARA num Farim (na viagem de Valarte). Creio ser
um exemplo bem comprovativo de que aquele
simplesmente extractou e interpretou a seu modo o texto deste. E esta
afirmação não pretende desabonar de modo algum o grande historiador
quinhentista: ele pretendeu simplesmente tornar mais claro o confuso e omisso cronista palaciano. Por
outras palavras: BARROS não se limitou a ser um compilador de notícias; quis
fazer aquilo que afinal nós hoje andamos a tentar – interpretar ZURARA.
Por
tudo isto manemos a nossa opinião.
Mais
recentemente ainda, MORAIS TRIGO (y) veio reavivar a velha tradição do Rio
Nuno, baseado numa lenda recolhida entre os nalús de Cacine. Em nosso entender,
porém, o assunto deve ser mais largamente aprofundado, para procurar discernir
a origem da lenda, o seu grau de veracidade e sua expansão geográfica. À
primeira vista, porém, parece-nos que, admitindo-a, ela vem apenas confirmar
que o Rio Nuno foi descoberto por um navegador com esse nome, o que não quer
dizer que fosse Nuno Tristão.
Em nosso parecer,
portanto, o términus da viagem de Nuno Tristão foi o Niumi, inclinando-me ainda
para o estuário Salum-Jumbas (talvez o Jumbas), de preferência ao Gâmbia.
A
VIAGEM DE NUNO TRISTÃO (1446) (23)
Antes
de iniciar a discussão sobre o términus, transcrevem-se, para melllor
compreensão, os textos de ZURARA e BARROS nas partes que interessam a esta
viagem. De DIOGO GOMES faz-se desde já o extracto do respeitante às viagens de Nuno Tristão, Valarte e
Diogo Gomes.
ZURARA
CAP. LXXXVI (24)
Como
foi morto NunoTristam em
terra de Guinee
…«ca seendo este nobre
cavalleiro em perfeito conhecimento do grande desejo e vontade do nosso
virtuoso principe, como aquelle que de tam pequena idade se
criara em sua camara, veendo como se trabalhava de mandar seus navyos a terra
dos Negros, e ainda muyto mais avante se o fazer podesse, ouvyndo…
E
assy começarom a fazer vella, deixando porem os batees porque os nem poderom
guindar. E assy que dos xxii que sairom
fora nom escaparom mais que dous, scilicet, huu ANDRE DYAZ, e outro ALVARO DA
COSTA, ambos escudeiros do Iffante, e naturaaes da cidade dEvora; e os nove
e dez morrerom, porque aquela peçonha era assy artefficiosamente composta, que
com pequena ferida, somente que aventasse sangue, trazya os homees ao seu
derradeiro fim…»
(23) Desta viagem, como das seguintes, limitamo-nos a
presentar e discutir apenas o que tenha interesse para a localização dos pontos
atingidos. Abstemo-nos por isso de justificar as datas que seguimos, remetendo
o leitor para DUARTE LEITE, B29, e DAMIÃO PERES, B36. Igualmente não entramos
em pormenores sobre os sucessos de todas essas viagens exceptuando, é claro, os
que interessam ao fim em vista), a fim de não alongar desmedidamente este
trabalho.
(24) Segundo a edição de 1841.
BARROS, DÉCADA I, CAP.
XIV (25)
Como Nuno Tristão e
dezoito homens form mortos com erva de frechadas que houveram em hua peleja com
os negros em um rio de Guiné em que entraram…
O
ano de quatrocentos e corenta e seis, tornou Nuno Tristão em ua caravela per
mandado do Infante a descobrir mais costa além do que Alvaro Fernandes leixava
descoberto, que foi até o Cabo dos Mastos. E como era diligente nestas cousas,
passou além do Cabo Verde obra de sessenta e tantas léguas, té chegar onde ora
chamam o Rio Grande; e surto o navio na bôca dêle, meteu-se no batel com vinte
e dous homens, com tenção de entrar pelo rio acima. Descobriu algua povoação,
por ter ua grande entrada. A qual entrada fêz a tempo que a maré subia tam têsa
para dentro, que em breve espaço os afastou da barra um bom pedaço, té irem dar
em meio de treze almadias, em que haveria até oitenta negros, homens valentes e que se escolheram para aquêle feito,
como quem tinha primeiro visto o pouso do nosso navio e
depois a entrada do batel pelo rio.
Nuno Tristão, quando viu as almadias juntas e com sua
chegada se apartaram uas pera ua parte e outras pera outra, pareceu-lhe que, de gente bárbara e
não costumada a ver aquela maneira de hornens, fugiam para terra, porque os negros mostravam que se queriam acolher a ela. Pero, como viram o nosso batel no meio dêles, de maneira que uns ficavam abaixo e outros
acirna, remeteram a força de remos todo com ua grande grita, e lançaram sôbre êle ua chuva de frechas; assi repartidos e
destrados pera este modo de peleja, que, quando o nosso batel remava contra uns,
acudiam da outra parte outros, andando às voltas com êle de maneira que se hão os genetes com a gente de
armas. E como as frechas eram ervadas e
a fúria da peleja lhe acendia mais o sangue, começaram alguns dos nossos em barbascar e cair, que causou tornar-se Nuno
Tristão ao navio, a tempo que decia a maré.
Mas
pouco lhe aproveitou esta ajuda dela; porque
assi tinha lavrado a ervá, que primeiro
que chegassem ao navio, iam a maior
parte deles mortos, o que Nuno
Tristão sentiu tanto, que, entre dor e pçonha, também os acompanhou na morte.
Os
quais mortos foram João Correia, Duarte de Holanda, Estêvão de Almeida, Diogo
Machado, todos homens de sangue e que de moços se criaram na câmara do Infante,
e assi outros escudeiros e homens de
pé de sua criação, que com os mareantes podiam ser dezanove pessoas.E ainda
pera maior desaventura, de sete que ficavam,
dous entrando em o navio, per cajão ua âncora os feriu, de maneira que
acompanharam na morte os outros. Alguns dizem que êste caso aconteceu em
o rio a que ora chamamos de Nuno, que é além do Rio Grande vinte
léguas, e que desta morte de Nuno Tristão lhe ficou o nome que ora tem - de
Nuno. E o que neste caso se pode haver por mais maravilhoso, é que,
cortadas as amarras por não haver quem as levasse, não ficando em o navio mais
que um moço de câmara do Infante, chamado AIRES TINOCO, naturalde Olivença, que
viera por escrivão, com quatro moços, por espaço de dous
meses assi os ajudou Deus em governar o navio que
o trouxeram
a Lagos, não tendo nenhum dêles saber pera isso.
O
Infante, porque a êste tempo estava naquela vila, quando soube parte de tam
desaventurado caso, ficou mui triste, porque a maior parte dos mortos criara de
pequenos, e era prícípe muito mavioso pera os criados. Mas como em outra cousa
lhe não podia aproveitar, mostrou o amor que lhe tinha em o amparo dos filhos e
mulheres daqueles
que as tinham.
(25) Segundo a edição de 1945
DIOGO
GOMES (26)
(26) Segundo a tradução de GABRIEL PEREIRA, transcrita in MAGALHÃES GODINHO. B, 32, vol. I,
cap. IlI.
«Depois
de o senhor Infante ter sabido notícias tão horrendas mandou uma caravela
armada de paz e de guerra, indo nela por capitão o já referido Nuno Tristão que
havia estado nas terras dos Cenegas com outros nobres. De Portugal navegaram
directamente até Cabo Verde.
Avançaram
para além até uma terra de homens malvados a que dão o nome de Sereres.
Encontraram muitos deles na praia do mar com arcos e setas envenenadase não
quiseram eles falar com os cristãos.
Avançando
para além, navegaram por terra de Barbacinse descobriram um pequeno rio que
agora tem o nome de Rio Nuno Tristão. Indo além, depararam com muitos negros
dessa terra em almadias dentro do rio e fora dele no mar. Com setas envenenadas
mataram eles todos estes cristãos, tomaram a caravela, puxaram-na para dentro do
rio e fizeram-na em pedaços. Eu, Diogo Gomes, muito tempo depois, tive uma
âncora do rei dos negros que me fez presente dela. Fui eu também o primeiro
cristão que firmei com eles um tratado de paz. Chama-se esse rei Nome Mains e é
dono de muitas almadias.
Ao
ouvir contar as notícias desagradáveis da morte dos seus cristãos, o senhor
Infante ficou muito triste. Andava então pelo seu paço um certo fidalgo do reino
da Suécia que viera a Portugal para ser armado cavaleiro além mar, em África;
era seu nome Abelhart. Desejando ele ver terras estranhas e principalmente da Guiné, rogava ao senhor
Infante que o mandasse a tais paragens; anuiu o senhor Infante ao seu pedido e
deu-lhe uma caravela armada com alguns nobres da sua corte.
Navegando
eles além do referido lugar onde foram mortos os cristãos, descobriram mais de
trezentos negros com almadias armados com setas envenenadas; lutaram eles com
os cristãos e ficaram muitos mortos e os outros quase todos feridos, com
excepção de três moços. Sobreveio uma ventania e eles entraram pelo mar com as
âncoras quebradas e as cordas partidas, quase à mercê de Deus. Um ancião que
estava na caravela gravemente ferido e era grande marinheiro, sabendo que ia
morrer disse aos moços: "Depois de eu morrer, ide para o aquilão com a
vossa caravela e encontrareis um reino de cristãos". Efectivamente muitos
dos cristãos que haviam sido feridos morreram de veneno e por milagre de Deus
estes três moços lançavam os seus corpos ao mar sem escrúpulos, olhando para
eles a descerem às profundezas e assim fizeram ao marinheiro ancião. Quando
eles, porém, entraram no grande mar Oceano, seguindo os conselhos do ancião, sem
verem terra ou ilhas, ao-deus-dará, rumaram a Portugal. Tinham já terra à vista
quando veio ao seu encontro um corsário, de nome Machim de Trapana, com muitas
naus. Uma das mais pequenas delas, ao depararom a caravela dos moços, chegou
junto deles; entraram na caravela e deram com aqueles três rapazes que ficaram muito
surpreendidos. Era isto próximo do Cabo Espichel, a umas 7 léguas de Lisboa. O
corsário tomou conta da caravela e fê-la rumar para Lisboa juntamente com os
moços.
Não
muito tempo depois, o senhor Infante armou uma caravela de Lagos que tomava o
nome de Picanço e fez seguidamente DIOGO
GOMES capitão dela. Armou também outras duas caravelas para irem além. Fez
de Diogo Gomes o capitão-mor destas caraveIas e numa das outras ficou como
capitão JOÃO GONÇALVES RIBEIRO,
criado do Infante, enquanto na outra ficava FERNANDES DE BAÍA, escudeiro do mesmo Infante. E mandou-Ihes que fossem além
o mais que pudessem.
Assim
passámos o Rio de S. Dorningose outro grande rio que tem o nome de Fancaso ou
também Rio Grande, e tivemos ali grandes correntes de mar. Com a maré vazante,
o mar fez grande rebentação, a que chamam macaréu, e então não há âncora que
possa aguentar.
Por
tal motivo, os outros capitães e os seus homens ficaram muito receosos, por
julgarem que para além o mar todo era assim e reclamavam-me que voltasse.
No
meio da maré ficou o mar muito calmo. Vieram mouros de terra nas suas almadias
e trouxeram mercadorias próprias, a saber, tecidos de pano ou de algodão,
dentes de elefantes e uma quarta de malagueta em grão em casca, tal como
cresce. Com isso tive muita satisfação.
Parámos
aí. E não passámos além por causa das correntesde mar. E quando veio a maré
vazante aconteceu-nos o mesmo que antes e assim tivemos que regressar aonde
tínhamos saído. Tomámos terra num lugar perto da praia onde há muitas palmeiras
que tinham os ramos partidos e eram de grande altura, de tal modo que de longe pensávamos
que fossem mastros ou vergas de negros.
Fomos
ali e descobrimos uma terra espaçosa cheia de feno. Naquele campo, vimos mais
de cinco mil miongas, como se diz na língua dos negros, que são animais um
pouco maiores que veados e que ao verem-nos não tiveram qualquer receio. Ali
vimos saírem de um pequeno rio, coberto de árvores, cinco elefantes, três
grandes com dois mais pequenos que fugiam dos ditos animais.
Descobrimos
na praia do mar muitas tocas de crocodilos. E regressámos às naus. No outro
dia, tomámos o caminho de Cabo Verde e vimos uma grande embocadura de um rio
que tem três léguas de largura e entrámos nela. Pela grandeza, imediatamente
conjecturámos que fosse o rio Gâmbia, e assim era.
Entrámos
com vento de feição e de maré até uma ilha pequena que fica situada no meio do
rio e descansámos aí aquela noite. De manhã, porém, entrámos mais para longe e
deparámos com muitas almadias com homens que aos verem-nos fugiram, pois eram
os que tinham matado os cristãos acima referidos com o seu capitão.
No
outro dia, porém, para além de um cabo de rio, vimos gente do lado direito e
aproximámo-nos dela e fizemos pazes com eles. O senhor deles chamava-se Frangazick,
sobrinho de Farisangul, grande príncipe dos negros. Recebi deles 180
pesos de ouro em troca das nossas mercadorias, a saber, panos, manilhas, e outras
coisas. Disseram-nos ali por que é que os negros da margem esquerda não tinham
querido falar-nos e que tinham matado cristãos.
O
senhor daquela terra, porém, tinha um negro de nome Bucker que conhecia toda a
terra dos negros; reconhecendo que em tudo falava verdade pedi-lhe que fosse
comigo a Cantor. Eu propunha-me dar-lhe um manto e camisas e tudo o necessário
e o mesmo prometi também ao seu senhor e assim fiz.
Subimos
o rio e mandei um capitão com a sua caravela para um porto que ali há, de nome
Ulimansa e o outro ficou em Animansa. Eu subi o rio quanto pude e descobri
Cantor que é uma grande povoação próxima do rio. Por causa da espessura das
árvores que há de uma parte e de outra do rio as velas não puderam prosseguir. Eu
pus de fora o negro que nós tínhamos tomado a fim de manifestar aos homens
daquela terra que tinha vindo ali para negociar mercadorias. E assim vieram os
negros em enorme multidão.
Acordadas
pazes com eles, correu fama por toda a terra de que havia cristãos em Cantor e
acorreram de todas as partes até ali, a saber, do norte de Tambucutu, bem como
moradores do lado sul fronteiros à Serra de Gelei, tendo vindo igualmente
gentes de Quioquum que é uma grande cidade, cercada de muralhas de tijolo
cozido em forno.
……………………………………………
Isso
quis eu experimentar enviando Jacob, um índio que o senhor Infante nos tinha
entregado para que se entrássemos na Índia tivéssemos um língua para aquela terra.
Ordenei-lhe
que fosse a um lugar chamado Alcuzet com o senhor daquela região, onde de outras
vezes tivera na companhia de um cavaleiro, pela terra de Gelofa a fim de
descobrir a serra de Gelu e Tambucutu.
Esse
índio Jacob contou-me que Alcuzet é uma terra muito viçosa com um rio de água
doce e muitos limões que trazia consigo para mim. O senhor daquela terra mandou-me
uns dentes de elefante, um muito grande, e quatro negros que transportaram
aquele dente para a nau.
Vieram
assim em paz até às nossas naus e assim fiquei tranquilo da sua parte.
Depois
disto, fui à sua residência onde havia habitações de muitos negros. As suas
casas são feitas de canas marinhas cobertas de colmo. Fiquei com ele três dias.
Há
aqui muitos papagaios e muitas onças e ele próprio me deu seis peles de onça e
mandou matar um elefante e levar a carne às caravelas.
Aí soube eu a verdade
quanto a todo o dano feito aos cristãos: fora tudo obra de um rei chamado
Nomimans que tem a posse da terra que se estende por este promontório.
Esforcei-me
muito por estabelecer com ele relações de paz e mandei-lhe muitos presentes
pelos seus homens e pelas suas almadias que iam por sal à sua terra, pois o sal
ali é abundante e de cor avermelhada.
Muito
temia ele os cristãos por causa do dano que lhes fizera a eles e às caravelas,
como foi referido. Eu fui pelo rio em direcção ao Oceano até ao porto que está próximo
da embocadura do rio. Ele mandou vir ter comigo por várias vezes homens e
mulheres para me pôr à prova e saber se acaso lhes faria algum mal. Eu procedi diferentemente,
recebendo-os com afabilidade. Depois de ter ouvido que tal acontecera, o rei
veio à margem do rio em grande solenidade e sentando-se na margem mandou que eu
me aproximasse; isso eu fiz com os meus rituais, o melhor que pude.»
Resumindo:
os elementos que destas três fontes (27) se tiraram para a identificação do
local do ataque a NUNO TRISTÃO são os seguintes:
(27) Para abreviar
indicar-se-ão por Z, B e G.
1
- Deu-se num rio (Z, D) ou nas proximidades (G).
2
- Distância de Cabo Verde a esse rio: 60 léguas (Z), ou «sessenta e tantas» léguas
(e portanto no Rio Grande) (B).
3
- A caravela passou a terra dos Serreos, chegou à terra dos Barbacins
e atingiu um rio pequeno que veio a denominar-se Rio Nuno Tristão. O
ataque deu-se na terra dos Barbacins, não se percebendo porém bem se naquele
rio se noutro mais para o sul. (G).
4
- A caravela ficou ao largo, fora do rio (Z; na bôca, segundo B); Nuno Tristão
e a maioria dos companheiros, embarcaram em dois batéis (Z) (um, segundo B) e
começaram a subir o rio, ajudados pela maré(Z, B), que era forte (D).
5
- Dirigiram-se para umas casas que viam do lado direito (na margem esquerda do
rio portanto) (Z).
6
- Os negros atacantes vinham da margem direita do rio (Z).
7
- Os negros atacantes usavam embarcações mais rápidas que os batéis dos
portugueses (pois alcançaram-nos e chegaram mesmo antes à
margem esquerda) (Z). Usavam frechas envenenadas (Z, B,
G.).
8
- Os portugueses chegaram à caravela com a ajuda da maré, que já descia (D).
9
- Os portugueses abandonaram os batéis (Z) e cortaram as amarras da caravela (Z.
B).
10
- A caravela regressou ao reino (Z, B). A caravela foi tomada e destruída pelos
negros (G).
11
- No tempo de BARROS havia quem dissesse que o sucesso ocorrera no Rio
Nuno, 20 léguas para além do Rio Grande (Geba), e que por essa razão aquele rio
tomara tal nome (B).
12
- O rei dos negros que praticara o ataque chamava-se Mainse deu uma
âncora a Diogo Gomes (G).
13
- Os negros que atacaram Nuno Tristão, ou Valarte, ou ambos, eram da margem esquerda do
Gâmbia (G).
14
- O rei que atacou Nuno Tristão e Valarte era o mesmo,
chamava-se
Nomimans dominava junto da foz do Gâmbia (G).
Vejamos
agora qual o valor dêstes elementos e até que ponto concordam entre si.
Na análise a fazer deve ter-se em linha de conta
-
que as duas únicas fontes coevas são ZURARA e DIOGO GOMES;
-
que ZURARA extraiu o seu relato de uma outra fonte, como claramente se
deduz do início do capitulo «Oo, e como acho em tam breues palauras registado o
recordamento da morte de tam nobre caualleiro como foe aquelle Nuno Tristam,
cuja trigosa fim no presente capitollo fallar entendo»;
-
que DIOGO GOMES descreveu os factos
oralmente, já em idade avançada e muitos anos depois dos acontecimentos, a
MARTINHO DA BOÉMIA, e é verosímil que êste lhe tenha deturpado os dizeres aqui
e além;
-
que DIOGOGOMES faz manifesta confusão entre factos das viagens de Nuno Tristão,
Estêvão Afonso e Valarte:
-
que BARROS se deve ter guiado exclusivamente por ZURARA, pois limita-se
a omitir pequenas particularidades, acrescenta apenas que a corrente de maré
era forte, que vazava já quando os batéis regressavam à caravela e que dois
tripulantes foram mortos por uma âncora, e difere somente na indicação do
número de batéis (um em vez de dois). A afirmação de que o rio era o Rio Grande
apresenta-se assim como uma mera interpretação pessoal dos dizeres de ZURARA e
a alteração de sessenta para sessenta e tantas léguas como uma forma de acertar
a distância de acôrdo com essa interpretação. De BARROS apenas se
colhe portanto que no seu tempo havia quem julgasse os sucessos ocorridos no
Nuno.
Os
elementos atrás extraídos, bem como outras considerações a fazer, podem
agrupar-se em três categorias: náutico-geográíicos, cartográficos e etnográficos.
1 - ELEMENTOS DE CARÁCTER
NÁUTICO-GEOGRÁFICO
a) Distância além de Cabo Verde
Como
já se disse, é de crer que as «sessenta e tantas» léguas de BARROS não sejam
mais que urna alteração baseada em interpretação pessoal.
Este
investigador, estudando as distâncias referidas na Crónica de ZURARA, por comparação com as do Esmeraldo, chegou à conclusão de que todas
se encontram erradas por excesso (29).
As 60 léguas de ZURARA, a serem verdadeiras, vinham a situar o
local atingido por Nuno Tristão no Rio de S. Domingos (Cacheu) (do Esmeraldo,
caps, 28 a 30, obtêm-se 62 para uma rota ao longo da costa). Aplicando-lhe
contudo as correções de 23 % a 55 % as 60 léguas passam a 46 e 27. Entre
estas distâncias ficam incluídos os rios Gâmbia, Santa Clara e das Ostras
(êstes dois muito pequenos e de excluir), restando já de fora o Casamansa.
Como, porém, a segunda das referidas corrrecções foi tomada na hipótese mais
favorável (55 %, quando é maior que 55 %), é de admitir que a distância
provável se encurte ainda mais, e venha a incluir assim o estuário
Salum-Jumbas-Banjala.
Já
JOÃO BARRETO (pgs. 18 e 33) havia chamado a atenção para o exagêro das distâncias
de ZURARA, atribuindo o facto a erros sistemáticos do cronista ou a diferente
valor da légua de então. Não parece de aceitar esta última explicação, porquanto CADAMOSTO revela que ao tempo já a légua
portuguesa contava quatro milhas italianas (30), valor que persistia na época
em que DUARTE PACHECO escreveu o Esmeraldo e ainda persistiria pelos
dois ou três séculos seguintes.
A
indicação das 60 léguas fornecida por ZURARA exclui imediatamente a ideia de
o rio em questão ser o rio Geba ou o Nuno das cartas de hoje.
De Cabo Verde ao primeiro vão urnas 70 léguas
(ao longo
da costa) e ao segundo cêrca de 90. Não é portanto de admitir que o cronista,
que sempre exagera, neste caso particular ficasse aquém das distâncias reais
(LEITE, pg. 165). A análise do elemento «distância além do Cabo Verde» leva
portanto a situar o sucesso num dos braços do estuário Salum-Jumbas-Banjala, ou
no Gâmbia. (Para o Gâmbia o êrro seria de 50 %, pois a distância referida pelo
roteirista é de 30 léguas). Não se pode, porém, ligar demasiada
importância a tal indicação, porquanto o cálculo das distâncias, feito a ôlho
então, estava sujeito a grandes erros de estima, acrescendo ainda os que o
cronista podia cometer ao narrar os acontecimentos, o que na realidade parece
ter-se verificado, como se verá ao analisara viagem de Estêvão Afonso.
28) Os trabalhos onde mais minuciosamente vêm analisadas as viagens de que nos ocupamos são:
CORTESÃO (Armando), B 16.
BARRETO, B 6.
LEITE, B29.
PERES, B 36.
MAGALHÃES GODINHO, B 32.
Daqui em díante, ao apresentarmos a argumentação já empregada por alguns destes investigadores, fá-lo-emos referindo o seu nome seguido da página, que se entende ser destas obras.
(29) Conclue que o êrro varia entre 32 % e 60%. Cremos ter
havido um lapso na 3.ª e 4.ª linhas da tabela apresentada a pgs. 163, pois feitas as contas, os excessos são maior
que 23% e maior que 55%, e não maior que 44% e maior que 60 %, como lá vem. O érro varia portanto na realidade, na melhor
hipótese, entre 23% e 55%.
(30) Navegação 11, cap. VI: «do rio de Gâmbia até estoutro
de Casamansa, são cousa de vinte e cinco legoas, que fazem cem das nossas milhas•.
b) Natureza do rio
Têm
os investigadores procurado extrair dos cronistas indicações sôbre a natureza
do rio que permitam a sua identificação. Vagas como elas são, porém, têm-se
prestado a algumas erradas ilações e consequentes confusões.
Da
análise feita em a) devia-se limitar o estudo ao estuário
Salum-Jumbas-Banjala e ao Gãmbia. Mas, não sendo, como já se disse, a dislància
de 60 léguas elemento por si só capaz de resolver o problema, devem-se tomar em
consideração outros rios mais para o sul, incluindo os que, mais ou menos
tradicionalmente, têm sido apontados.
Da
descrição dos acontecimentos feita por ZURABA e BARROS deduz-se que o rio não
devia ser muito largo (a caravela ficou de fora; os negros partiram da margem
direita quando os portugueses se dirigiam para a esquerda, atingiram-na antes e
daí atiravam frechas, o que dá ao lugar um aspecto de pequenez).
DUARTE
LEITE, depois de uma série de eliminações, acaba por deixar apenas o rio dos Barbacins
e o Gâmbia, optando finalmente pelo último, «por facilmente acessível às marés,
circunstância apontada no relato da entrada de Nuno Tristão» (pg. 165). Não se percebe
bem se quere dizer que no rio se verificavam
correntes de maré ou que os navios nele podiam entrar, facilmente, com a ajuda
da maré. Em qualquer das hipóteses, nada se pode concluir, em nosso entender. Todos os
rios desta xonada costa africana estão sujeitos às marés (alguns mesmo não passam
de simples braços de mar; o Salum, que adiante veremos ser provàvelmente o
antigo Barbacins, como tal é considerado num estudo de etnografia local (31),
pois nele se verificam apenas as correntes de maré - exceptuando evidentemente
a época das grandes chuvas). Quanto ao acesso aos navios, se há conclusão a
tirar é que não era fácil, pois a caravela ficou ao largo; a subida em batéis
nada tinha de especial, tanto mais que parece ter-se efectuado próximo do
preamar (BARROS indica que a vasante já os ajudou a regressar à caravela, o que
no entanto ZURARA não refere).
Outro
facto que se tem prestado a erradas interpretações é o fenómeno do macareo. ZURARA
refere simplesmente que havia corrente de maré; BARROS acrescentou que era
forte. ARMANDO CORTESÃO (pg. 14) ampliou ainda os dizeres dêste,
associando-lhes o macareo. Por outro lado, e por raciocínio inverso, DUARTE
LEITE (pg. 165) aponta entre as razões que o levam a excluir da lista dos
rios possíveis o Rio Grande (Geba) baseando-se em que ZURARA cala o fenômeno do
macareo.
Quere-nos
parecer que nenhum dos dois investigadores está na razão. O macareo é fenômeno
que só se faz sentir para lá já do Impernal. CASTILHO (32) refere-se a ele na
descrição do fundo (leste) do estuário, atribuindo-o às coroas de Goiajé, baixos
que atravessam nesse local o rio quási de margem a margem, deixando apenas
um pequeno canal. Já no século XVI ALVARES D'ALMADA escrevia o mesmo, pois
também fala do fenómeno na descrição da parte do rio que fica a leste do Esteiro
dos Balantas (Impernal) dizendo dêle que é «encher êste rio lá em cima com
tres mares somente» (33). AZEVEDO COELHO tanbém é absolutamente dar
o nesse ponto (33a). Dt:ARTE PACHECO circunscreve igualmente o fenómeno ao
curso superior do Rio Grande: «acima das ditas ilhas (dos Bijagós)... (em
branco) leguas dentro deste Rio jaz um macareo (34).
CADAMOSTO, que esteve apenas na foz, não refere o rnacareo, mas sim arijeza da
corrente (35), principalmente no inicio da enchente {25). O primeiro a citá-lo
é DIOGO GOMES (36); da sua narrativa· não se depreende até que ponto subiu o
rio, mas adiante se verá que o discutido navegador era dado a ir
bastante por êles acima. Do exame da cartografia se conclue que o Rio Grande
foi depressa explorado até à confluência Geba-Corubal; numa carta de Benincasa
de 1471 já vêm figurados êstes dois rios, e na de Soligo (c. 1486) um deles já
tem o nome de Corbole. Sabendo que os progressos registados
em Benincasa foram devidos às navegações efectuadas até 1463, podemos deduzir
que nesta data já o Rio Grande fôra completamente explorado. Não é de rejeitar
a hipótese de que DIOGO GOMES tenha largamente contribuído para essa exploração;
antes pelo contrário, o facto de referir o rnacareo assim o faz supôr. De
CADAMOSTO sabemos de certeza - por êle próprio - que não passou da foz.
Tudo
isto leva a concluir que:
1.º
- Dos dizeres de ZURARA e BARROS não se pode inferir que no rio em questão havia
o macareo. O argumento de ARMANDO CORTESÃO, tendente a identificar com êsse rio
o Geba em virtude do fenômeno, não tem portanto valor. Admitindo, ainda, como
quere o referido investigador, que se tratava do macareo, o argumento por si só
não seria de aplicar apenas ao Geba. ÁLVARES D’ALMADA diz que no Rio da Furna
também se verifica o fenômeno (37). Ora como este rio vem logo a seguir ao Rio
Nuno, o argumento do macareo, por si só, levaria a identificar com aquêle, de preferência ao Geba, o rio onde se deu o
ataque, pois a tradicional ilação cartográfica seria assim reforçada. Com
efeito, nada repugnaria aceitar que o Rio Nuno fôsse inicialmente o Rio da
Furna, e que uma confusão cartográfica - de que se encontram fartos exemplos
nas imediações - teria deslocado a designação para o actual.
2.º-
O facto de ZURARA não referir o macareo nada prova, pois Nuno Tristão não se afastou
da foz do rio que começou a subir. Se fosse o Geba não podia sentir aí o
macareo; mesmo que os efeitos dêste se notassem na foz, seria ainda
necessário que se desse a coincidência de os acontecimentos se desenrolarem em
ocasião em que se verificasse o fenómeno. O argumento de DUARTE LEITE por si só
não pode levar a excluir o Geba; outros mais seguros há porém a aduzir, como se
verá.
Em
resumo: o argumento do macareo nada prova, porque dos
cronistas não se pode inferir que êle existisse. E a admiti-lo, a dúvida não ficaria
resolvida, mas circunscrita ao Geba e ao Rio Furna e tornar-se-ia necessário
recorrer a outros argumentos para a desfazer.
Não
se provando nada com a existência de marés, e não tendo valor o argumento do
macareo, só resta a guiar-nos quanto à natureza do rio a crença (já atrás
fundamentada) de que êle não seria muito largo.
Este
facto tem valor porque permite por si só excluir o Geba. Um navegador vindo do
norte, mesmo que não visse terra, seria levado a demandar a sua
entrada, pois a côr barrenta das águas indicar-lhe-ia a proximidade de um
grande rio. Viria assim a avistar a Ponta Caió, notando que a
costa prosseguia para leste; para o sul apenas numa muito restrita porção do
horizonte avistara terra, a parte norte da ilha da Caravela (a 20 milhas).
A
descrição de ZURARA não se coaduna com êste quadro. Como compreender
que a caravela não passasse da Ponta Caió e ficasse ao largo, quando com a
maior facilidade podia subir o rio por uma distância superior a 100 quilómetros
sem que as margens se aproximassem a menos de dez quilómetros? E como explicar
que os batéis se dirigissem para a margem esquerda (ilha Caravela),
ficando a caravela ao largo, quando era tão fácil a esta aproximar-se a pequena
distância? Muito menos ainda se pode compreender que durante esta manobra os
negros largassem da margem direita e atravessassem o rio em tôda a sua extensão
(cêrca de 35 quilómetros) para irem desembarcar na outra margem e daí
assetarem os portugueses.
Tudo
isto resulta absurdo lendo com atenção o relato de ZURARA.O quadro onde se deu
o ataque não tinha esta majestade, era muito mais reduzido a caravela de fora
do rio, e dos batéis a verem simultaneamente casas na margem esquerda e
indígenas na direita.
Poderá
objectar-se que os sucessos ocorreram para leste já do arquipélago
dos Bijagós, e que o cronista considerava a foz do rio entre a ilha de Bissau e
a Guinala. O ambiente continua a ser ainda demasiado amplo aí, para se coadunar
com o relato. Seria preciso passar bastante para lá da ilha de Bissau e do
lmpernal para encontrar quadro viável pela sua estreiteza; mas o rio teria sido
subido por muitas dezenas de quilómetros, e o cronista de maneira nenhuma
poderia dizer que a caravela ficara fora do rio. E além disso não se compreende
que ele não tivesse nenhuma palavra para a amplidão do estuário do Geba, o mais
largo de todos os rios descobertos em tempo do Infante D. Henrique, não
referisse a característica côr barreata das suas águas que já se nota muito ao
largo, calasse a existência do
arquiptlago dos Bijagós (LEITE, pg. 165),os vários esteiros e canais da margem
direita, a exuberância da vegetação, etc.
Excluído
o Geba, a aplicação do quadro de ZURARA aos outros rios desta zona de África
faz-se sem dificuldade. O Gâmbia é de facto demasiado largo perto da foz, mas
estreita subitamente, e ao gargalo entre St. Mary lsland e Barra Point pode
ajustar-se a descrição do cronista (38).
O
mesmo sucede em relação aos outros rios entre o Salum e o Nuno (excepluando, é
claro, os que, por demasiado pequenos, não passam de riachos) - Salum, Jumbas,
Banjala, Casamansa, Cacheu (S. Domingos), Bolola (Buba), Tombali, Cumbidjam,
Cacine, Componi, Nuno.
Recapitulando
o que até aqui se tem procurado deduzir: o argumento das 60 léguas (depois da
conveniente correcção) leva a situar o términus da viagem de Nuno Tristão num
dos rios que desembocam entre Punshavel (ou Sangomar) Point e Cape Bald; a
descrição de ZURARA pode aplicar-se a qualquer dêles. O Geba está além da
referida distância (mesmo não corrigida) e: não se afigura fácil que os factos nele
ocorressem como vêm no cronista. Os restantes oferecem um quadro adequado, mas todos ficam além da distância
corrigida (o Cacheu coincide aproximadamente com as 60 léguas não corrigidas e
o Casamansa fica aquém).
São
portanto os braços do estuário Salum-Jumbas-Banjala e o Gâmbia que até aqui se
apresentam como mais prováveis. Entre os primeiros e o último, aquêles
apresentam ainda uma maior probabilidade, por serem mais dificilmente
acessíveis a caravelas.
No
que se segue continuar-se-ão, porém, a tomar em consideração todos os rios
entre o Salum e o Nuno. A secular tradição, quanto mais não seja, obriga a
encarar tódas as hipóteses, principalmente as que se refiram ao Geba e Nuno.
(31) LAFONT, B 27
(32) CASTILHO, B 15, pg. t72.
(33) ALVARES D'ALMADA, B 2, pg. 32.
(33a) AZEVEDO COELHO, B 2a, fol s. 65-6.
(34} PACHECO PERIERA, B 34, Livro 1, Cap. 31.º
(35) Navegação Segunda, cap. VII.
(36) GOMES, B 25, pg.
81.
(37) ALVARES D'ALMADA, B 2, pg. 72: «quando enche he com a
agua, que se chama de Mocareo e
com dous ou tres mares fica a maré cheia; os quaes quando vem,
vem roncando, e se ouvem muito tempo antes de elles chegarem, como já se disse
do Rio da Degoula». Notar que o autor não refere o fenómeno ao Rio Graude, mas
sim ao Rio do Dregoula, troço
daquele que fica para lá do Esteiro dos Balantas.
(38) A configuração das costastorna muitas vezes difícil
marcar a linha da barra de um rio. É oque sucede com o Gâmbia. Podem-se considerar três linhas diferentes:
a
exterior (entre Punshavel Point e Bald Cape) de 27 milhas, a média (entre
Barrhadah Creek e Cape St. Mary) de 10 milhas e a interior (entre Barra Point e Bathurst) de pouco mais
de 2 milhas. Esta última constitui «the entrance of the river proper», como vem no African Pilot; as outras duas são o resultado da oonfiguração
especial da costa, formando uma baía no
fundo da qual desemboca o rio. Os ataques a Nuno Tristão, a
dar-se no Gâmbia e segundo a descrição de ZURARA, só podia ter lugar no
referido gargalo, pois pouco adiante já o rio atinge 7 milhas de largura.
«GAMBEA: Rio em a Costa de Guiné, caudaloso e navegável, per onde os nossos
vão ao resgate de Cantor, e o poeta em o C. 5. est. 10. o chama
curvo, per rasam das muytas voltas que faz. Os negros da terra o chamam
Gambu, traz mayor pezo de agua que o
Çanagá, e mtcyto mays profundo; perque se metem
nelle alguns rios barbaros muy caudaes, que nacem no sertam da tctm, chamada
Mandinga, que he provincia grandissima de negros, donde vem
o ouro à cidade de Tungubutu, que está tres leguas do
Çanagá, da banda do norte.»
MICROLOGIA
CAMONIANA, JOÃO
FRANCO BARRETO, IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA, BIBLIOTECA NACIONAL,
LISBOA, 1982, pg. 159
c) A âncora
Refere
ZURARA que, à largada, por falta de braços e oom receio das frechas, não puderam os portugueses meter dentro os ferros
da caravela. Cortaram as amarras e fizeram-se ao largo, abandonando também os
batéis. DIOGO GOMES diz que os negros conseguiram tomar a caravela,que depois
levaram para dentro do rio e destruíram, afirmando que o rei - com quem foi o
primeiro a fazer a paz - lhe deu uma âncora. Poderá à primeira vista parecer
que tal âncora era uma das da caravela de Nuno Tristão. Mas notando que DIOGO
GOMES, contra o que diz ZURARA, dá a
caravela por destruída, a dúvida surge, e ocorre preguntar se aquele não
teria misturado na viagem de Nuno Tristão acontecimentos de outras e vice-versa.
A dúvida transforma-se em certeza ao prosseguir na leitura, pois ao falar da
viagem de Valarte refere, com outras personagens, sucesso que ZURARA dá como relativo
ao retôrno da caravela de Nuno Tristão. A dcstruição da caravela deve portanto ser facto doutra viagem, e logo
lembra a expedição de nove navios que nesse mesmo ano largou do reino, chegando
às mesmas paragens, e de que uma caravela (do
bispo do Algarve) encalhou e foi abandonada. Já ARMANDO CORTESÃO (pg. 29) chamou
a atenção nara este facto.
A
elucidação dêste ponto assume importáncia, pois toma-se possível, como adiante
se verá, identificar o rei que entregou a âncora a DIOCO GOMES. Apurando
a que navio ela pertencia, talvez se consiga saber o términus de uma das
viagens de que nos ocupamos.
De
DIOGO GOMES - apesar de referir o facto como relativo a
NunoTristão - conclui-se que a ãncora pertencia a caravela ficada na posse dos
negros, o que, como já se disse, leva a crer tratar-se daquela que no mesmo ano
encalhou à entrada de um rio e pertencia ao bispo do Algarve.
Tendo
sido cortadas as amarras da caravela de Nuno Tristão pelos sobreviventes,
deduz-se que os ferros ficaram no fundo. E que lá devem ter ficado para sempre
é o que se afigura mais veroslmil. Que interesse teriam os negros em os
ir lá buscar? Saberiam mesmo êles - desabituados a ver tais navios e
desconhecendo provàvelmcnte o uso dos ferros – que estavam no fundo (se bem que
BARROS, ao referir que dois portugueses foram mortos por uma âncora, faça supor
que os nossos tentaram içá-los e um deles chegou a vir
a lume)? E ainda que o experimentassem, seriam capazes, com os seus fracos
recursos, de os rocegar e recuperar?
Do
passo de DIOGO GOMES não se pode concluir portanto que a âncora que lhe foi
oferecida pertencia à caravela de Nuno Tristão. Embora tal não íôsse
completamente improvável, é mais lógico supôr que ela estivesse
originàriamente no navio do bispo do Algarve, ou mesmo noutro que por lá
tivesse encalhado ou fôsse tomado pelos indígenas nos dez anos que mediaram
entre 1446 e a viagem de Diogo Gomes.
Este
elemento nada pemite assim concluir quanto ao términus atingido por Nüüo
Ttistão.
d) Dificuldades e
morosidade da navegação nas primeiras viagens paro o sul de Cabo Verde
Considera-se
ordinàriamente que o limite das viagens henriquinas foi a Serra Leõa,
atribuindo-se a sua descoberta a Pedro de Cintra. Assim o declara DUARTE
PACHECO (Liv. 1, Cap. 33). No entanto CADAMOSTO, no relato da viagem do
referido navegador, dá-a como realizada após a morte do Infante e apresenta-a
como a primeira que ultrapassou o Geba. O veneziano não é muito de fiar no que
respeita a primazias, pelo que se deve acolher com reserva esta última
asserção.
Em
todo o caso não temos provas de que em 1456 os portugueses já houvessern
descoberto para além daquele rio. A acreditannos em CADAMOSTO seria mesmo essa
data a do achado do Geba. Com os elementos que há actualmcnte deve ser dificiI
apurar tal questão.
As
razões do afrouxamento da actividade descobridora nos últimos dez anos do lnfante
D. Henrique devem ser de natureza vária. Apenas aqui nos interessa considerar
uma.
A
quem ronsultar uma carta hidrográfica da zona para o sul de Cabo Verde chamará a
atenção o longo espraiamento dos fundos e a existência de numerosos baixos a
grandes distâncias de terra. A linha das dez braças afasta-se cada vez mais da
costa à medida que se caminha para o sul e o a fastamento chega a atingir 40
milhas, por alturas dos Bijagós. Encontram-se fundos de 2 braças a 30 milhas de
terra!
Não
é difícil imaginar que nestas condições as primeiras viagens se haviam de
ressentir de considerável dificuldade e morosidade. Não se tratava
evidentemente de avançar simplesmente para o sul; para tal bastaria amarar-se e
progredir depois no rumo desejado. Nem isso seria facto que amedrontasse os
arrojados navegadores portugueses, que dispunham de meios e conhecimentos
ténicos para o fazer. A cabotagem não era uma medida de segurança, apenas uma
necessidade em vista do que se pretendia: conhecer a terra, os seus babilantes
e produções. E para o sul de Cabo Verde estendia-se uma rica zona de
exploração: numerosos rios, população densa, exuberância da natureza, riqueza,
enfim, desde a humana - o escravo – até à mineral - o ouro. Já não se tratava da
aridez das costas saharianas, nem da monotonia das praias entre o Senegal e o
saliente ocidental africano, despidas de desembocadouros
fluviais. A
grande diversidade dos povos - jalofos, sereres, barbacins, mandingas,
arriatas, felupes, cassangas, brames, biafadas, bijagós, etc. - todos de
línguas diferentes, obrigava a demoras para sucessivamente
poder
capturar exemplares e industriá-los como intérpretes (39).
Da
dificuldade de que se revestia a navegação costeira nesta zona, e da
conseqüente morosidade, foi testemunha CADAMOSTO. Diz êle que
«...a navegação por
esta costa, e para diante sempre foi de dia; lançando âncora tôdas as tardes,
ao sol posto, em dez ou doze braças de agos: affastados da terra quatro ou cinco milhas; e ao nascer do sol,
faziam-nos a véla tendo sempre um homem na gavea, e dous na prôa da caravella, a
fim de ver se quebrava o mar em algum lugar e assim descobrir algum cachopo».
(I.ª XXXVI ).
Para
o sul do Gâmbia
«...tínhamos contínuamente dous homens na popa, e hum sobre
o mastro; para descobrir os baixos, e outros bancos; navegando somente de dia com muito pouca véla, e com grande tento; e
de noute deitando ancora, e hindo sempre huma caravella após a outra,
segundo cahia a sorte diariamente; porque cada hum de nós teria querido que o companheiro fosse adiante». (II.ª, VI).
O
arquilpélago dos Bijagós, com o seu extensíssimo banco, constitui uma poderosa
barreira que não deve ter sido vencida de uma vez só, antes obrigaria a cautelosas experiências de
navegação e resultantes demoras. DUARTE PACHECO (Liv. I, Cap. 31.º) fala do arquipélago e do seu banco nos seguintes termos:
«Os baixos deste Rio [Grande] saem muito ao mar por espaso de trinta
e cinco leguoas & quem estiver as ditas leguoas em mar deste Rio & lhe demorar a dita boca em lesnordest achara sasenta braças defundo se
tomar sonda & aly achara no prumo huma area muito
mehuda sinsenta
& o piloto que este fundo achar deve conhecer
que anda encorporado nos baixos deste Rio & sendo caso que lhe há calmeo
vento e sentir que a forsa da maree he mete pera dentro tanto que forem vinte
& sinco braças estara 6 ou 7 leguoas
da boca delle & deue logo sorgir ou virar na volta do mar se o vento
for para isso rorque destas braças pera terra tudo he sujo de muitos arrecifes de
pedras que delles (uns) param sobre augua dalles (outros) nam; & pelo forte coso
que ha maree ahy tem muito asinha pode lansar qualquer nauio
nestes recifes honde se perderam como ja fizerom outros...»
A
costa para o sul até o Cabo da Verga continua a ser perigosa, com escolhos a 25 milhas da terra. Dela diz o
roteirista (I, 32.º) :
«...esta costa do Rio
grande alce o cabo de verga...he muito baixa e maa de conhecer & o fundo muito sujo & de grandes arrecifes de
pedra & muito perigoza que se não deue nauegar se
nom de dia & pousar de noyte & pera mais seguridade seja nauio pequeno
de vinte & cinco tee trinta tonees porque
sendo mayor correra risco de se perder...»
Em
1669 a navegação entre o rio Bolola e o rio Nuno ainda era considerada tão
difícil, que AZEVEDO COELHO refere, como prova, que só nessa altura se
descobrira o rio Tombali(40).
Qual
a maneira de ultrapassar os Bijagós? Já DUARTE PACHECO (I, 32.º ) fala nos dois
caminhos:
«Neste rio grande se
podem fazer dous caminhos para a Serra Lyoa hum delles he per dentro das Ilhas
que aa boca delle estam & por aly pela banda do suest mas poucos pilotos
sabem esta terra & posto que por aquy possam ir deue ser de dia &
pousar de noyte; o houtro caminho he por terra pelo peego segundo adiante
diremos…»
É
de crer que à descoberta do Geba se seguisse um intervalo nos avanços para sul.
Certamente não se prosseguiu sem primeiro explorar as margens do rio e o
arquipélago e sem procurar o caminho conveniente.
Este caminho foi achado, e do relato da viagem de Pedro de Cintra infere-se que
já foi então seguido (pelos canais das Arcas e de Bolama), a passar junto da
foz do Bolola.
Em face destas dificuldades e demoras
repugna aceitar que NunoTristão tivesse passado para o sul do Geba. Ele andava
à procura de povoações (ZURARA diz que subiu o rio «por lhe parecer que deverya
de aver algüas povoaçoõens» e que se dirigiu para «huascasas que vyam na maão
direita»; BARROS acrescenta que o fim era fazer «ua grande entrada»).
Resulta estranho que o navegador, que andava tão interessado em entradas,
desprezasse tantos rios e ilhas ideais para o fim em vista, e fôsse escolher o
modesto Rio Nuno. Se tivesse passado para lá do Geba - e seria intrigante que o
cronista calasse o facto - só o poderia ter feito por dentro (como Pedro de
Cintra) ou pelo «pêgo». O primeiro caso resulta inverosímil sem um prévio e demorado
trabalho de exploração, que ZURARA não refere. Quanto ao segundo caminho, e
caso o navegador tivesse entrado no Geba, revelaria ainda que não encontrarao
canal para o sul, e da mesma rnaneira
resulta estranho que o cronista não falasse no facto em si ou em acontecimentos
relacionados com a exploração do rio. Concluir-se-ia que Tristão não entrara no
Geba e vinha muito amarado, o que revelaria ou um incompreensível desinterêsse
pelo reconhecimento da costa, ou uma íntuição verdadeiramente genial, que o
faria seguir o caminho mais aconselhado pelos roteíristas do século seguinte
para passar um extenso banco de que os portugueses ainda então não tinham
conhecimento. Há ainda urna consideração a fazer, que por si só se apresenta bastanto elucidativa.
Do ano da passagern do Bojador até ao da última viagem de Tristão medeia um
intervalo de 12 anos. A aceitar que o referido navegador atingiu o Rio Nuoo,
couclue-se que nesse espaço de tempo se descobriram cêrca de 340 léguas da
costa (contando pelo Esmeraldo). À data da morte de D. Henrique (1460)
atingira-se a Serra Leôa, 50 léguas para além do Nuno. Chega-se assim a esta
estranha conclusão: nos primeiros doze anos descobriu-se uma extensão de costa
sete vezes superior à dos últimos catorze, precisamente aquêles em que já havia
menos receio do desconhecido e mais prática! E num só ano Tristão descobrira uma
distância duas vezes superior à désses catorze!
Da
discussão até aqui feita vai-se colhendo cada vez mais a impressão de
improbabilidade para os rios Nuno e Geba. A análise
comparativa entre
os dizeres de ZURARA, a natureza da costa e o carácter dos descobrimentos do
último período henriquino reforçam a suposição de queo local da
tragédia de
1446 tem de procurar-se bastante mais ao norte do que geralmente se supunha. Os
rios que se apresentam com mais viabilidade são o Salum-Jumbas-Banjala e o
Gâmbia, se bem que o Casamansa e o Cacheu, ainda que menos prováveis, não sejam
de excluir.
(39) CADAMOSTO, B 13, Navegação 2.ª, cap. XXVI, elucida-nos
quanto ao cuidado havido na obtenção de intérpretes: «... cada hum dos naviostinha interpretes negros, trazidos connoco de Portugal, que
tinhião sido vendidos pelos Senhores do Senegal ao primeiros Portugueses que
vieram descobrir aquelle Paiz. Estes Escravos tinhão-se feito Christãos, e sabião bem a lingoa Hespanhola e tinha-mo-los havido de seus senhores, com o contrato de
lhes dar por seu cstipendio e soldo, hum Escravo porcada hum, a escolher em
todo o nosso monte: e em estes Interpetes tendo ganhado quatro
Escravos aos seus senhores, dio-lhes alforria». Nem todos o conseguiam, porém, pois a suafunção era perigosa, cabendo-lhes o
primeiro contacto com os nativos; no Jumbas assistiu Cadamosto à trucidação,
pelo gentio, de um que ia em navio de sua companha.
(40) AZEVEDO COELHO, B 2-a, fl. 77.
2 - ELEMENTOS DE
CARÁCTER CARTOGRÁFICO
A
crença de que o términus de Tristão foi o Geba tem a sua origem em BARROS; já
atrás se apresentaram alguns argumentos que fortemente a contrariam. A crença
de que o local atingido foi o Nuno nasceu de uma ilacção cartográfica.
Pretende-se agora investigar até que ponto ela é verdadeira.
Dasmais
antigas cartas que representam a zona em questão exclui-se da análise
comparativa a fazer a carta de Martellus (1489) e bem assim o globo de Martinho
da Boémia (1492) por demasiado toscos e de escassa nomenclatura geográfica. Das
cartas de Benincasa utiliza-se apenas uma de 1471 reproduzida por SANTARÉM, por
serem as restantes hoje conhecidas análogas, no dizer dos que as viram. Há uma
carta catalã posterior a 1460 em Modena, que ignoramos se se estende até
ao rio Nuno. Vêm assim a ser utilizadas, além da de Benincasa já citada (da
Biblioteca do Vaticano), a anónima portuguesa de Modena (c. 1471), as da «Ginea
Portucalexe» de
Soligo no British Museum (c.1486), a anónima da Biblioteca Nacional de Paris
que LA RONCIÈRE atribui a Cristóvão Colombo e outros julgam ser portuguesa (c.1500) e a anónima portuguesa da
Biblioteca Estense de
Modena conhecida por carta de Cantino (1502). Como complemento utiliza-se ainda
o Esmeraldo de DUARTE PACHECO, o Livro de rotear que VALENTIM FERNADES
copiou e os relatos de DIOGO GOMES e CADAMOSTO.
Para
melhor elucidação e como contributo para a história da toponímia
costeira guineense junta-se o resumo comparativo da nomenclatura geográfica
entre o Cabo Verde e o Cabo da Verga, extraído das fontes indicadas:
O
argumento básico da atribuição da descoberta do Rio Nuno ao navegador Nuno
Tristão é o da designação deste rio, que desemboca um pouco além do limite sul
da actual Guiné Portuguesa, em cerca de 10" 30' de latitude Norte.
No
entanto, outro argumento, que à primeira vista parece comprovativo, tem sido
desprezado. É o da existência, poucas milhas para o Norte, de um grupo de ilhas
nomeadas globalmente llhas Tristão, de um cabo, na maior delas, apelidado
Cabo Tristão, e de um pequeno rio ou braço de mar,
entre essa mesma ilha e o continente, designado por Rio Tristão.
Examinemos,
separadamente, cada argumento.
Rio
Nuno - A primeira
menção deste rio vem na carta Portuguesa que FONTOURA DA COSTA atribui a data
de circa 1471, entre Bissegues eCabo da Verga. Ambos os
termos, a acreditarmos em CADAMOStO, foram impostos por Pedro de Cintra,
derivando o primeiro nome do rei da região. O Rio de Bessegue deste
navegador é o açtual Bolola, de que a margem esquerda se apelida
ainda Cubisseque (talvez palavra formada de Cum e Bisseque).
O
prefixo cum ou cam é característico da Língua nalú – Camdenhame, Cambaque, Campreme, etc. (41), e de fontes antigas
infere-se que essa tribu partilhava com os beafadas a região).
Os
motivos da atribuição da data de circa 1471 à carta de Modena não nos
parecem convenientes. De um primeiro exame deduz-se somente que ela deve ser
anterior a 1482 (por faltar a referência a S. Jorge da Mina) e posterior a
1471. Nada nos repugna aceitar que a sua confecção seja mais próxima da
primeira do que da segunda das datas indicadas.
Na
carta de Benincasa ainda não aparece o Rio Nuno, mas entre Bessgue e o Cabo
da Verga vem um outro denominado R. Seche, que deve ter sido
deturpado por Soligo em R. Clero e coincide com o R. Sequo da
anónima de Paris, onde se vê ser distinto do Nuno. Daí em diante este
nunca mais deixa de figurar nas cartas, quási sempre a seguir aos Nalus, e
por vezes deturpado em Mino (Ptolomeu de 1513, Desceliers 1546, Luiz Teixeira
c. 1600), Myno (Francisco Rodrigues post. 1512), Migno (S.
Cabotto 1544?), Noune (Jacques de Vaulx 1533), Nunes (cartas
inglesas e francesas actuais).
Admite-se
geralmente que as cartas do 2.º período de Benincasa foram executadas sôbre
elementos levados de Portugal por CADAMOSTO. A sua nomenclatura para além do
Rio Grande é claramente resultante da viagem de Pedro de Cintra, como se pode
ver pelo relato que dela faz o veneziano.
Isto
significa que, embora as datas de execução possam ser muito posteriores, tais
cartas não contêm elementos obtidos além de princípios do 1463, época em que
CADAMOSTO abandonou o nosso País.
Conclui-se
assim que a designação de Rio Nuno deve ter sido criada entre 1463 e 1482
(provável limite superior para a data da execução da carta de Modena). Ora se o
nome surgiu como consequência da descoberta do rio por Tristão e sua morte, era
lógico que fosse aplicado imediatamente - como sucedeu com outros casos
análogos - e não bastantes anos após. A dúvida acentua-se· consultando os
roteiristas. Ném no Esmeraldo (I, 32.º- argumento jã aduzido por DuARTE
LEITE, pág. 167), nem no relato da costa de África recolhido por VALENTIM FERNADES (pág,
88), nem no Livro de rotear igualmente copiado pelo diligente moraviano
(pág. 217) vem a mais pequena referência que associe o nome do rio a Nuno
Tristão. Só muito mais tarde tal se verificará.
Afigura-se
portanto como mais provável que a designação se refira a outro navegador
(DuARTE LEITE, pág. 166, nota 184), e possivelmente o que na realidade o
tivesse descoberto. De dois com o nome de Nuno temos conhecimento: Nuno António
de Góis, escudeiro fidalgo da casa do Infante D. Henrique, de que fala a
carta régia de D. Afonso V a Cid de Sousa (27 de Fevereiro de 1453), emcarregando-o do resgate de
mercadorias e da capitania das caravelas no trajecto para além do rio de S.
João (42), e Nuno Femandes da Baia, que com Diogo Gomes foi
à Guinê como capitão de uma caravela (1456) (43).
Estas
coosiderações vêm reforçar o que DIOGO GOMES regista no seu relato:
que o Rio de Nuno Tristão fica na terra dos Barbacins (ao Norte do
Gârnbia (…). Conclue-se assim que o Rio Nuno actual não deve o seu nome
a uma transposição cartográfica, mas sim a navegador desconhecido, e que o
primitivo Rio de Nuno Tristão perdeu essa designacão ( .. ). Cremos que
ele é o que veio depois a chamar-se Rio dos Barbacins, que adiante se
verá ser o actual Solum. A nova apelidação era mais sugestiva, por
lembrar imediatamente o curioso povo da região, e fàcilmcnte obliterou a que
ilustrava o infeliz navegador.É curioso ainda registar que nalgumas dezenas de
reproduções de cartas portuguesas e estrangeiras dos séculos XV, XVI e XVII que
pudemos consultar, vem sempre a designação «Rio Nuno», correcta ou mais ou
menos deturpada. Pela primeira vez encontrámos «Rio Nuno Tristão», mas a par de
«Rio Nuno», na «Carte particuliêre des Costes de l'Afrique, qui comprend te
Royaume de Cacbeo le Province de Gelofo & levée par ordre express des Roys
de Portugal sous qui on en a fait la Découverte» (44) . (1700). Esta carta
reveste-se de particular importância pela sua origem. Um agente de Luís XIV,
Jean Frémont d'Ablancourt, andou pela côrte portuguesa, de 1659 a 1664; soube
aproveitar bem o seu tempo, pois conseguiu perscrutar os segredos da secção
cartográfica da Casa da índia e da Mina, o «Aimirantado Português», sempre
ciosamente guardados. Alcançou obter cópias das cartas que os reis de Portugal
sempre guardaram cuidadosamente para o seu uso. Essas cópiass vieram a
pertencer a Monsieur de Halewyn, que as entregou a Mortier para publicação. O
editor comenta que «como até ao presente não se puderam ter cartas exactas dos
pa!ses contidos naquelas que dou hoje a público, creio prestar um serviço muito
considerável». Saudosos tempos, em que os estrangeiros para navegar por todo o
Mundo recorriam às nossas cartas!
Posteriormente
volta-se a encontrar a designação de Rio Nuno Tristão aplicada ao Rio
Nuno numa carta de D'ANVILLE de 1775, de evidente origem portuguesa na zona
em questão (47).
Em
resumo: nas primeiras cartas portuguesas hoje conhecidas
que se julgam cópia da «carta-padrão> da Casa da Mina (as de c. 1471 e1502,
em Modena), aparece simplesmente Rio Nuno. Em cópia da «Carta-padrão» de
c. 1660 já vem, a par, Rio Nuno Tristão. É fácil portanto concluir que esta última designação apareceu
como resultado da lenda estabelecida à volta do assunto, e de maneira nenhuma
constitui uma prova de que o navegador tivesse atingido
o local que a tradição
consagrou.
A
propósito da facilidade das transposições cartográficas cita-se um xemplo.
Referiu-se atrás que ÁLVARES D'ALMADA fala de um Rio do Furna, onde se
dá o macareo, a seguir ao Rio Nuno. Aquele rio vem já em Vesconte de
Magiollo (1511), mas juntamente com o segundo só o encontrámos em André Homem
(1559) - mas pela ordem inversa da de ÁLVARES D'ALMADA, isto é, o Nuno mais ao
sul.
Ilhas,
Cabo e RioTristão - Nunca
encontrámos estas designações em cartas anteriores ao século passado. Cremos
que apareceram em fins de setecentos ou na primeira metade de oitocentos. Do que
se conclui que nada provam em favor da tese tradicional.
Não
é difícil
calcular como surgiram. Já se viu como em meados de seiscentos - e não parece
que desde muito antes as «cartas padrões» da Casa da Índia e da Mina começam a
registar, ao lado de Rio Nuno, a forma Rio Nuno Tristão, que
passa para algumas cartas estrangeiras. Como poucas milhas ao Norte ficam as
ilhas em questão, transpôs-se para elas, e depois para o cabo e canal, o
apelido do navegador que se julgava ter descoberto a região.
(41) MACLAUD, B 31, pg. 35: «Il est vraisemblable que les
Nalou one occupé à une époque plus ou moins reculé 1: N’Gabou et la région du
Haut-Géba, qu’ils auraient quité devant l’évasion des Mandinké ou des
Foulacounda. On remarque, en effet, que dans tout le pays qui s’étend entre le
cours supérieur du Rio Géba etle Rio Componi, et là seulement, les noms d'un grand nombre de villages commencentpar la syllabe Kanou Kon (Kankeléfa, Kondiaft, Kandienou, Kamdemba, Kandinfara,
etc.). Or le préfixe Kon signifie «village de». en dialect nalou».
No entanto a interpretação que demos da palavra Cubisseque
parece-nos fortemente duvidosa. É possível que
se trate de uma simples corrupção de Bessegue, ou esta palavra seja corruptela daquela. A razão deduzida de
MACLAUD não é convincente, tanto mais que nas
línguas fula, mandinga e beafada há prefixos semelhantes com o mesmo significado.
(42) SOUSA VITERBO, 8 44, I, pg. 292.
(43) GOMES, B 25, pg. 81.
{44) GOMES, B 25, pg. 79
(45) Não conseguimos encontrar
nenhuma carta com o Rio Nuno Tristão na
terra dos Barbacins. A nomenclatura usual dos rios da região é: Rio dos
Barbacins, Borsalo, Rio de Lagos. A carta de Salvat di Pilestrina
(1511) apresenta-se mais completa e algo diferente, pois
traz dois rios cujos nomes não são os usuais, mas que no
entanto não conseguimos decifrar. {46) ABLANCOURT, B 1.
(47) Reproduzida em
DEMOUGEOT, B 19, pg. 287.
3
- ELEMENTOS DE CARÁCTER ETNOGRÁFICO
As
descrições de ZURARA e BARROS são bem frizantes em três factos: a rapidez das
canoas indígenas, a ferocidade destes e e o emprego de flechas particularmente envenenadas. Vejamos
até que ponto estas indicações ajudam a determinar o local do sucesso. Ao Norte
de Cabo Verde sabe-se que os jalofos envenenavam as suas armas. CADAMOSTO {1ª,
cap. XXXII) descreve como Bisboror, neto de Budomel (rei do Caior) o fazia:
«Com esta mistura [sangue de cobra e suco de ervas] envenenava as suas armas, as quaes
onde chegavam, huma vez que fizessem sangue (bem que a ferida fosse pequena) em
hum quarto de hora morria o ferido». (48).
Em
Cabo Verde também a prática era usada, como revela DIOGO GOMES ao falar de Bezeguiche
(49) (rei de que derivou um dos primitivos nomes da ilha, situada em frente
de Dakar, de que o actual, imposto pelos holandeses, é Gorea).
Para
o Sul de Cabo Verde, ao longo da costa, estendiam-se
os Sereres
- raça a que possivelmente pertencia o Bezeguiche, - e após eles os Barbacins.
De uns e outros CADAMOSTO (1.•, Cap. XXXV) salienta a ferocidade:
«…são homens crudelíssimos:
usão de
arco com frechas, mais do que
nenhuma outra arma; e atirão com ellas envenenadas, de modo que
tocando na carne, logo que fazem sangue, morre o ferido imediatamente».
Num rio (que se infere ser o actual Jumbas) após o
rio dos Barbacins (provàvelmente o Salum) o intérprete enviado a terra foi
trucidado selvàticarnente pelos indígenas, armados de «arcos, setas e armas» (
1.ª, Cap. XXXVI).
É
de notar porém que, segundo ÁLVARES D'ALMADA (50), os Jalofos e Barbacins não
faziam a guerra por mar, embora transportassem guerreiros de uns sítios para
outros nas suas almadias, que eram menores que as do Gâmbia, Rio Brande e Bijagós.
Passando
os mandingas do Gâmbia - a que abaixo se fará referência - seguiam-se os
felupes e arriatas, a partir do Combo (onde estavam misturados com mandingas)
até ao rio de S. Domingos, em cuja foz
dominavam, nas duas margens, pois haviam invadido, no Sul, a terra dos
Buramos (Brames), instalando-se na Mata de Putamo. Por ALVARES D'ALMADA (61}
sabemos serem excelentes marinheiros, dados a cortarem de noite as amarras dos
navios portugueses para os fazer encalhar e assassinar os tripulantes. Mas o
mesmo autor salienta explicitamente que, usando de facto frechas, elas «não são
hervadas», e em lugar de ferro trazem nellas mettidas espinhas de um peixe
chamado Bagre».
Igualmente
não encontrámos referência ao uso de frechas ervadas por parte dos buramos
(maneira como se designavam então os povos da costa entre o Cacheu e
o Geba, abrangendo os actuais brames, papéis e manjacos), nem à prática, neles,
de fazer guerra por mar. Os irrequietos Bijagós, de que ÁLVARES
D'ALMADA dá uma curiosa definição - «não fazem mais que tres cousas: guerra, e
fazer embarcações, e tirar o vinho das palmeiras» - eram temíveis na guerra
marítima. Desde o Cacheu ao Botola traziam os povos aterrados
«...e trazem desínquieta toda a terra dos Beafadas e Buramos, que
lhes ficão defronte, com as continuas proezas que sempre nelles fazem; e de tal
maneira os desinquietão que continuamente vigião de noute e de dia».
Mas
sabemos também que as suas frechas «...não
são hervadas; e em lugar de ferro lhes põem humas
espinhas de pescado chamado Bagre, que elles tem por peçonhento,
e o he.» (52).
A
peçonha das espinhas do peixe não devia ser muito de temer, e não é de crer que
provocasse o efeito notado em Nuno Tristão e seus homens (52). A. terrível
virulência deste caso não está de acordo com as descrições das rapinas dos
Bijagós, onde não é costume falar-se de hecatombes por envenenamento de armas;
o que eles pretendiam era fazer escravos e saquear. O facto é confirmado por
uma indicação de AZEVEDO COELHO, que refere que os habitantes do reino de
Bicega (Cubisseco) usavam frechas muito venenosas, «...e só com elles os Bijagós não poderão e
algumas vezes que la forão vierão com às mãos na cabeça, fazem uma peçonha
confessionada de ervas com que untam as pontas das suas frechas que não se lhe acha contra, e assim são melhores as
frechas daqui, que de nenhuma parte». (53).
Se
as frechas dos Bijagós fossem muito venenosas, não deviam eles recear-se tanto
de fazer entradas no Cubisseco. Igualmente se pode inferir que os Buramos não
as usavam. Quanto aos Beafares, apesar de ALVARES D'ALMADA também lhes
atribuir frechas ervadas (54), não deixam de sofrer as constantes rapinas dos
Bijagós, o que leva a crer que o veneno que usavam não era muito virulento (54).
Dos Nalus não encontrámos referências a frechas
envenenadas, nem à prática da guerra por mar.
No
Nuno, habitado pelos Bagas em fins de quinhentos, também são omitidas
tais indicações em ÁLVARES D'ALMADA que diz que os indlgenas são «muito
atraiçoados» e «folgão estranhadamente de matarem os nossos, quando se
desmandam pela terra a irem chatinar»; trucidavam em terra à traição, e
aproveitavam as cabeças «limpas de carne e miolos» como Púcaros (55). AZEVEDO
COELHO já escreve porém que os Bagas, ao tempo, eram muito leais e não
combatiam à traição, avisando sempre que iam guerrear; contudo adiante
acrescenta que «as armas com que se peleja aqui tudo he frecharia ervada, as
pontas de ferro, mas elles tem grandes contravenenos» (56). Diferem os dois
autores no espírito dos indígenas, e só o segundo fala de armas envenenadas.
Contudo ambos estão de acordo em omitir a prática da guerra por mar e a
propensão marítima dos Bagas.
Propositadamente
guardámos para o fim o Gâmbia. É que das descrições que dos seus habitantes nos
chegaram extrai-se uma ideia a que se ajustam perfeitamente os relatos de
ZURARA e BARROS. Ao entrar no Gâmbia diz CADAMOSTO
que «Vendo os Portugueses as almadias, e duvidando se acaso vinhão com
tenção de maltratallos, tendo sido avisados pelos outros Negros, que neste paiz
de Gambia todos erão archeiros, que atiravão setas envenenadas...derão
aos remos…mas não o fizeram tanto a salvo, que quando chegavão a elle não
tivessem as almadias nas costas, não mais longe que hum tiro
de seta, porque são velocíssimas». (1ª. Cap. XXXVll).
E
mais adiante «...,duvidando se suas
frechas serião envenenadas (pois tinhamos ouvido, que muito uzavão dellas)».
(1ª, Cap. XXXVIII).
Na
segunda viagem, ao falar de uma caçada feita em sua honra pelo rei Guermimensa,
«o qual habitava junto à embocadura deste rio», diz que «todas as suas armas
são envenenadas» (II.ª, Cap. V}.
VALENTIM
FERNANDES, falando dos mandingas do Gâmbia, refere que são «...as frechas de cana maçiça, e as
põtas de pao tostado no fogo, e alguas porcas de ferro. E estas frechas são
muyto éhruadas todas» (57).
Mais
adiante (pág. 232), no que se afigura ser um resumo do relato de CADAMOSTO,
fala também da caçada indicada acima, mencionando as frechas ervadas, mas, facto
para que desde já se chama a atenção, ao rei que CADAMOSTO denomina Guermimesa, dá ele a designação
de Gnumimansa.
ÁLVARES
D'ALMADA deixou-nos
alguns elementos
valiosos sobre os mandingas do Gâmbia: «são
muito guerrreiros estes negros e nesta terra ha mais
armas que em nenhuma outra da Cuiné, porque, oomo ha nella
ferro que fundem, fazem muítas armas de azagais, dardos, e muita frecha; e a
sua herva he a mais peçonhenta que todas as outras; porque vimos no porto de
Cação (58) terem com os nossos huma briga, seria às 10 do
dia, na qual houve mortos de huma parte e da outra; e depois de recolhidos, à hora da vespora, querendo os nossos dar
sepultura aos mortos, os que estavão feridos de frechas hervadas
não poderão ser levados a ellas, porque era tão fina a herva da peçonha que estavam já os corpos corruptos, de maneira que apegando por bum braço se despendia do corpo, e de huma perna da mesma maneira.
Não houve remédio se não fazerem as sepulturas ahi onde estavão os mortos, e bota-los dentro dellas. Tal he a herva destes negros. São pela maior
atraiçoados. Toda a banda do sul deste rio são máos; prezão-se de matarem
brancos, e tomarem navios; como já fizerão a alguns». (págs. 27-8). «Ha neste
rio, na entrada delle até 70 legoas, almadias muito grandes,
que às vezes andão de guerra; e taes que ja acommetêrão algumas lanchas de Franceses e as tomarão…» (pags.35).
Um
dos argumentos de que ARMANDO CORTESÃO (pág. 15) se serviu para identificar com
o Geba o local do ataque a Nuno Tristão foi a indicação de AZEVEDO COELHO de
que desse rio para o sul os indígenas usavam frechas ervadas de efeitos rápidos
e de que se não conhecia antídoto (58). Já DUARTE LEITE (pág. 166) havia
refutado tal argumento, baseado em que ZURARA (cap. 63.º) refere o emprego de
tal arma nas imediações de Cabo Verde.
Cremos
que se pode ir mais longe nas conclusões a tirar. De Cabo Verde ao Gâmbia,
sereres, barbacíns e mandingas empregavam frechas envenenadas. Do Gâmbia para o
Sul, os felupes limitavam-se a usar pontas de espinha de bagre, não ervadas, e
das referências citadas, custa a admitir que elas provocassem hecatombes no
género da de Nuno Tristão e seus companheiros; o Casamansa e o Cacheu resultam
assim muito pouco prováveis. O mesmo há a dizer quanto ao Geba, na foz,
porquanto os bijagós utilizavam de forma análoga o bagre e não parece que os
brames (que na região - ilhas da margem norte do rio - são os actuais manjacos)
recorressem ao veneno nas setas. No Bolola, se há dúvida quanto aos beafadas da
margem norte, os do outro lado eram mestres no assunto, com grande arrelia dos
bijagós; mas custa a admitir que Nuno Tristão aí fôsse encontrar a morte pelas
razões de ordem náutica-geográfica que atrás ficaram expostas. Dai para o sul
os escritores antigos omitem referências concretas ao uso de tão traiçoeiras
armas, com excepção do Nuno.
O
que parece portanto mais indicado, no que respeita ao argumento das frechas
ervadas, é procurar os assassinos dos nossos mareantes entre os seres,
barbacins, mandingas e bagas.
Inclinamo-nos,
porém, para os penúltimos. As descrições que deles nos deixaram CADAMOSTO,
ALVARES D’ALMADA e outros ajustam-se de maneira ideal com a forma como se deu o
ataque. Efectivamente, em nenhuma outra raça se ligam tão perfeitamente as
características de ferocidade, particular virulência das frechas e extrema
velocidade das canoas que ZURARA e BARROS nos revelam. Mas cumpre desde já acrescentar
que o facto de se tratar de mandingas não permite localizar o sucesso no
Gâmbia. Com efeito CADAMOSTO, ao descrever as suas embarcações e peculiar
maneira de remar (de pé, e sem toletes) diz que «...com esta casta de remos vogão à força de braços estas suas barcas
volocissimamente, pela costa de mar tem
a terra: tem muitas bocas de rios, onde se metem, e são bastante seguros, mas commumente não se afastam muito do
seu paiz; para que não suceda que na passagem de huma terra para a outra
sejão feitos prisioneiros, e vendidos por escravos». (lIª, Cap. lV).
ALVARES
D’ALMADA, ao descrever os Felupes e Arriatas ao sul do Gâmbia,
diz que «...os Mandingas do Rio de Gambia
dão que fazer a estes, e os desinquietam, armando almadias
de guerra mui formosas, e botando pelo Rio de Gambia fora, correndo a costa do
Cabo de Santa Maria para baixo, e dão nos Arriatas e Falupes que vivem ao longo
desta costa. (pág. 38).
Infere-se
portanto que os mandingas navegavam também na costa do mar e eram dados a
correrias para fora do Gâmbia em busca de escravos.
Do
exame das antigas relações, roteiros e cartas concluímos que no estuário
Salum-Jumbas-Banjala confluiam os domínios de barbacins, sereres, jalofos e
mandingas - reinos de Barbacin (Bor-ba·Sine, rei do Sine, afluente do
Salum), Borsalo (Bor-Salum, rei do Salum), Nomemansa (Niom-mansa, rei de Niom). As razões
desta conclusão levariam a alongar-nos demasiado, pelo que as omitimos. Não
pudemos definir com exactidão as fronteiras dos vários reinos, que aliás cremos
terem estado sujeitas a flutuações no decorrer dos tempos. Ora o Niom,
zona entre o Jumbas e o Gâmbia, era habitado por mandingas, sob o domínio do
Nomemansa, rei da foz do Gâmbia do lado norte. Portanto o facto de se concluir que
foram muito provavelmente mandingas os atacantes de Nuno Tristão, não prova que
tenha sido o Gâmbia o local do sucesso. Podia ter sido esse rio ou um dos
braços do Salum-Jumbas-Banjala, principalmente um dos do sul.
(48) VALENTIM FERNANDES, B 45, rambém refere o facto,
segundo parece baseado ern CADAMOSTO.
(49) GOMES, B 25, pg.
79.
(50) .ALVARES D' ALMADA, B 2, pg. 23.
(51) ALVARESs D’ALMADA, B 2, pgs. 38-9.
(52) ÁLVARES D'ALMADA, B 2, pg. 54
(52-a) O espigão do bagre não é venenoso, mas como é
serrilhiado faz com que os ferimenlos sejam de difícil cicatrização. Deve ser
neste sentido que ALVARES D'ALMADA
emprega a palavra «peçonhento».
(53) AZEVEDO COELHO, B 2-a, fl 72.
(54) ALVARES D'ALMADA, B 2, pg. 59.
(54-a) Por Frei André de Faro sabemos que as frechas dos
bceafadas não eram ervadas. «por não aver na sua terra aquella maldita erua que
os outros tem» (Peregrinação de André de Faro à Terra dos gentios, publicada
por LUIZ SILVEIRA. Lisboa, Bertrand, 1945. LXI - 124 pgs.). Os
«outros» $ão os habitantesda
Serra Leoa e do Nuno, de onde o frade vinha quando aportou à
Guinala.
(55) ÁLVARES D'ALMADA, B 2, pg. 70.
(56) AZEVEDO COELHO,B 2-a, fls. 80 e 82.
(57) VALENTIM FERNANDES, B 45, pg. 79.
(58) Deve ser o Kassang
das cartas inglesas, a uns 160 quilómetros da costa.
(58-a) Devemos notar que não encontrámos em AZEVEDO COELHO indicações que permitam a conclusão
de ARMANDO CORTESÃO. No Geba nunca fala de frechas ervadas - o que invalida o argumento deste investigador - e dai para o Sul
só as refere no Cubisseco e no Nuno. Cremos que houve confusão com o Cubisseco.
CONCLUSÕES
Da
análise até aqui feita concluiu-se, dos elementos de carácter
náutico-geográfico, que o términus de Nuno Tristão se afigurava como mais provâvel
entre Sangomar Point e Cape Bald - um dos braços do Salum-Jumbas-Banjala ou o Gâmbia
- e que o Geba e rios para o sul dificilmente se podiam aceitar.
Da
análise cartográfica inferiu-se que não tinha qualquer valor o argumento que
baseia numa identidade de nomes a determinação do limite da viagem. A idéia
tradicional - o rio Nuno - fundada, como estava, nessa identidade não tem pois
mais que a força da tradição, que aliás se viu ter
nascido um século depois dos acontecimentos.
Da
análise dos elementos etnográficos obtiveram-se conclusões em perfeita
concordância com as deduzidas dos elementos náutico-geográficos.
Toda
a discussão já feita, permitiria, por si só, aceitar com grande plausibilidade
tais conclusões.
Mas
há uma prova, que constitui a verdadeira chave para o problema, e que
propositadamente guardámos para o fim, para não exercer qualquer sugestão
durante a análise, e ainda porque o autor de onde ela vem tem sido fortemente
contestado na sua autoridade.
Essa
prova é o relato de DIOGO GOMES. Cremos que se tem
sido demasiado
severo para com o velho almoxarife do Paço de Sintra, e abusado demais
da sua falta de memória, das erradas interpretações que MARTINHO DA BOÉMIA fez
do seu relato, e sobretudo da sua – ainda não provada - gabarolice. Aos
investigadores que seguem cegamente CADAMOSTO realçando-lhe as qualidades e
esquecendo os seus manifestos erros e prosápias, e inversamente, a propósito de
tudo e de nada, atacam DIOGO GOMES, desfiando-lhe as
inexactidões, acumulando sobre ele labéus de ignorância e estultícia, e deixam
no olvido os seus acertos, chamamos a atenção para a interessante exploração do
Gâmbia, levada a cabo por este último. Até hoje ainda não mereceu o devido
inlerêsse dos investigadores portugueses a viagem de cerca de 500
quilómetros que Diogo Gomes realizou pelo Gâmbia acima. Na ocasião própria se
verá como ela está inteiramente comprovada. No entanto, a fama de explorador - que
os nossos historiadores aceitam como a apresentam os compatriotas de CADAMOSTO
- pertence ao veneziano, que não passou de 100 quilómetros além da foz.
O
que agora interessa, na parte respeitante a Nuno Tristão, do relato de DIOGO GOMES
são as seguintes passagens: «...navegaram o Cabo Verde, e
o passaram chegando a uma terra de homens maus chamados Serreos... Navegando além ainda foram à terra de Barbacins e acharam
um rio pequeno que agora chamam Rio
Nuno Tristão. E indo além viram muitos negros daquela terra em almadias
dentro no rio e fora no mar, com setas venenosas, e
mataram todos estes
cristãos...e eu, Diogo Gomes, tive
muito tempo
depois uma ancora que me deu de presente o rei dos prelos. E eu fui o primeiro
cristão que fiz paz com eles, e este rei se chama Mains e é senhor de muitas almadias.»
Segue-se
o relato da viagem de Valarte, onde diz que «...êstes
navegaram ainda além do lugar já dito, onde os cristãos tinham sido mortos.»
Ao
falar da sua viagem (1456) diz DIOGO GOMES que, passada a foz do Gâmbia, «...pela manhã entrámos mais longe e vimos
muitas almadias tripuladas, que assim que nos viram
fugiram, porque eram os que assassinaram os supraditos
cristãos com o seu capitão.»
No
dia seguinte, entabuladas relações com negros da margem sul, souberam pelo seu
chefe, Frangasick, «...porque os pretos
do lado esquerdo do rio não quiseram falar e porque mataram os cristãos.»
Mais
tarde, também outro chefe do lado sul, Batimansa, prestou análogas informações:
«E ali soube eu a
verdade, que todo o dano feito aos crisãos o fizera um certo rei, chamado Nomimans, que possui a terra que jaz
neste promontório. Com o qual
muito trabalhei em fazer paz, e mandei-lhe muitos
presentes pelos seus homens em almadias
suas, que iam buscar sal ao seu paiz; o sal abunda ali e é de côr vermelha.
E muito receava dos
cristãos por causa do dano que Ihes fizera às caravelas já nomeadas. E fui pelo rio contra o oceano até ao pôrto que está cêrca
da foz do rio. E êle mandou-me grande número de homens e mulheres para me
experimentar se por acaso lhes faria algum mal; o que eu fi pelo contrário recebendo-os
com afabilidade.»
Como
já se disse, foi JOÃO BARRETO (pgs. 33-4) o primeiro a aproveitar estes
informes, que o levaram a pensar na Gâmbia como local do ataque; mas a opinião
de BARROS pesou, e o ilustre historiador da Guiné acabou por escrever que
«devemos reservar o nosso juizo sobre o ponto em questão, enquanto novos
elementos de informação não venham a esclarecer o caso».
Depois
DUARTE LEITE (pg. 165), que após a sua análise concluira pelo Barbacins ou pelo
Gâmbia, também deduziu de DIOGO GOMES a indicação do Gâmbia; mas refere-se ao
facto em termos tais, que não se chega a perceber o crédito que lhe confere.
Por
fim DAMIÃO PERES (pgs. 96-99) aproveitando a indicação de ZURARA de que os
atacantes vinham da margem direita do rio, e confrontando-a com os dizeres de
DIOGO GOMES (o rei Nomemansa, que matou os cristãos, dominava na margem direita
do Gâmbia), conclue que Nuno Tristão foi o descobridor do Gâmbia.
Esta
conclusão é de facto aliciante, mas parece-nos que não se pode tirar. Vejamos
as razões.
Como
nas outras viagens a analizar haverá que falar ainda muitas vezes dos povos ao
sul de Cabo Verde, traça-se desde já um resumido quadro da sua distribuição
geográfica nessa época, extraido principalmente da leitura dos velhos textos
portugueses, que ainda estão muito longe de estudados e aproveitados para a
investigação etnográfica.
Para
o sul de Cabo Verde, na costa, viviam os Serreos, Çoreos ou Xeréos, (Sereres),
raça que em tempos remotos parece ter habitado as margens do Senegal, de onde
seria expulsa para o litoral pelos jalofos, e de que o núcleo mais puro são
hoje os Niominkas, habitantes das ilhas entre o Salum e o Jumbas (Gandoul). É
de crer que no século xv eles estivessem um pouco mais ao norte, embora os
nossos autores pareçam confundir por vezes o seu grupo sul na
designação geral de Barbacins, jalofos cujo habitat
fundamental era a zona das margens do Sine (de onde lhes veio o nome – Borbacins,
súbditos de Bor-ba-sine, rei do Sine:) (59). Ao tempo de AZEVEDO COELHO estavam
os sereres da costa sujeitos ao reino de Porto Dale, reino de Ale-em-biçane
de ALVARESD'ALMADA, parte norte do reino de Barbacin. Neste reino
ficava o pequeno rio de Joala.
O
Rio dos Barbacinss emparava este último reino do de Borçalo. O rio
dos Barbacins é certamente o Salum. CADAMOSTO indica a distância de 60 milhas a
Cabo Verde - correcta (I.ª, cap. XXXVI); VALENTIM FEMANDES
confirma-o, e diz com exactidão que «de dentro tem hüa boca e faz dous braços»,
o Broçalo (Salum) para o Norte, e o Borjoníc (braço que liga ao Jumbas,
e ao qual liga outro que ainda hoje se chama Guioníc) para o sueste (pg.
72); de ALVARES D'ALMADA também se deduz ser o Salum (pg. 19); PIMENTEL
igualmente o indica (pg, 235.
Segue-se
ao rio referido o reino de Borçalo (Bor-Solum, rei do Salum), de que não encontramos traça nos
escritos de quatrocentos, mas que já vem em Cantino (Borsalo, 1502) e
VALENTIM FERNANDES, e de que posteriormente se encontram abundantes provas do
seu poder. Habitado por jalofos, barbacins e mandingas, por vezes aparece dominando
no lado norte da foz do Gâmbia.
A
partir do rio de Lago ou de Laco (que de VALENTIM FERNANDES
e ALVARES D’ALMADA se vê ser o Jumbas) estendia-se uma zona
ainda do estuário Salum-Jumbas-Banjala (com o Banjala e o Jinnak) sobre a qual
dominava por vezes o Borçalo, outras o chefe da margem norte do Gâmbia
junto da foz (no tempo de AZEVEDO COELHO era este:«saindo do rio de Borçallo
pela costa abaixo está o rio de Felám, cuja gente da banda do Sul he sogeita ao
Rey da Barra»).
Vinha
finalmente este, imperando para dentro do rio por uma certa extensão e para
fora ao longo da orla marítima num raio de acção que incluía a parte ao sul do
Jumbas.
Vista
a distribuição dos povos ao sul de Cabo Verde, voltemos ao relato de DIOGO
GOMES. Ao falar da viagem de Tristão diz ele que o rei dos pretos lhe deu uma
âncora. Já se viu que a âncora não devia pertencer à caravela daquele
navegador, mas a outra, provàvelmente a encalhada na região nesse mesmo ano. O
que importa é o nome do rei: nome mains (60). Mais adiante a êle se
atribui também o ataque a Valarte (conclusão que se tira por DIOGO GOMES dizer:
«dano que fizera [aos crntãos] e às caravelas), chamando-se-lhe
Nomymans. Noutro lugar ainda, que não transcrevem os atrás, vem Nominans.
Nome
mains, Nomymans, Nominans são as várias maneiras como MARTINHO
DA BOÉMIA escreveu
o som que DIOGO GOMES lhe ditou, e que deve ter sido Nomemansa ou Nomimansa,
palavra composta de Nomeou Nomi e mansa. Mansa ou Mansó
é designação
mandinga que significa rei ou chefe e se junta geralmente ao nome da região onde êle impera.
Entre
os mandingas o seu afamado imperador supremo chamava-se Mandimansa - Rei de
Mandi, Mali ou Meli – que no
entanto os jalofos já designavam por Bormeli (Bor-Meli).
Nomemansa
ou Nomimansa
é pois o Rei de Nome ou Nomi.
A
primeira conclusão a tirar de DIOGO GOMES é que os negros que chacinaram Nuno
Tristão e os companheiros eram mandingas ou estavam mandinguisados. Os jalofos
designavam os seus chefes por Bor. Que o rei desses mandingas dominava
na margem norte do Gâmbia, junto da foz, também se conclui expressamente
de DIOGO GOMES.
CADAMOSTO
(Il.ª, Cap. V) chama ao rei dessa região Guermimensa e vai-nos
advertindo de que «todas as suas armas são envenenadas». O da “Colecção de
Notícias para a Historia e Geografia das Nações Ultramarinas”, erro que não
pudemos ver se já vem na 1ª edição italiana, a de 1507 (62)
Há
portanto concordância entre DIOGO GOMES e CADAMOSTO. O primeiro chama ao rei Nomimans,
o segundo Gumimansa: os sons são semelhantes,
e não pode
haver dúvida de que se trata do mesmo nome - o rei de Nomi ou Gnumi, região
da margem norte do Gâmbia junto à foz. E um exame às cartas de hoje comprova
a asserção. Nos mapas franceses lá vem no mesmo sitio a palavra Niom. Nas
cartas do Almirantado Inglês a região vem dividida em duas
partes: ao norte, incluindo a margem sul do Jumbas, o Niumi-Bato; ao
sul, junto do Gâmbia, o Niumi-Banta.
Foram
portanto os negros do Nomi, Gnumi,
Niom ou Niumi os atacantes de Nuno Tristão e dos seus
companheiros.
Apurado
quem matou o navegador, pode-se ainda saber onde foi? É o que se
vai ver.
ZURARA,
no cap. 88, ao descrever a viagem de Estêvão Afonso, diz que chegaram a um rio
«assaz de boa largueza», 60 léguas além de Cabo Verde. A identidade do número
de léguas levaria a supor que se tratava do mesmo atingido por Nuno Tristão.
Mas, como já DUARTE LEITE (pg. 166) notou, é estranho que o cronista só agora
falasse da grande largura do rio, e não referisse o desastre lá sucedido. É portanto
de crer que os rios sejam diferentes, possivelmente de Estêvão Afonso o Gâmbia e
o de Tristão um dos braços do Salum-Jumbas-Banjala.
Esta
suposição acentua-se notando que DIOGO GOMES dá a caravela de Valarte como ida
mais além, embora o dinamarquês atacado pelo mesmo rei que Nuno Tristão. É certo
que DAMIÃO PERES entende que o «mais além» pode significar que subiram em maior
extensão o mesmo rio (pg. 99). Tristão teria chegado à foz do Gâmbia e Valarte
subido mais a montante.
Parece-nos,
contudo, que mais se ajusta ao relato de DIOGO GOMES a suposição de que Nuno
Tristão não passou a barra do Gâmbia e foi atacado num dos braços do estuário
que o precede.
Quanto
a nós, cremos que o mais provável foi o navegador ter descoberto o Rio dos
Barbacins (muito possivelmente o Rio Nuno Tristão de que fala DIOGO GOMES) -
o Salum·- e, prosseguindo para o sul, ter atingido o Rio de Lago ou de Laco - o Jumbas - que tem
uma maior embocadura (63). Aí, ou num dos braços mais a meio-dia – o Banjala ou
o Jinnak - tentou subir o rio no batel,
sendo então atacado, mas já em terras do Nomimansa.
O
indício de que DAMIÃO PERES se serve, prova apenas que o rei dos atacantes
dominava na margem direita do Gâmbia, mas de maneira nenhuma que aí se deu o
ataque. No labirinto de braços e canais do estuário Salum-Jumbas-Banjala, onde
partilhavam domínios o Barbacim, o Borçalo e o Nomimansa, o facto de os negros
virem de uma margem ou da outra de um desses vários cursos de água não nos pode
servir de indicação quanto à origem dos atacantes. A associação que o referido
investigador faz entre os relatos de ZURARA (os negros vinham da margem direita
do rio) e de DIOGO GOMES (o rei dos negros dominava na margem direita do
Gâmbia) não prova que o ataque se desse no Gâmbia.
Nuno
Tristão não esteve portanto em 1446 em território actualmente português. No
sítio onde ele e os seus aventurosos companheiros bàrbaramente pereceram,
dominavam os mandingas, senhores de segrêdo que levava nas pontas das flechas
oculta a terrível morte. Lá se hasteia hoje bandeira estrangeira, muito
provàvelmentc a francesa (que nem isso se pode ao certo saber, pois quis o acaso
que a linha da fronteira ficasse a meio do Jumbas e do Gâmbia).
Mas
traçou o destino que fosse ele o primeiro português a encontrar gentio
de uma das raças que pululam em chão nacional. Era o primeiro contacto com o rnandinga, que já vira
brancos, mas vindos por outros caminhos, pelas multi-seculares rotas das
caravanas que atravessavam de norte a sul o Saará, e que não sonhava sequer que
eles pudessem vir pelo mar, até ai Tenebroso. Quis ainda o destino que êsse
contacto se revestisse da forma brutal que o caracteriza - para os papéis virem
afinal a mudar de maneira tão completa! Os poderosos Imperadores de Mali, que
lá muito para o Oriente, das margens do Niger, dirigiam os seus vastos
domínios, ignoravam talvez a existência do obscuro Nomimansa, o último dos
chefes que reinava no extremo da flecha que os seus exércitos haviam lançado até
ao Atlântico através do Gâmbia. Mas enquanto a grandeza mandinga entrava no
ocaso, levantava-se a portuguesa e ainda não seria decorrido meio século, e já
o Mansa Mamadú, dos confins do Sudão, faria chegar o seu apêlo a D. João II,
pedindo-lhe auxilio contra os inimigos que cresciam. E menos de meio século
após novo apêlo chegava a D. João III, vindo de Mamadú II. Mas nada conseguiu
deter a derrocada, e o Império Mandinga pulverizou-se, deixando o seu rasto
aureolado pela lenda.
E
o que se passou com o Nomimansa? Arrependido, solicitou as pazes a Diogo Gomes
e pediu o baptismo. Em 1458 lá lhe chegava o sacerdote, com outros portugueses.
Depois,
por muito tempo deixamos de ouvir falar em Nomimansa.
Os
portugueses vieram-se estabelecer no seu domínio para
comerciar. Vieram os lançados, e depois os franceses e os ingleses.
Disputa-se a posse do Gâmbia, e estes nem nos reconhecem os nossos direitos,
por sermos demasiado fracos para os defender.
Em
1696 um dos chefes do Gâmbia, o régulo de Tunhi, dirigia uma carta ao
capitão-mor de Cacheu, pedindo o estabelecimento das autoridades portuguesas no
rio, pois não se entendia com franceses e ingleses. O convite - em termos curiosos
- era feito em nome de vários reis, entre eles o de Barra. A carta foi
ao Conselho Ultramarino, que emitiu parecer desfavorável, com o qual o rei de
Portugal concordou. O assentimento poderia trazer consequências desastrosas -
era perigoso irritar a poderosa Inglaterra…
Quem
era o rei de Barra? Nem mais nem menos o nosso Nomimansa, em cuja
côrte se havÍam instalado os portugueses, e que havia mudado para a nossa
língua a sua designação (64).
E
ainda hoje por lá restam no Gâmbia os vestígios da nossa passada influência,
nalguns nomes que ficaram - Barra, Ponta da Barra, Cabo de Santa Maria, llha
dos Elefantes, etc.
Como
já vai longe esse dia em que Nuno Tristão de maneira fatal sofreu o primeiro embate
dos mandingas!
Avelino
Teixeira da Mota, 2.º
tenente
Aditamento
- A
amabilidade do Sr. Administrador António Carreira, profundo conhecedor da
língua e costumes dos mandingas, devemos, sobre o significado da toponímia da
região onde pereceu Nuno Tristão, algumas informações que completam o que
deixámos já dito. Niom, Niumi, Nome, Nomi, Gnumi são várias formas como
tem sido escrita a palavra Numi ou Niumi que em língua mandinga
significa Litoral. Os nomes das duas regiões em que se divide o Niumi
(Niumi-bantae Niumi-bato) devem ter a seguinte explicação: Poilão (bantan-ò)
do litoral e porto (bàhto, de bàh, mar) do litoral.
Fica
portanto absolutamente explicada a designação Nomimansa de Diogo Gomes,
e igualmente comprovado que na região tinham assento os mandingas. Os domínios
destes eram todos do interior, mas exactamente através do Gâmbia haviam
penetrado até ao Oceano, e dai ser natural que designassem a última região
atingida por Niumi, o litoral.
Ora
numa zona do estuário Salum-Jumbas-Banjala, o grupo de ilhas que ficam entre o
Salum e o Jumbas (Gandoul), vive hoje um núcleo de sereres que se
apelidam Niominkas. Sabemos porém que eles se instalaram lã não há mais
de quatro ou cinco séculos. Como a palavra niominkasé
puramente mandinga e significa homens (nkas) do litoral (como mandingas,
homens de Mandim, e Cassangas, homens de Casa), concluimos
que os sereres tomaram para si a designação do povo que lá encontraram. De onde
se infere finalmente que o Niumi ia do Gâmbia ao Salum, e que o facto de
ter sido o Niumansa o chefe dos indígenas que mataram Nuno Tristão não
prova que tivesse sido o Gâmbia o local do ataque.
(59) O reino Jalofo (Gelofa,
Cyloffa) era já muito antigo. Além do Jalofo propriamente
dito, o reino exercia por vezes certa
influênciasôbre o Oualo, o Caior (Encalhor dos nossos cronistas, de que o rei era tambéin por
eles denominado Budumel, ou seja Bor-Damel, isto é, rei Damel; Damel era o titulo
privativo dos reis de Caior, reino que na costa abrangia desde o Senegal ao Cabo Verde), o Baol(Boól
de AZEVEDO COELHO), o Sine (reino de Barbacin dos nossos autores) e o Salum (reino de Borça/o}.
Aos jalofos estavam misturados numerosos sereres. Em meados do século
XIV o reino de Jalofo revoltou-se e sacudiu o jugo de Tucuror,
habitado por tucurores (designação de BARROS; os franceses
dizem toucouleurs), povo do curso médio do
Senegal. Durante cérca de dois séculos o reino de Jalofo impôs o seu domínio
aos estados entre o Baixo Senegal e o Salum. Os tücurores, por sua vez,
ainda no século XV dependiam do famoso Império
de Mali, que então começava a entrar no ocaso. DUARTE PACHECO PEREIRA
escreveuque o reino de Jalofo ia do Senegal ao Gâmbia
(I, 27.º).
(60) Na tradução de que nos servimos vem apenas Mains. No original latino incluido em
VALENTIMFERNANDES, B 45, está nome mains,
que deve ser a forma correcta, onde se conclui que há manifesto erro na
edição de CADAMOSTO de que nos servimos.
(61) VALENTIM FERNANDES, B 45, pg. 232
(62) Seria interessante fazer o estudo comparativoentre os
extractos de VALENTIM FERNANDES e as edições CADAMOSTO. Teria o moraviano
aproveitado a 1ªedição italiana, ou servir-se-ia de algum manuscrito existente emPoriugal?
(63) VALENTIM FerNANDES, B 45, pg. 72, diz que nele pode
entrar um navio pequeno.
(64) LEGRAND, B28, dá-nos curiosas elucidações
sobre o reino da Barra em meados do século XVIII: «Les roitelets nègres des
deuz rives (de la Gambie) - étaient sous la dépandances des rois du Bar-Salum (Saloum actuel)
du Kantor et du Ouli. Eux-mêmes étaient tributaires d'un monarque très puissant
dont l'em pire s'étendait vers l'Est, probablement l'empire mandingue. Le roi
de Barra est celui dont le nom rvient le plus dans l'histoire de cette époque.
La résidence de ce roi de race mandingue se trouvait sur la rive gaucbe à
l'embouchure du fleuve, cn face de l'ile Saint-André (appelée aussi ile aux
Chiens) - Dog lsland – et ile Saint-Charles}.
Le roi
résidait une partie de l'annéeà Barra el le reste du temps à Amador.» (pg.
442}.
«La population de Barra c'étaitt composéen partie de métis portugais, qui servaient
d'intérmédeaires principalement aux Français et aux «interlopes» pour la traite
sur la Gambie, moyennant un bénéfice qui atteignait certainement 100 f» (pg.
443).
PIMEMTEL, B 37, p.
236, referinodo-se a uma árvore notável da foz do Gámbia, escreve que «a
qual arvore se chama o Pavilhão del
rei do Barra, e todos os navios que entrão e costumão entrar com alguns
tiros de artilheria, e pagão de tributo hurna barra de ferro ao rei de Gambea, que por isso se cham-a rei da Barra.» Cremos porém que o
nome nasceu por força da situação geográfíca.
☻
Os primeiros anos de caça humana foram uma empresa perigosa com muitos
portugueses mortos em guerra ou doenças. (um dos primeiros negreiros NUNO TRISTÃO, foi morto em 1446, junto com
outros 18 no rio Gambia na sua quarta expedição de saque.) Um método mais
simples era necessário para o sucesso do comércio. Os portugueses entraram em
contacto com reis e outros potentados das regiões costeiras e gradualmente
conseguiram arranjar parceiros comerciais, que em troca de tecidos e cavalos
vendiam ouro, peles de antílope e até mesmo escravos.
Conta
Diogo Gomes: «Depois que o senhor infante soube nova tão nefanda, mandou uma caravella armada de paz e guerra, na
qual foi por capitão NUNO TRISTAN, já nomeado, que foi ao paiz dos Cenegos
com outros nobres. Os quaes de Portugal directamente navegaram a Cabo Verde, e
o passaram chegando a uma terra de homens maus chamados Serreos. E acharam
muitos d'elles na praia com seus arcos e setas venenosas, e não quizeram fallar
com os christãos. Navegando alem ainda foram á terra de Barhacins e acharam um
rio pequeno que agora chamam Ryo Nuno Tristan. E indo alem viram muitos negros d'aquella terra em almadias dentro no
rio e fora no mar, com setas venenosas, e mataram todos estes christãos. E tomaram a caravella e levaram-na para
dentro do rio e destruiram-na. E eu Diogo Gomes tive muito tempo depois uma
ancora que me deu de presente o rei dos pretos. E eu fui o primeiro christão que fiz paz com elles, e este rei se chama
Nomemains e é senhor de muitas almadias.»
☻
Este Reino de Gambia começa à entrada do
seu rio mui famoso, 5 legoas da barra do Rio dos Barbacin. He mui facil a entrada delle, sem perigo, porque
fica sendo aentrada como buma enseada, ficando a julavento delle o Cabo
do Santa Maria (que he terra dos mesmos Mandingas), e a barlavento humas ilhas,
dellas alagadiças, dellas não; as quaes ficão entre o Rio dos Barbacins e este
de Gambia,cobertas d’arvoredo do
mangues e outras arvores, algumas povoadas de gente e outras não.
Este Rio de Gambia he
todo povoado de negros Mandingas de huma banda e outra, e em cada espaço de
vinte legoas.
Saindo
do Rio de Gâmbia está o Cabo de Santa Maria, o qual está em 13 gráos e
meio.
Na entrada deste Rio da banda do Sul delle ba huma terra não alta, manchada de
alguns lenções amarellos e manchas que faz a propria terra, arvorada de algumas
arvores. No rosto delle, em fundo de 4 e 5 braças,estão os baixos
chamados de Santa Maria, de arrecifes de pedra. Do Cabo Verde a este de
Santa Maria se corre a costa Noroeste Sueste, e em toda ella não há outros
baixos, senão a baixa de Joala, a qual não arrebenta
senão com muito mar e passão alguns navios entre ella e a terra; e os baixos
dos Barbacins que estão na boca daquela barra, da qual he fácil
a entrada; e depois destes estão neste Cabo os de Santa Maria, que de maravilha
não tem os navios que fazer com eles, porque lhes manda o Regimento que
não passem das 7 braças para a terra, salvo indo
demandar as barras para entrarem nellas. Correndo deste Cabo para o Sul ainda são os negros
delles Mandingas e chamão por ali Combo-Mansa.
Resgata-se
arroz e cera, mas já vão sendo os negros bravos. Passando
estes para
o Sul vão outros negros que confinão com estes Mandingas, chamados Arriatas que ficão de fronte dos baixos de S.
Pedro, e do Cabo de Santa Maria até à entrada da Barra
de S. Domingos,que he perto de 30 legoas.
São
mui guerreiros estes negros, e nesta terra há mais armas que em nenhuma outra
de Guiné, porque, como ha nella ferro que fundem, f'azem muitas armas de
azagaías, dardos, facas, e muita freclha; e a sua herva he a mais peçonhenta
que todas as outras; porque vimos no
porto de Cação terem com os nossos huma briga, seria às 10 do dia, na qual
houve mortos de huma parte e da outra; e depois de recolhidos, á hora de
vespora, querendo os nossos dar sepultura aos mortos, os que estávão feridos de
frechas hervadas não podérão ser levados a ellas, porque era tão fina a herva
da peçonha que estavão já os corpos corruptos, de maneira que apegando por hum
braço se despedia do corpo, e de huma perna da mesma maneira. Não houve
remedio senão fazerem a sepultura ahi onde estavão mortos, e bota-los dentro
dellas. Tal he a herva destes negros. São pela maior parte atraiçoados. Toda a
banda do Sul deste rio são máos; prezão-se
de matarem
brancos, e tomarem navios; como já fizeram, a alguns. Nem se póde ir a elle
senão em bons navios, que levem boa gente e boas armas, e ter boa vigilância nelles,
porque nunca fazem a sua senão á traição…Há
algumas fortalezas de guerra chamadas por elles Cão-sans, ao longo do
rio e esteiros, fortes de madeira muito forte fincada toda a pique e
terra-plenada, com suas guaritas, baluartes, e praças d'armas; nas quaes
pelejão e frecbão. Fazem tambem hum
betume como breo, que cosem em panella, e no tempo de dar o assalto os imigos
lhes deitào aquellas panellas cum que os fazem retirar. Fazem os seus fortes,
como está dito, ao longo do Rio e
esteiros por causa da agoa e das suas embarcações que tem, com que dão nos
outros lugares, e assi roubão os que passão por aquellas partes estando elles
de guerra. (Almada)
☻
Em 1446, ESTÊVÃO AFONSO atingiu o rio
Gâmbia, na região dos Mandingas; ÁLVARO
FERNANDES terá atingido o rio Casamansa (ou chega à enseada de Varela (?)),
no limite Norte da actual Guiné-Bissau; JOÃO
INFANTE, filho de Nuno Tristão, descobriu o rio Grande, depois denominado
rio Geba, na actual Guiné-Bissau; segundo Gomes Eanes de Azurara, em 1446 foram 51 caravelas às terras da
Guiné.
☻
Entrando pe!o Rio acima de Casamança, que fica a barlavento do Cabo Roxo, vão
correndo na entrada pela banda do Norte os Jabundos, e pelo lado
do Sul os Banhuns de lxgichor, como ja fica díto; os quaes ·se entendem todos
uns com os outros; o qual reino he grande, porque fica no
sertão sendo como muro aos Banhuns e Flupos, que lhe ficão à beira-mar. Houve
nelle reis primorosos, principalmente hum chamado Masatamba, o qual comia
em meza alta com suas toalhas postas, assentado em cadeira alta e comer cosido
e feito ao nosso modo.
Andão
os desta nação vestidos como os Jalofos e Mandingas, e ficão cingidos estes por
cima dos Mandingas. Nesta terra corre alguma roupa de algodão. Usão
cavallos, mas poucos, porque alguns que tem se levão da Ilha de Cabo Verde, ou
da terra dos Jalofos ou Mandingas, os quaes andâo continuos
na côrte deste Rei, principalmente· daquelles religiosos, dizendo muitas
mentiras aos negros, e fazendo-lhes· crer muitas cousas. Veio
aqui ter hum destes, das três casas que no Rio de Gambia
ha, chamado Ale-mame. Este falava muitas vezes
com o rei, e quando o rei queria saber alguma cousa
do que se
fazia em outra parte,tomava este caciz hum moço d'outra
nação com quem se elle não entendia, de muitas leoas
d''ali.
Escrevia na testa deste moço humas linhas, e rnandava-lhe pôr
huma bacia d'agoa de diante, e vendo nella, e não sabendo a
lingoa do caciz de antes, depois de ter as letras na testa vendo na agoa;
falavâo ambos e se entendião; e perguntando-lhe por muitas cousas que se fazião em
outra parte, bem longe d'ali, dava tudo razão; e tanto que deixava de ver a
bacia onde estava a agoa, não se entendião hum
ao outro.
☻
1446-Álvaro Fernandes
Viagem
referida apenas por ZURARA (Cap. Lxxxvn) e BARROS (Déc. I, Liv. I, Cap. x1v).
Os elementos principais para a identificaçãodo términus são os seguintes:
ZURARA
1
- A caravela passou para sul do Cabo dos Mastos.
2
- A caravela esteve nun rio, onde houve um ataque de indígenas com frechas.
3
- Para sul desse rio a caravela chegou a uma ponta de areia, junto de uma
enseada, onde foram avistados indígenas.
4 - A enseada fica 110 léguas a sul do Cabo Verde.
5
- A rota até ela é «toda geralmente ao sul».
6
- A caravela de Álvaro Fernandes foi nesse ano a que avançou mais para sul.
BARROS
Além
dos mesmos elementos de ZURARA, acrescenta:
1
- O rio onde Álvaro Fcntandes foi atacado era o de Tabite, 32 léguas
além do rio Nuno.
As
principais interpretações dos historiadores e investigadores acerca do âmbito
da viagem têm sido as seguintes:
a)
1567 – DAMIÃO DE GOES (B19) - Rio Tabite.
b)
11141 – VISCONDE de SANTARÉM (B1) - Rio de Lago e Cabode Santa Ana.
e)
1844 -
LOPES de LIMA (B24) - Rio de Cacé e Furna deSanta Ana.
d)
1868 -
R. HENRY MAJOR (B 6) - Rio de Lago e Cabo deSanta Ana.
e)
1896/99-
C. R. BRAZLEY e E. PRESTAGE (B 2) - Rio deLago e Cabo de Santa Ana.
f)
1931 - ARMANDO CORTESÃO (B 12) - Local perto da SerraLeoa. O Rio Tabite não pode
ser o de Lago.
g)
1938 - JOÃO BARRETO (B 4) - Rio Tabite, que identifica oomo Caabite de
DUARTE PACHECO, 11 léguas ao sul das Ilhas dos Ídolos.
h)
1941- DUARTE LEITE (B 22) - Ponto a pouco mais de 60 léguas a sul do Cabo
Verde.
i)
1943 -
DAMlÃO PERES {B 30) - Limite norte da actual Guiné Portuguesa.
i)
1945 -
MACALBÃES GoDINHO (B 25) - Enseada ao sul do Cabo Roxo.
k)
1946 -
A. TEIXEIRA DA MOTA (B 33) - Enseada de Varela.
l)
1946 -
A. J. DIAS DINIS (B 14) - Ponto 65 léguas ao nortede Serra Leoa (ou ainda mais
para norte).
m)
1946 -
M. C. BAPTISTA DE LIMA (B 3) - Local da Guiné Portuguesa actual.
n)
1946 –
JOSÉ DE OLIVEIRA. BOLÉO (B 28) - Não pode ser o·Tabite.
o)
1946 -
DUARTE LEITE (B 23) - Parte norte da Guiné Portuguesa actual.
Do
mesmo modo que para a viagem de Nuno Tristão se pode verificar que a opiniâo de
BARROS fez escola antes da descoberta do manuscrito parisino de ZURARA.
Depois
do achado deste, prevaleceu a interpretação de SANTARÉM (b) que tinha por
certas as 110 léguas de ZURARA.
É só em 1938 que JOÃO BARRETO (g) identifica o Rio Tabite
com o Caabite do DUARTE PACHECO, sem porém o localizar devidamente.
Até aí correra a errada identificação de SANTARÉM (Rio de Tabite - Riode Lago).
Com
DUARTE LEITE (h) inicia-se finalmente a nova interpretação, baseada sobretudo nos
incontestáveis exageros de distâncias de ZURARA. DAMIÃO PERES (i) tem a mesma
opinião sobre o términus da viagem (limite norte da actual Guiné Portuguesa).
MAGALHÃES
GODINHO (j), baseado em elementos geográficos, pronuncia-se pela enseada ao sul
do Cabo Roxo (de Varela), opinião que também seguimos.
Mostrámos
igualmente (k) que o Tabite deve ser o actual Forikaria,o que torna
absurda a versão de BARROS, pois esse rio está a mais de135 léguas a sul do
Cabo Verde.
Da
mesma maneira que para Nuno Tristão, DIAS DINIS (1) deu crédito à distância de
ZURARA, pretendendo porém quei sso não significava fazer chegar Álvaro
Fernandes às proximidades da Serra Leoa, pois que poderia, sem haver erro no
cronista, ter estado 65 léguas ao norte dessa serra. Não reparou porém que tal
afirmação vinha a colocar o términus da viagem por alturas do Rio Grande (12
léguas da Serra Leoa ao Rio Tabite - mais 32 do Tabite ao Nuno - mais 23 do
Nuno ao Grande, somam 67 léguas). Isto é, sem dar por isso, tornou iguais as110
léguas de Álvaro Fernandes e as 60 de Nuno Tristão; implicitamente vem assim a
admitir um considerável erro para mais em ZURARA. ·Posteriormente, BAPTISTA DE
LIMA (m), OLlVEIRA BOLÉO (n) e DUARTE LEITE (o) inclinaram-se também para o
limite norte da Guiné Portuguesa. E esta continua também a ser a nossa opinião
(enseada de Varela).
VIAGEM DE ALV ARO FERNANDES
Antes
de investigar qual o seu términus transcrevem-se os textos de ZURARA e BARROS
nas partes que interessam. DIOGO GOMES não faz qualquer referência a esta
viagem; outros cronistas que a citam limitam-se a sumariar os dizeres de
BARROS, pelo que não vale a pena encher espaço com textos que
nada adiantam.
ZURARA,
CAP. LXXXVII (65)
Como
Alvaro Frrã tornou outra vez na terra dos Negros e das cousas que fez
«...O
navyo abitalhado, fezerom vyagem direitamente ao
Cabo
Verde, onde o outro anno tomarom os dous Guineus de que ja fallamos em outro
lugar, e dally passarorn ao Cabo dos Matos, e fezerom ally pouso por lançarem algüa
gentef
ora. E oomente por veerem a terra juntaronse sete, os quaes postos na praya,
acharom rastro de homees, que hyam per huü caminho, e seguindo em pos eles,chegarom
a huü poço, onde acharom cabras, as quaes pare que ally leixarom os Guineus, e
esto segundo penso que serya porque sentiryam que hyam despos elles. Ataa ally
chegarom os xpaãos, porque nom teverom ousyo de seguyr mais avante; e seendo
tornados a sua caravella, acrescentarom mais em sua viagem, e
lançando seu batel fora, achaarom em terra esterco dallifante de tamanha
grossura, segundo juizo daquelles que o viram, oomo podya seer huú homem; e por lhe nom parecer lugar pera fazer presa,
tomaronse outra vez a sua caravella. E hindo assy per a costa do mar, nom
passarom muytos dyas sairom outra vez em terra, na qual encontrarom hüa aldea,
onde sairom os moradores della come homeës que mostravom que queryam defender
suas casas, antre os quaaes vinha huü bem adargado com hüa
azagaia em sua maão, o qual veendo Alvaro Frrã, parecendolhe
principal
daquelles, foe rijamente a elle, e deulhe com sua lança tam grande ferida que
deu comi elle morto em terra, e tomoulhe a darga e o azagaya, aqual trouve ao
Iffante oom outras cousas, como ao dyante sera contado. Os Guineus veendo
aqulle morto, sobresseverom de sua peleja, nem os nossos nom viram tempo
nem lugar pera os tirarem daquelle temor, ante se tornarom a seu navyo, e no
outro dya forom a terra, alguü tanto dally mais afastados, onde viram
andar certas molheres daquellas Guinees, as quaes parece que andavam acerca de
huü esteiro apanhando marisco, e tomarom hüa dellas, que serya de idade ataa
xxx anos, com huü seu filho que serya de dous, e assy húa moça de xiii, naqual
avya assai boa apostura de membros, e ainda presença razooda segundo Guinee; mas
a força ·da molher era assaz pera maravilhar, cada tres que se ajuntarom a
ella, nom avya hi alguü que nom tevesse assaz trabalho querendoa levar ao
batel, os quaaes veendo a deteença que faziam, na qual poderya seer que sobrechegaryam alguús
daquelles moradores da terra, ouve huü delles acordo de lhe tomar o filho e
levallo ao batel, cujo amor forçou a madre de se ir apos elle sem muyta prema
dos dous que a levavam. Dally seguirom mais .avante alguü spaço, ataa que
acharom huú ryo, no qual fezerom entrada com o batel, e em hüas casas que
allly acharom filharom hüa mulher, e despois que ateverom na caravella, tornaram outra vez ao
ryo, com entençom de sobirem mais avante pera trabalharem de fazer algüa boa
presa. E indo assy seguindo suà viágem, vierom sobre elles quattro ou cinquo
barcos de Guineus, corregidos come homëes que queryam defender a sua terra,
cuja peleja o do batel nom quiserom sperimentar veendo a grande avantagem que
os contrairos tinham, temendo sobretodo o grande perigo que havya na peçonha
com que tiravam. E começarom de se recolher o rnilhor que poderom pera seu
navyo; mas veendo como huü daquelles barcos se adyantava muyto, voltarom sobre
elle, o qual tornando pera os outros, querendo os nossos chegar a elle ante que
se recolhesse, porque parece que era ja afastado boa parte de companhia,
chegousse o barel tanto que huú daquelles Guineus fez huü tiro contra elle, e
acertousse de dar com a frecha a Alvaro Frrã per a perna: mas porque elle era
ja avisado de sua peçonha, tirou aquella frecha muyto asinha, e fez lavar a chaga com ourina e
azeite. Desyhuntou há muyto bem com teriaga, e prouve a Deos que lhe aproveitou
como quer que sua saude passasse per gram trabalho, ca certos dyas
esteve em passo de morte. Os
outros da caravella, ainda que seu capitam assy vissem ferido, nom leixarom
porem de seguir avante per aquella costa, ataa que
chegarom a
hüa ponta darea, que se fazia em dereito de húa grande enseada, onde puserom
seu batel fora, e forom dentro pera veer a terra que acharyam; e seendo a vista
da praya, viram viir contra elles bem Cxx Guineus, huüs com
dargas e azagayas,outros com arcos; e tanto que forom acerca da augua, começarom
de tanger e bailar, come homeés afastados de toda tristeza; e os do batel
querendo scusar o convite daquela festa, tornaronse pera seu navyo.
E era esto a allem do Cabo Verde Cx legoas, e toda sua rota he geeralmente ao
sul. E esta caravell afoe mais longe este anno que todallas outras, pello qual
lhe foe dado de grado duzentas dobras, scilicet, cento que lhe
mandou dar o iffante dom Pedro, que entam era regente, e outras cento que
ouverom do ifante dom Henrique. E ainda se nom fora a infirmidade d’Alvaro
Fernandez, daqual foe muy apressado, a caravellas eguira mais avante; porem
foilhe mecessaryo de se tornar daquelle postumeiro lugar que ja disse, viindose
dereitamente aa ilha dErgym, e dally ao cabo do Resgate, onde acharom aquelle
Ahude Meimom, de que jafallamos per vezes em esta storya. E como quer que nom
trouxessem turgimam, porem assy per seus acenos, ouverom hüa Negra, que lhe os
Mouros derom por alguüs panos que trazyam; e se tam pouco nom fora, muyto mais
poderom aver, segundo o desejo que os Mouros mostravom. E dally fezerom sua vyagem pera
o regno, onde ouverom as dobras que ja disse, e mais outras rnercees do
Iffante seu snõr, que com sua viinda foe muy allegre pella avantagem que
fezerom em sua ida.»
BARROS,
DECADA l, LIVRO l, CAP. XlV (66)
(66) Segunda edição de 1945.
«…E
de quam desestrado aquècimento foi êste de
Nuno Tristão, tarn próspero aconteceu a Alvaro Fernandes, sobrinho de João
Gonçalves, capitão da Ilha da Madeira. O qual
neste mesmo
ano tornou outa vez a Guiné, passando desta viagem mais de cem léguas além de
Cabo Verde. E a «primeira cousa que fêz, foi dar em üa aldea, o senhor da qual
matou per suas próprias mãos, por êle, como homem animoso, vir ante os seus
cometer os nossos, cuja morte assi os espantou, que tomaram por salvação os pés. Os quais, como eram ligeiros e despejados de roupa, não
houve algum dos nossos que se atrevesse aos alcançar, nem menos se quiseram meter no mato, onde se embrenharam; e
tornando-se ao navio, tomaram duas negras que andavam mariscando.
Alvaro
Fernandes, como se queria vantajar dos outros
descobridores, passou mais avante, té chegar à bôca de um rio a que ora chamam
TABITE, que será além do Rio do Nuno trinta e duas léguas, onde o logo cinco
almadias vieram receber. E porque o caso de Nuno Tristão os fazia temer estas
entradas dos rios, não se quis meter em lugar estreito, e oontudo não se pôde
livrar de perigo, porque üa das almadlas, confiada em sua ligeireza, tanto se chegou ao batel, té que fizeram seu
emprego de
setas em a própria pessoa de Alvaro Fernandes.
O
qual,
como ja de cá ia provido pera esta erva de que os negros ali usavam, a poder de
triaga e de outras mèsinhas escapou da morte, e assi maltratado, como era homem
de ánimo,
passou mais avante té úa ponta de
área onde quisera sair, vindo a terra escampada e descoberta pera isso, mas
obras de cento vinte negros que Ihe saíram ao encontro lha defenderam com muita
frèchada, tóda com erva.
E
porque o Infante encomendava muito aos capitães que não rompessem guerra com os
moradores da terra que descobrissem, senão mui forçados, e isto depois
de lhe fazer suas amoestaçõcs e requerimentos da fé, paz e amizade, vendo Alvares
Fernandes que a sua saída, segundo se os negros dispunham e davam pouco pelos sinais de
paz, não podia ser sem custar a vida de algum dos nossos, não os quiz aventurar
à peçonha de que êle já tinha experiência, e contestou-se com ter descoberto mais terra que quantos capitães té então
tinham ido àquelas partes.
Com
a qual determinação partiu para êste reyno, onde foi recebido do InfanteDon
Hanrique com muita honra, e assi do Infante Dom Pedro, seu irmão, que então era
regente, cada um dos quais lhe fêz mercê de cem cruzados...»
É
fácil concluir que para a descrição dos sucessos da viagem não teve BARROS outra
fonte além de ZURARA. Tudo que ele diz não passa de um sumário deste, apenas
com uma ligeira variante: a de que os últimos negros que os navegadores viram
lhes impediram a saida em terra disparando frechas ervadas, facto que ZURARA
não refere, pois se limita a dizer que os indigenas estavam armados. O que
BARROS escreve não deve ser derivado de nova fonte, e é certamente uma ilacção.
Diz,
porém, BARROS que o rio onde Álvaro Fernandes foi ferido era o Tabite, que
localiza a 32 léguas além do rio Nuno. O valor deste argumento e a sua origem
serão analisados adiante. Antes de mais nada vejamos sumàriamente qual o âmbito
que os investigadores têm atribuído à viagem de Álvaro Fernandes.
Em
1841, SANTAREM dizia que o rio em questão era o rio de Lago das cartas
antigas (que na análise da viagem de Nuno Tristão se viu ser o actual Jurnbas)
e que a enseada onde iniciaram o torna-viagem ficava já para além da Serra Leoa
e era limitada ao sul pelo Cabo de Santa Ana (67).
Ern
1844 LOPES DE LIMA dizia que o rio talvez fosse o de Cacé (já na
actualcolónia da Serra Leoa) e que a enseada era a Furna de Santa Ana, 6
léguas a sul da serra (68).
ARMANDO
CORTESÃO (1931), guiando-se por BARROS, faz chegar o navegador perto da Serra
Leoa. Estranha, com razão, que SANTAREM ídentífique o Rio Tabite
com o de Lagos (69).
JOÃO
BARRETO, em 1938, identificou o Rio Tabite de BARROS, como Caabite de
DUARTE PACHECO, 11 léguas ao sul das ilhas dos Ídolos, afirmando parecer lícito concluir-se que
Álvaro Fernandes chegou a esse local, já na proximidade da Serra Leoa (70).
Em
1941, DUARTE LEITE, que traçou novas bases para o estudo das viagens à Guiné,
contestou com fortes argumentos o âmbito tradicionalmente atribuido à viagem de
Álvaro Fernandes, reduzindo o seu términus a pouco mais de 60 léguas além do
Cabo Verde 71).
Tal
opinião também seguiu DAMIÃO PERES, que, baseado nos mesmos argumentos, afirmou
que o navegador, quando muito, atingiria
o principio da actual Guiné Portuguesa (72).
Do
mesmo modo se pronunciou MAGALHÃES GODINHO, que apresentou a hipótese de a
enseada final ser a que se estende para o sul do Cabo Roxo (ª).
As
indicações que de ZURARA se extraem e que podem ter alguma
utilidade para o apuramento do términus da viagem são as seguintes:
1
- Depois do desembarque no Cabo dos Mastros a
caravela avançou para o sul por espaço e tempo não indicados até um local,
impossível de identificar, onde de novo desceram os mareantes em terra,
encontrando aí excremento de elefante.
2
- Daí a caravela retomou a navegação, e «não passados muitos dias» efectuou-se novo
desembarque, perto de uma aldeia, sendo morto um indígena.
3
- No outro dia, e mais adiante já, mais uma vez desceram em terra, num
local onde algumas mulheres apanhavam marisco num esteiro.
4
- Novamente reencetada a navegação para sul, após percorrido «algum espaço» - o
que indica não ser grande - chegaram a um rio.
5
-
Subiram o rio num batel, sendo perseguidos a certa altura por embarcaçóes
indígenas. Na retirada Álvaro Femandes foi atingido numa perna por
uma frecha, que o cronista diz ser envenenada. O navegador retirou-a
prontamente e desinfectou o ferimento, o que não obstou a que estivesse alguns
dias «em passo de morte».
6
- A caravela prosseguiu para além do rio por espaço e tempo não indicados, até
chegar a «uma ponta de areia, que se fazia em direito de uma grande enseada».
7
- Na
praia avistaram indígenas armados de «dargas, zagaias e arcos», que se
entregaram a manifestações de alegria, tocando e bailando.
8
- A enseada fica a 110 léguas ao sul do Cabo Verde.
9
- A rota até ela «é toda geralmente ao sul».
10
- A caravela de Álvaro Fernandes foi naquele ano mais avante que todas as
outras, pelo que o navegador foi recompensado.
(67) ZURARA, B 3, pgs. 408 e 410, notas.
(68) LOPES DE LIMA, B 30. Vol. I, Parte II, pág. 83.
(69) CORTESÃO (Armando), B 16, págs. 21-2.
(70) BARRETO, B 6, págs. 37-38.
(71) LEITE, B 29, págs. 167-8.
(72) PERES, B 36, pâg. 101.
(73) MAGALHÃES GODINHO, B 32, págs, 249-50.
a)
Rio
Tabite
Antes
de prosseguir torna-se indispensável fazer a identificação do Rio Tabite de
que fala BARROS.
As
mais antigas referências a esse rio vêm em DUARTE PACHECO (c. 1505) e VALENTIM
FERNANDES (c. 1507).
É de notar que na descrição da
costa do Rio de Buba à Serra Leoa há entre os dois grandes divergências,
principalmente no que respeita à localização de rios que ambos designam pelo
mesmo nome. No entanto nalguns pontos há acordo, o que já permite averiguar
alguma coisa.
DUARTE
PACHECO refere quatro rios entre o Cabo de Sagres e a Serra Leoa: Cristal,
Caabite, Tamarae Case (74).
Na
compilação de VALENTIM FERNANDES o Cabite não vem no «Livro de Rotear» final,
mas sim na descrição inicial que começa em Ceuta e chega à Serra Leoa. Dessa descrição
a parte até Arguim tem noções extraídas de ZURARA e de outras fontes
desconhecidas; o relato de Arguim e do seu interior foi ouvido de JOÃO
RODRlGUES; o que se refere aos reinos negros, para o Sul do Senegal,
parece já ser de origem diferente, com uma pequena parte tirada de CADMOSTO; o
fecho,relativo à Serra Leoa, deduz-se provir de ÁLVARO VELHO.
Ê
talvez já na parte deste que surge a referência ao Rio de Cabitos,que se
depreende ficar perto do Cabo de Sagres (75). Quer do «Livro de Rotear», quer
do «Esmeraldo» com segurança se deduz que o Rio de Case é o actual Skarcies
das cartas inglesas (76).
A
mais antiga carta onde conseguimos encontrar o nome do rio que tentámos
localizar é uma devido a Luís Teixeira, de c. 1600; nela,a seguir ao Cabo de Sagres,
vem a palavra Tabite. Depois disso volta-se a encontrar a mesma
designação, igualmente após Cabo de Sagres, no Atlas dito da «Duqueza de Berry»
(1630?) e numa carta de João Teixeira Albernaz de 1667.
É fácil portanto concluir que o Rio Cabite ou Tabiteé
um dos que fica entre o Cabo de Sagres e o Rio Case. Nas cartas actuais os rios
da região são oManca, o Merebaia, o Forikaria e o Mellakori
ou Mellacorée Os dois primeiros são bastante pequenos, enquanto que
os dois últimos têm uma barra bastante ampla (de cerca de 5 milhas). DUARTE
PACHECO diz do Cabite que tem «urna boca larga», o que não aplica ao de Cristal
nem ao de Tomara. De onde se infere finalmente que o Rio de
Cabite ou de Tabite é o Forikaria ou o Mellakori, mais
provavelmente o prirneiro, porquanto o roteirista coloca entre o Cabite e
o Case o Rio de Tamara, que deverá portanto ser o Mellakori.
Os
rios Forikaria e Mellakori são contíguos, pois as suas águas convergem
junto das barras, apenas separadas por uma estreita faixa de terra. BARROS diz
que o Rio Tabite fica 32 léguas além do Nuno. Medidaessa distância
na carta ela vem a dar exactamente a meio do estuário comum dos dois rios acima
indicados, o que comprova a identificaçãojá deduzida (77).
(74) PACHECO PEREIRA, B 34, Livro 1, Cap. 32.
(75) VALENTIM FERNANDES, B 45, págs. 88 e 218.
(76) O «Livro de Rotear» refere a caracteristica ilha na
sua foz, e indica ser o rio imediatamente ao norte do que corre junto do Cabo Lelo (Rio de Maypula), bordejando a Serra Leôa. O mesmo se conclui do «Esmeraldo», que no entanto denomina este último rio de Rio de Birtombo.
(77) CASTILHO, B 15, I, pág. 190, idmlifica, erradamente, a
nosso ver, o Tabite com o Componi.
b)
Distância
além do Cabo Verde
As
referências de ZURARA aos desembarques de Alvaro Fernandes após o Cabo dos
Mastros não fornecem qualquer indicação que permita averiguar o espaço e o
tempo entre eles, o que impossibilita a sua localização.
Já
a propósito da viagem de Nuno Tristão se viu que o cronista exagera sempre as
distâncias, com erros em excesso de 23 % a 55%. No caso de Nuno Tristão, admitindo, como parece mais
lógico, que o términus atingido foi o Rio Jumbas, o erro seria de 60%; pois
ZURARA disse ser de 60 léguas uma distância que na realidade não vai além de 24.
Aplicando
estas conclusões à viagem de Álvaro Fernandes, obtem-se:
1)
- Para umerro nulo - as 110 léguas vêma findar no Cabo daVerga.
2)
- Para um erro de 23% - as 110 léguas reduzem-se a 85, o que localisa o
extremo atingido por alturas da parte sul do arquipélago dos Bijagós (em linha
recta e passando por cima do arquipélago terminariam no rio Cacine).
3)
- Para um erro de 55 % - as 110 léguas reduzem-se a 50, o que localiza o
extremo atingido na Ponta Varela.
4)
- Para um erro de 60% - as 100 léguas reduzem-se a 44, o que localiza o
extremo atingido no Rio Casamansa.
Seguindo
o mesmo raciocínio que foi aplicado no caso de NunoTristão, a exclusão dos
erros de 0% e 23% é imediata. Nessas hipóteses, na realidade, o banco e
arquipélago de Bijagós teria sido avistado e passado, pelo menos em parte, e o
cronista não faz a mais pequena referênciaao facto, o que o torna fortemente
inverosímil, pois não deixaria de haver desembarques nas ilhas, exploração dos
canais, constatação daexistência de um grande rio, o Geba, contactos com
indígenas, etc. (LEITE, pág. 167).
Já
se viu também como era difícil e perigosa a navegação em toda esta zona, o que
torna muito improvável o ter-se passado, na mesma via em que foi descoberto, o
arquipélago dos Bijagós.
Por
esta mesma ordem de ideias difícil também se torna aceitar que o navegador
tivesse chegado ao Rio Forikaria (Tabite). Acresce ainda que este rio
fica a cêrca de 135 léguas ao sul do Cabo Verde. Estranho seria que o cronista,
que sempre exagera, neste caso ficasse aquém da distância real, errando, por
defeito, em mais de 20%.
Aceitar
que Álvaro Fernandes chegou ao Rio Tabite vem a significar ainda que nos 12
anos de 1434-1446 se descobriram cerca de 375 léguas de costa, e que nos 14
seguintes apenas... 12, que tantas são as que vão do Rio Forikaria à Serra
Leôa, términus das viagens henriquinas. Creio ser bastante absurda semelhante
conclusão - do que se deduz haver erro nas premissas. Que a Serra Leôa foi o
limite das viagens até 1460 parece ser já hoje facto suficiente aprovado por
DUARTE LEITE, apesar das afirmações de JAIME CORTESÃO. (78) A premissa errada é portanto a que estabelece o
limite da viagem de Álvaro Fernandes no Rio Forikaria ou Tabite.
Do
que se conclue finalmente que esse limite tem de se procurar muito mais para o
norte, antes do Geba e dos Bijagós, e que SANTARÉM,
LOPES DE
LIMA, ARMANDO CORTESÃO e JOÃO BARRETO
erraram grandemente, arrastados por BARROS.
Não
é difícil imaginar como nasceu a ideia do Rio Tabite neste cronista: convencido
de que o términus de Nuno Tristão havia sido o Geba e como ZURARA referira 60
léguas para ele, mediu para além desse rio umas 50 léguas para prefazer as 110
que ZURARA indicava para aviagem de Álvaro Frmaudes - e veio assim a encontrar o
primeiro rio que as cartas mencionavarn para além do Cabo de
Sagres, o Rio Tabite:
Do
Cabo Verde ao t.énninus de A. Fernandes.. 110 léguas
Do
Cabo Verde ao términus de N. Tristão (que seria o Gêba)...60 léguas
Do Rio
Nuno ao Rio Tabite (BARROS)..32
léguas
192léguas
-92léguas
18
léguas
Restariam
assim 18 léguas para a distância do Gêba ao Nuno, no que não há grande erro,
pois ela é de 23 léguas.
(78) LEITE, B 29, págs. 243-269.
c)
A
recompensa
ZURARA
indica que, no regresso ao reino, Álvaro Fernandes recebeu200 dobras dos
infantes D. Pedlro e D. Henrique por nesse ano terido mais além que todos os
outros navegadores. Este facto comprovaque Álvaro Fernandes ultrapassou o local
onde morreu Nuno Tristão.Não parece deslocado supor que aquele percorreu, para
além doCabo Verde, uma distância aproximadamente dupla da deste.
A
flecha ervada
Pode-se
tirar do ataque que Álvaro Fernandes sofreu dos indígenas alguma indicação de
carácter etnográfico que ajude a identificar o local? Não é de crer.
Só
Álvaro Fernandes foi atingido por uma flecha, mas não morreu, apesar de o cronista
dizer que ela era envenenada. Surge agora a dúvida: se a morte não sobreveio,
foi em virtude do tratamento (e a eficácia do remédio aplicado é bastante
discutível...) ou resultou do facto de não haver veneno na flecha? Embora
ZURARA aiirme que o havia, e que Álvaro Fernandes esteve à beira da morte,
poderá isso ser prova suficiente? Não resultará da suposição, então geral, de
que todos os indígenas ao sul do Cabo Verde aplicavam veneno nas armas? No caso
de Nuno Tristão não pode haver dúvidas: de cerca de vinte e dois feridos só
dois escaparam. Uma hecatombe tal explica-se pelo
veneno.
Com Álvaro Fernandes já assim não sucede, e creio que nada se pode concluir de
seguro.
Últimos indígenas vistos
Na
enseada final um batel chegou-se a terra, e, já perto, dele viram que à praia
acorria um grupo de indígenas armados de «dargas, azagaiase arcos», que se
entregaram a manifestações de alegria «tangendo e bailando».
A
indicação das armas nada permite concluir quanto ao grupo tribal dos indlgenas
em questão. Os tangeres e bailados parecem contudo revelar que
eles não haviam ainda visto portugues. O seu proceder contrasta
com o dos que atacaram Nuno Tristão (mandingas, como se viu), e não é ousado
supor tratar-se de um outro agrupamento étnico. E como já se viu que Álvaro
Fernandes não deve ter atingido o Geba, lógico é concluir-se serem tais
indígenas os que habitavam na zona costeira que vai do Combo (pouco ao sul do
Gâmbia) até ao rio Cacheu, e que se seguiam, para o meio dia, aos mandingas -
os Felupes.
Conclusões
Já
se viu que Álvaro Fernandts não deve ter chegado ao Geba nem deve ter avistado
os Bijagós.
Em
face das 110 léguas indicadas por ZURARA e da recompensa que recebeu inferiu-se
que foi mais além que Nuno Tristão, e que percorreu, a partir do Cabo Verde,
uma distância aproximadamente dupla.
Como
Nuno Tristão ficou muito provàvelmente pelo Rio Jumbas (a 24 léguas do Cabo
Verde - erro de 60%), aquela consideração
vem
a colocar por alturas do Cabo Roxo (a 48 léguas do Cabo Verde – erro de 56 %) o
términus de Álvaro Fernandes.
E
esta simples constatação está de acordo com tudo
o mais. O rio onde o navegador foi atacado seria o Rio Casamansa, e a enseada final a extensa aba
arenosa de Varela, que se alonga desde o Cabo Rôxo à foz do Cacheu.
Desta maneira já o cronista podia escrever que a rota até à enseada «é toda
geralmente ao sul», pois o Cabo Roxo marca exactamente o ponto onde a costa
inftecte para sueste (facto já registado por MAGALHÃES
GODINHO,
II, 250).
Aceitar
que o rio foi o Cacheu parece menos provável, pois já set eria percorrido um
razoável espaço ao rumo sueste, e após tal rio e antes de Geba não há enseada
alguma notável que se possa contrapor à característica de Varela.
Recuando
para norte do Casamansa cair-se-ia no Gâmbia - o que não parece também
indicado, por muito próximo do términus de NunoTristão.
Quanto
aos indígenas, na zona do Casamansa e de Verela habitavam os Felupes – que já vimos não usarem flechas ervadas (o que explicariaa
razão porque não morreu Alvaro Fernaudes). Era lógico atacarem,
visto que lhes haviam capturado uma mulher. Natural era a sua reacção em Varela
- pois antes não haviam visto caravelas nem brancos a persegui-los.
Em
resumo: Álvaro Fernandes, no ano de1446, atingiu muito provàvelmcnteo limite
norte da actual Guiné Portuguesa, depois de ter descoberto o rio Casamansa.
Depois
do encontro de Nuno Tristão com os mandingas era o segundo agrupamento tribual
com assento no presente território português que se descobria.
EXPEDIÇÃO
DE 8 CARAVELAS. ESTEVÃO AFONSO, FERNÃO VILARINHO, LOURENÇO DIAS, LOURENÇODE
ELVAS, JOÃO BERNALDEZ (1446) (79)
Comecemos
mais uma vez por transcrever os textos de ZURARA e BARROS. DIOGO GOMES não
refere esta expedição.
ZURARA,
CAP. 1.XXXYIII (80)
Como
as nove caravellas partirom de Lagos, e dos Mouros que filharom.
«Como
quer que as novas da morte deNuno Tristão pozessem grande receoa muytas gentes
do nosso regno de quererem prosseguyr a guerra que tiinhamcomeçada, ca dezyam
huús contra os outros que era muy dovidosa cousa cometer pelleja com homeës que
tam claramente trazyam amorte consigo; porem nomfalleceo hi quem com boa
voontade filhasse a empresaca posto que o perigoo fosse tam manifesto pera todo
abastavamos coraçooës daquelles que desejavam
cobrar nome de boõs, e specialmente se moviam a ello pollo conhecimento que
avyam da voontade do Iffante, veendo os grandes acrecentamentos que fazya aaquelles que se em ello
trabalhavam, ca segundo Vegecio, ally sam os homeẽs fortes onde a foortalleza he gallardoada. E
porem se moverom em este anno certo scapitaaés, com nove caravellas, pera irem
em aquella terra dos Negros, dos quaes o primeiro foi Gil Eannes, cavalleiro
morador na villa de Lagos: e o segundo huu nobre scudeiro, criado na camara do
Iffante de moço pequeno, o qual com huú mancebo muy ardido, e nom menos
acompanhado doutras muytas vertudes, cujos feitos
achareis mais compridamente na
cronica
do regno, specialmente onde
se falla das grandes cousas que se fezerom em Cepta; e este avya nome Fernam Vallarinho.
O terceiro era aquelle Stevam Affonso, de que ja fallamos em outros lugares desta nossa storya, o qual
levava sob sua capitania três caravellas. Ally era Lourenço Diaz, de que ja
fallamos antes desto, e assi Lourenço Delvas, e Joham Bernaldez pilloto, que
levavam cada huú sua caravella.
E era ainda em esta companhya húa caravella do Bispo do Algarve, de que era
capitam huú seu scudeiro. As quaes per ordenança do Iffante se forom aa Ilha da
Madeira pera receberem ally suas bitalhas. E da dicta ilha partirom com estas
caravellas que de ca forom, dous navyos, scilicet, huú de Tristam; huü
daquelles capitaaés que ally moravom, de que elle mesmo levava capitanya, e
outro em que era Garcia Homem, genro de Joham Glli Zarco, que era outro capitam…
E
depois de seu grande trabalho que acerca
dello ouverom, visto como nom podyam fazer presa, tornaronse as duas caravellas da
ilha, e tambem Gil Eannes, aquelle
cavalleiro de Lagos; e os outros forom sua
vyagem atee chegarem a allem do Cabo Verde Lx. legoas, onde
acharom huü ryo que era assaz de boa larrgueza, no qual entrarom com suas
caravellas: mas nom fez aquella entrada muy proveitosa peraa caravelfa do
Bispo, porquanto se acertou de topar
em
huü banco de area, de que abryo da tal guisa, que o nom poderom dally mais
tirar; pero scaparom as gentes com todallas outras cousas que lhes della prouve
tirar.Mas enquanto alguús em esto ocupavam, Stevam Affonso, e seu irmaaõ, forom
em terra, cujos moradores eram em outra parle, e com entençom de os ir buscar partiram
dally, guyando-se per alguú sentido que avyam do rastro que achavam acerca do
lugar. E seguindo assy per seu
caminho algüa peça, disserom que achavam terra com grandes sementeiras, e
muytas arvores dalgodom, e muytas herdades sementadas darroz, e assy outras
arvores de desvairadas maneiras.
E
diz que toda aquella terra lhe parecia a maneira de pauues. E parece que se
adyantara Diegaffonso ante os outros, e com elle XV, daquelles que mais traziam
o desejo prestes de chegar a algum feito, entre os quaes era hun moço da camara
do Iffante, que se chamava Joham Vílles, que entre aquelles hia por scrivam. E
entrando aissy per huu arvoredo de
grande spessura, sairom a elles de revesos Guineus com suas azgayas e arcos,
chegandosse a elles quanto mais
podyam. E assy quis a ventura que de sete que forom feridos, os cinquo ficarom logo ally mortos,
dos quaes os dous eram Portugueses, e os tres strangeiros. E estando assy o
feito em este ponto, chegou Stevam Affonso com os outros que viinham detras, o
qual veendo o periigoso lugar em que eram, recolheos todos o milhor que pode,
no qual recolhimento ouverom assaz
traballho,
ca os Guineus eram muytos, e com armas tam empeecivees como veedes que eram
aquellas que em tam breve matavam os homeës com ellas; onde receberom avantagem de louvor
quatro mancebos, que forom criados na camara do lffante, dos quaes o princiçal
era aquelle Diego Gllz, nobre scudeiro, de cuja vertude ja em outras partes
leixamos fallado. Era o outro huu Henrique Lourenço, tambem mancebo desejoso de
fazer por sua honra. Huú dos
oulros dous avya nome Affonsennes, e outro Fernandeannes. E tanto que forom em
suas caravellas teverom
seu conselho, no qual acordarom dese
tornar, visto como ja eram descubertos, e mais que tiinham seus navyos empachados com as
guarniçooes que tirarom da caravella do Bispo. Mas que elles esto assy
dissessem, eu me tenho mais que a principal
causa
de sua partida foio temor dos imiigos, cuja periigosa pelleja era muyto de
recear a qualquer homem entendido,
porque
nom se pode chamar verdadeira fortelleza,s em outra mayor necessidade que elles
tiinham, quererem tomar contenda com quem
sabyam que lhes tanto dano podya
fazer...»
BARROS,
DÉCADA I, LIVRO I, CAP. XIV (81)
«…Estas
mercês e
honras animavam mais aos homens a seguir êste descobrimento do que os metia em
temor o caso de Nuno Tristão, de maneira que neste mesmo
ano se armaram dez caravelas de que êstes eram os capitães: Gil Eanes cavaleiro
morador em Lagos, Fernão Valarinho, homem mui experimentado nas cousas da
guerra, principalmente em Ceita, onde êle fêz honrados feitos. Estêvão Afonso,
Lourenço Diase João Bernaldes, pilôto, todos homens mui honrados, e os mais
deles criados do Infante, com os quais ia tambem úa caravela do
Bispo doAlgarve e outras três dos moradores de Lagos.
Os
quais, juntos com üa conserva per mandado do Infante, passaram pela Ilha da
Madeira pera tomar algum mantimmto e também porque com eles se haviam de
ajuntar duas caravelas mais: üa de Tristão Vaz, capitão de Machico, e outra de Garcia
Homem, genro de João Gonçalves, capitão do Funchal. E de aqui da ilha foram
todos Gomeira, a levar os canários que atrás dissemos que João de Castilha e os
outros capitães saltearam, os quais iam em os navios de Lagos per mandado do
Infante, mui contentes e satisfeitos das mercês e dádivas
que lhe deu.
Com
ajuda dos quais quiseram os nossos fazer üa entrada na Ilha da Palma
e por serem sentidos não lhe sucedeu a saída como cuidaram, que
foi causa de os capitães das caravelas da Ilha da Madeira de
tomarem dali, porque parecerem sòmente vindos a êste feito da Ilha da Palma; e
os outros fizeram sua derrota, caminho do Cabo Verde.
Na
qual parte,
por razão da terra ser mui apaülada e chea de arvoredo, no modo de peleja
ajudavam-se dos negros tam mal que sempre recebiam mais
dano dêles do que lhe faziam, como lhe aconteceu
esta vez perdendo cinco homens que morreram às frechadas por causa da erva de
que usavam, e assi perderam em um banco de area a caravela do Bispo do Algarve…»
(79) De Lisboa partiram 9 caravelas, a que se juntaram 2 na Madeira. Porém a carevella
de Gil Eanes e a da Madeira não prosseguiram álém das Canárias, motivo por que
referimos apenas 8 navios, os que na realidade foram à Guiné.
(80) Segundo a edição de 1841.
(81) Segundo a edição de 1943.
É
fácil ver que BARROS se limita a resumir os dizeres de ZURARA.
Sumàriamente,
as indicações que deste se tiram, e que podem ter utilidade para a
ídentificação do términus da viagem, são as seguintes:
1
- Passaram 60 léguas para além do Cabo Verde.
2
– Aí encontraram um rio, de «assaz boa largueza», no qual entraram as caravelas.
3
- A caravela do Bispo do Algarve encalhou num banco de areia,sendo abandonada.
4
- A terra tinha grandes sementeiras, muitas árvores de
algodão, arroz em profusão e bastante arvoredo. A abundância de água dava-lhe aspecto
pantanoso.
5
- Parece que os indígenas utilisavam flechas envenenadas. O cronista assim o
afirma, acrescentando mesmo que foi o receio destas a principal causa de os
navios não prosseguirem mais para o sul. De setef eridos morreram logo cinco.
Como
com as outras viagens principiemos por ver qual o âmbito que os investigadores
têm atribuido a esta.
SANTARÉM
diz que «é indubitàvelmente o Rio Grande [actual estuário do Geba] onde
eles chegaram». (82)
Em
1931 ARMANDO CORTESÃO disse também que as caravelas
entraram no Geba, salientando ser então a primeirn vez que os portugueses «pisaram
o solo da actual Guiné Portuguesa». Referindo-se à âncora que o Nomimansa deu a
Diogo Gomes observou que ela não devia pertencer à caravela de Nuno Tristão,
mas a outra, possivelmente a do Bispo do Algarve. (83)
Em
1938 JOÃO BARRETO situa términus da viagem entre o Gâmbia e o Geba, notando que
a referência às sementeiras de arroz coloca o acontecimentopor alturas do mês
de Agosto. (84)
Em
1941 DUARTE LElTE chama a aienção para o facto de ZURARA dar a mesma distância
para as viagens de Nuno Tristão e Estevão Afonso (60 léguas além do Cabo
Verde), mas dizer só na segunda que o rio tinha uma embocadura larga, não
referindo também a morte de Tristão, como seria lógico, se ela se tivesse dado
no mesmo local. Conclui assim que se trata de dois rios diíerenles e que ZuRARA
errou ao dizer que ambas as expedições chegaram a 60 léguas para além do Cabo
Verde. (85)
Finalmente,
em 1945, MAGALHÃES GODINHO, baseando-se nas 60 léguas e nalgumas
informações de carácter local extraídas de CADAMOSTO e VALENTIM FERNANDES,
inclina-se para ver no rio em questão o Casamansa. (86)
(82) ZURARA, B 3, pág. 414, nota.
(83) CORTESÃO (Armando), B 16, pags. 22-3 e 29.
(83) CORTESÃO (Armando), B 16, pags. 22-3 e 29.
(84) BARRETO, B 6, págs. 35-36.
(85) LEITE, B 29, pág. 166, nota.
(86) MAGALHÃES GODINHO, B 32, TI, pág. 254.
Passemos
agora à análise dos vários elementos atrás indicados.
c)
Distância além do Cabo Verde
Cabem
aqui as considerações já atrás expostas sobre os erros de ZURARA e a pouca
precisão do cálculo de distâncias nas primeiras viagens.
Resumindo:
1)
Para um erro nulo - as 60 léguas viriam a terminar por alturas do Rio
Cacheu (seguindo de perto os contornos da costa) ou do Geba (navegando pelo
largo).
2)
Para um erro de 23 % - as 60 léguas reduzem-se a 46, o que situa
o términus entre o rio
Casamansa e o Cabo Roxo.
3)
Para um erro de 55 % - as 60 léguas reduzem-se a 27, o que faz terminar a viagem no
Gâmbia.
4)
Para um erro de 60 % - (análogo ao provável de Nuno Tristão) - as 60
léguas reduzem-se a 24, e o términus cairia no Rio Jumbas.
O
cronista dá Nuno Tristão e Estevão Afonso como chegados aigual distância para
além do Cabo Verde.
Mas,
como com razão nota DUARTE LEITE (pág. 166, nota), é estranho que ZURARA só na
segunda dessas viagens fale da notável largurado rio e não refira então, como
seria lógico, o anterior insucesso de NunoTristão.
É-se
assim levado a concluir que, apesar da identidade de distâncias,se trata de
dois rios diferentes.
Este
facto serviu a DUARTE LEITE para afirmar que o cronista errou ao referir a distância
para a segunda viagem. Creio, porém, que o erro tem fácil explicação. De
Sangomar Pt. ao Cabo de Santa Maria vão umas escassas sete
léguas, e nesse espaço desembocam o Salum (rio dos Barbacins), o Jumbas
(rio de Lago), o Banjala, o Jinnak e o Gâmbia. Ora
ZURARA não leva geralmente a aproximação das distâncias que indica além das
dezenas de léguas. Já se viu que Nuno Tristão chegou muito provàvelmente ao
Jumbas. Estevão Afonso poderia ter estado noutro dos rios das imediações, e a
diferença de distâncias seria, no máximo, de 4 léguas. Tal diferença, para o
grau de aproximação normal de ZURARA, é perfeitamente desprezível, e por isso
não é de estranhar que o cronista refira, nos dois casos, a mesma distância.
Julgo,
portanto, licito concluir que Estevão Afonso chegou a um rio próximo daquele
atingido por Nuno Tristão. A escolha deve assim fazer-se entre os que
desembocam entre Sangomar Pt. e o Cabo de Santa Maria. O Banjala e Jinnak são
demasiado insignificantes para poderem ser subidos pelas sete caravelas. O
Salum também não parece merecera designação
de «assaz
largo». Restam o Jumbas e o Gâmbia. O primeiro foi aquele onde mais
provàvelmcnte chegou Nuno Tristão; além disso a sua barra é bastante difícil e
VALENTIM FERNANDES diz que só a passam os navios pequenos
(87)
(notar que no caso de Nuno Tristão a caravela ficou de fora do rio, e foram os
batéis que o subiram). Parece portanto ser o Gâmbia o mais indicado.
(a)
Natureza da região
Os
informes que ZURARA dá são demasiado gerais para poderem servir para qualquer
identificação. Sementeiras de arroz, árvores de algodãoe outras em abundância,
«lalas» e «bolanhas» (os «paúes» do cronista) encontram-se, mais ou menos
uniformemente, desde o Salum à Serra Leoa.
Não
julgo por isso que tenha valor o argumento de MAGALHÃES GODINHO, que se baseia
naquelas indicações, comparadas com a descrição de VALENTIM FERNANDES, para
concluir pelo Casamansa.
87) VALENTIM FERNANDES, B 45, pág. 72.
b)
Flechas envenenadas
O
cronista diz que as flechas eram envenenadas, atribuindo mesmo ao facto a razão
de os mareantes não terem prosseguido para sul. A larga percentagem de
falecidos entre os feridos e a rapidez da morte («ficaram logo ali mortos»)
parece dar-lhe razão.
A
ser assim, o Casamansa e o Cacheu apresentam-se como muito pouco prováveis. Na
foz de ambos habitavam os Felupes - que já vimos não empregarem veneno nas
armas. No Casamansa seguiam-se a eles,para o interior já, os Jabundos e os
Banhuns, e no Cacheu os Banhunse Brames, de quem também não temos
noticia de envenenarem as flechas.Não sabemos o espaço por que subiram o rio,
mas deve ter sidobastante restricto, e não se afigura fácil gue ultrapassassem
estes agrupamentos étnicos para virem a encontrar os Cassangas e Mandingas
que,pelo menos os últimos, eram mestres na arte do veneno.
(c)A
caravela encalhada
O
encalhe da caravela do Bispodo Algarve serviu também de argumentoa MAGALHÃES GODINHO
para se pronunciar pelo Casamansa, baseado nos característicos baixos da foz
deste rio, referidos já por VALENTIM FERNANDES.
Mas
a barra do Gâmbia, embora seja muito mais fácil, também tem bancos perigosos,
de que já DUARTE PACHECO (I, 29.º) fala:
«o dito rio de Guambea, temh uma muito grande
enseada, e hum muito grande
palmar que dura grandes duas leguoas & mais & no peguo desta ponta quasy em mar della huma leguoa estaa
huma baixa de pedra que tambem tem area que se chama a baixa de Santa Maria em
que nom ha mais de huma braça daugua sobre ella & he muy perigosa & já se
aly perderam nauios».
O
encalhe da caravela podia portanto ter-se dado também na barra do Gâmbia, o que
diminui o valor do argumento de MAGALHÃES GODINHO.
Já
atrás, na análise da viagem de Nuno Tristão, se viu que a âncora que o
Nomimansa entregou a Diogo Gomes não devia pertencer à
caravela do primeiro. Como já se disse também, ARMANDO CORTESÃO admite a
hipótese de ela provir do navio do Bispo do Algarve.
Não
parece forçado aceitar esta hipótese, tanto mais que Diogo Gomes refere que os
indígenas levaram a caravela para dentro do rio e a destruiram. É por isso
provável que a conseguissem desencalhar e, aproveitando a enchente, a fizessem subir
o rio. E, desmantelada por eles ou pela acção do tempo - tanto
mais que é natural não a ter deixado em boas condições o encalhe - uma âncora
sua viria a ficar em poder do Niumimansa.
Evidentemente
que este argumento não tem o valor de uma certeza - pois podia tratar-se de
outro navio - mas nem por isso deixa de constituir apreciável indicio a juntar
aos já apontados.
Conclusões
Em
face do
que ficou exposto parece lícito admitir que no ano de1446 uma expedição de 8
caravelas chegou à barra do Gâmbia. Aí se perderia um dos navios por encalhe.
Estevão Afonso e alguns dos seus companheiros desembarcaram em terra, travando
luta com os indígenas.
Pela
segunda vez, e no mesmo ano, os portugueses estabeleciam
contacto
com os NiuminKas. Nos rios e em terra essas relações iniciais revestiam-se de
carácter bélico.
O
rio Gâmbia era assim descoberto e nas suas margens
efectuava-se o primeiro desembaque. Daí a poucos anos um ousado navegador
subi-lo-ia até aos primeiros rápidos, a 400 quilómetros da foz, estabelecendo
relações pacificas com o povo que habitava as suas margens - o mandinga.
Desta
maneira se estava conseguindo um dos objectivos que D. Henrique tão
ardorosamente procurava - o ouro da Guiné e do Sudão. O Gâmbia revelar-se-ia a
grande via fluvial de penetração que levaria ao importante mercado aurífero de
Cantôrá, na órbita do Império Mandinga.
(a)1446- Estêvão Afonso
Viagem
referida apenas por ZURARA (Cap. LXXXVIII) e BARROS (Déc. I, Liv. I, Cap. XIV).
Indicações
principais:
ZURARA
e BARROS
1
- Passaram 60 léguas para além do Cabo Verde.
2
- O términus foi num rio largo.
3
- Uma caravela encalhou à entrada do rio.
4 - Parece que os indígenas
empregavam flechas envenenadas.
Principais
interpretações dos historiadores e investigadores acerca do térmlnus:
a)
1841 - VISCONDE DE SANTARÉM (B 1) - Rio Grande.
b)
1868 - R. HENRY MAJOR (B 26) - Rio Grande.
c)
1896 - C. R. BEAZLEY e E. PRESTAGE (B 2) - Rio Grande.
d) 1931 - ARMANDO CORTEZÃo (B 12) - Rio Grande.
e)
1938 - JOÃO BARRETO (B 4) - Ponto entre o Gâmbia e o Geba.
f) 1941 - DUARTE LerTB (B
22) - Rio diferente do descoberto por Nuno Tristão.
g) 1945 - MAGALlHÃESGODINHO (B 25) - Rio
Casamansa.
h)
1946 - A. TEIXEIRA DA MOTA (B 33) - Rio Gâmbia.
i) 1946 - A. J. DIAS DINIS (B 14) - Rio Grande.
j) 1946 - JOSÉ DE OLIVEIRA
BOLÉO (B 28) - R. de S. Pedro ou R. das Ostras.
A
identicidade do número de léguas percorridas para além do
Cabo Verrde em relação à viagem de Nuno Tristão levou naturalmente a ooncluir que
foi atingido nos dois casos o mesmo rio.
DUARTE
LEITE (f) fez porém notar que o cronista só agora diz tratar-se de um rio
largo, e não refere a tragédia de Nuno Tristão como ocorrida nele. Objectou
portanto que deve haver engano no facto de ZURARA indicar nos dois casos a
mesma distância, e que se trata de dois rios diferentes.
MAGALHÃES
GODINHO (g), baseado em certos elementos de carácter local, pronuncia-se pelo
Casamansa. No nosso traballlo (h), admitindo tratar-se de dois rios diferentes,
explicámos de maneira simples o chamado erro de ZURARA: sendo dois rios
próxirnos, e no caso de Nuno Tristão um dos braços do Salumn-Jumbas, o de
Estêvão Afonso poderia ser uma das imediações, o que dava a distância máxima de
4 léguas entre eles; como ZURARA arredonda geralmente as distâncias para as
dezenas de léguas, tudo fica explicado.
Pondo
de parte os elementos de MAGALHÃES GODINHO, por não provarem, excluímos o
Casamansa e pronunciámo-nos lògicamente pelo Gâmbia, com base em argumentos
coerentes. Apresentámos ainda a hipótese de que a âncora recolhida nesse rio
por Diogo Gomes, 10 anos depois, poderia ser a do navio encalhado.
DIAS
DINIS (l) voltou à tese do Rio Grande, com os fundamentos que
decorrem do que dissemos acerca da viagem de Nuno Tristão e por entender que se
trata nos dois casos do mesmo rio.
OLIVEIRA
BOLÉO (m)
inclina-se porém para a opinião de serem dois rios diferentes, neste caso o de
S. Pedro ou o das Ostras, entre o Gâmbia e o Casamansa.
DUARTE
LEITE (B 23, págs. 129, nota 25) mostrou que de ZURARA se verifica terem os
ferros da caravela do bispo do Algarve sido recolhidos pelas outras, pelo que deixa
de ter fundamento a hipótese que havíamos apresentado (aliás também já indicada
por ARMANDO CORTEZÃO).
Mas
como esse argumento é secundário, continuamos a sustentar a tese do Rio Gâmbia
como aquela que melhor se ajusta ao relato de AZURARA.
☻
1446 - Neste anno Luiz de Cadamosto e Antonio Nolle armárão
novamente duas Caravelas, para irem completar o descobrimento do Rio Gambia,
obtendo primeiro a indispensavel licença do Infante, que folgou tanto com esta determina ção, que mandou em companhia delles huma Caravela sua.
No
principio de Maio sahírão de Lagos as três Caravelas, e em poucos dias vrão as
Canarias, onde não quizerão demorar-se, para aproveitarem o bom vento que
trazião; e seguindo a sua derrota, reconhecêrão Cabo Branco, do qual se
amárarão hum pouco, e na noite seguinte as assaltou huma tempestade de S.O.,
com que se puzerão á
capa no bordo de O.N.O. por tres dias e duas noites, e ao terceiro
dia virão com espanto duas Ilhas, de que não folgárâo por saberem que erão
ainda desconhecidas; e dirigindo-sea hua, que era grande,
rodeárão alguma parre della, até descobrirem hum local, que lhes pareceo bom
surgidouro; e abonançando o tempo, enviárâo huma lancha bem armada a examinar
se havia povoação.
Dcsembarcárâo
os Portuguezes, e não vendo caminho, nem vestigio algum de gente, voltárão para
bordo; e na manhã seguinte mandou Cadamosto
á mesma diligencia doze homens armados, com
ordem de subirem a hum monte mais alto, e observarem se
havião outras llhas. Estes homens achárâo muitos pombos, que se deixavão tomar
á mão, e do monte descobrirão outras tres Ilhas
grandes, huma das quaes ficava para o Norte, e lhes pareceo verem para o
Sul a modo de outras; assim as Ilhas agora descobertas erâo quatro.
Desta
primeira Ilha se dirigírâo as CaraveIas ás outras duas, que nâo
ficavão tanto a sotavento da derrota, que deviâo seguir para a sua comissão, e
rodeando huma dellas, que parecia cheia de arvoredo, descobrírão a boca de hum
Rio, que julgárâo seria de boa agua, e surgírão para se proverem della. Aqui
desernbarcárâo alguns homens da Caravela, e caminhando pela margem do Rio,
achárâo algumas lagoas de excellente sal; daqui embarcárão muito, e os navios renovárâo
a sua aguada. Colheo-se quantidade de grandes tartarugas, cuja carne era tão
branca, como a de vitella, e de optimo gosto, e por isso salgárâo muitas pera a
viagem;
e o peixe era innumeravel, algum de especíes novas, e muito saboroso. O
Rio tinha de largo hum tiro de seta, e podia entrar nelle qualquer embarcação de
75 toneladas. Nesta Ilha se
demorarão dous dias, matando infinitos pombos, e puzerão o nome de Boa Vista a
primeira que descobrirão, e a esta segunda o de S. Tiago, por ter ancorado nella
dia de S. Filipe, e S. Tiago (I).
(I)Acho aqui huma contradicção manifesta: Cadamosto conta; que sahio de
Lagos no principio do mês de Maio, e
que deo o nome de S. Tiago a esta llha,
por haver ancorado nella no dia de S.
Filippe, e S.Tiago, que
he juntamente no primeiro daquelle mer. Ceio por tanto haver erro de impressão, ou de copista oa data
da sua subida de Lagos, escrevendo-se.Maio em lugar de Abril. Concorda isto com a namrração de Goes (Chronica do
Principce D. João, Cap.º 8.º, em que colloca esta Viagem no anno dê 1445), onde
diz: Desta vez descobrirão estes
cavalleiros as Ilhas de Cabo Verde, levando dezeseis dias de viagem; e á
primeira que virão chamarão Boa Vista, e á outra S. Filipe, por chegarem a ella
no 1º de Maio; e á terceira chamarão Maio pela mesma razão.
Partirâo
as Caravelas na volta de Cabo Verde,eem poucos dias avistárâo terra em
hum lugar chamado as Duas Palnas (1); entre o Cabo e o
Senegal; e correndo a Costa, na manhã seguinte dobrárão o Cabo, e chegando
ao Gambia, entrárão logo por elle, navegando de dia com a sonda na
mão. As Almadias dos Negros andavão ao longo das margens, sem ousarem chegar-se.
Cousa de oito milhas da barra acharão huma Ilhota em que surgírão e lhe
chamárâo de SãoThomé, por ser o nome de um marinheiro, que ali sepultarão (2).
Deixando
a Ilha, continuárâo a sua navegação pelo Rio seguidos das Almadias dos Negros,
que a final, attrahidos com mostras alguns panoos, e seguranças de paz,
e amizade, vierão á Caravela de Cadamosto, a que subio bum,
que fallava a língua do interprete, e se mostrou maravilhado de ver a grandea
do navio, e sobre tudo das vélas, porque eles não as
usâo nas suas Almadias; e igualmente se espantava da
côr branca, e do trajo dos Portuguezes. Estes acariciárão muito o Negro, e elle disse que estavão
no Paiz do Gambia, cuio principal Senhor se chamava
Forosangoli, que habitava a nove ou dez jornadas de distancia pela
terra dentro
para a parte do Sueste,e dependia de Melli, o grande Imperador
dos Negros; mas que havião outros muitos Senhores menores,
que viviâo junto das margens do Rio, e que elle os levaria a hurn destes por nome
Battimansa, com quem poderiâo tratar amizade.
Acceitando-se-lhe
a offerta, e sendo bem recompensado, ficou a bordo, e as Caravelas continuárão a
subir o Rio, levando a proa sempre ao Nascente, até que chegárâó
ao Estado de Battimansa, que ficava perto.
(1)Não achei este ponto notado em Carta alguma,e creio que
só·foi reconhecido ele Cadamosto, por haver alli notado aquellas duasPalmeiras
na sua primeira Viagem.
(2)He provavel que esta llhota de S. Thomé seja a Ilha de James dos ingleses.
Sahidos
do Rio., navegárâo a Oeste· para se afastarem da Costa, que he mui baixa, e
depois continurâo ao Sul, navegando só de dia, com boas
vigias, e pouca véla, dando fundo todas as noites. As Caravelas ihião huma na
esteira da outra, e cada dia por escala tomava huma a vanguarda. Ao
terceiro dia vírao hum Rio (1), que teria de largo meia milha; e logo adiante
hum pequeno golfo, que mostrava ser embocadura do Rio (2); e por ser ja tarde,
surgírão. Na manha seguinte se fizerão á véla e, engolfando-se algum tanto,
descobrirão outro grande Rio, cujas margens estavão revestidas de belíssimas
arvores. Aqui deram fundo, e mandaram duas lanchas armadas com os interpretes a
tomar língua da terra, os quaes voltarão com a noticia, de que este Rio se chamava de Casamansa, nome do
Senhor daquele Paiz, que habitava cousa de sete legoas por elle acima, e
não se achava então alli, por haver ido á guerra: por esta causa se partirão no
dia seguinte, avaliando a distancia do Rio ao Gambia em setenta e cinco milhas
(3).
(1)Parece que seria o Rio de S. Pedro , oito ou nove legoas
ao Sul do Gambia.
(2)Devia ser o Rio de Santa Anna, ou a boca do Norte do Rio
das Ostras, que ambos ficão. ao Sul do Rio de S. Pedro.
(3)O Rio de Casamansa está situado (a ponta do Norte) na
latitude" de 12° 28', e longitüdede 1º 30’,e dista do Gambia sessenta
milhas, com pouca diferença. Podem entrar nelle
embatcações medianas, porque tem duasmilhas de largo, e de tres a quatro braças
defundo. Toda a Costa, entre elle e o Gambia, be guarnecida de recifes, a que
he perigoso aproximar-se. Da banda do Norte da sua entrada fica huma Ilha
pequena, chamada dos Mosquitos. Este Rio comunica-se por dous braços com o Gambia, e por quatro, ou cinco com o de Cacheo. Habitão este Paizentre elle e o Gambia os Arciates, e
Falupos,Negros mui azevichados, e boçaes, que cultivão arroz, milho, e outros
mantimentos, e muito gado, e são bons pescadores; as armas de que usão, são
frechas, e facas.
Continuando
a sua viagem, virâo mais adiantecousa de quinze milhas hum Cabo, cujo terreno
era mais alto e avermelhado, e por isso he puzerão o nome de Cabo Roxo
(1); e alem delle acharão outro Rio, que lhes pareceo ter de largura
hum tiro de bésta, e denominárao Rio de Santa Anna; e mais adiante outro
da mesma grandeza a que chamárão de S. Domingos (2); de Cabo Roxo a este ultimo
Rio arbitrárão a distancia em quarenta e cinco milhas, pouco mais ou menos.
Continuando
a seguir a Costa por outra singradura, chegárâo á
boca de hum grandíssimo Rio, que primeiro cuidarão ser hum golfo (3), cuja
largura reputárão ser de mais de quinze milhas; e dobrando a pontado Sul da sua
foz, descobrirão algumas Ilhas ao mar; e desejando saber algumas noticias do
Paiz, derâo fundo. No dia seguinte vierâo duas Almadias, huma muito grande com
trinta Negros, e outra com dezeseis, e depois de fazerem reciprocos signaes de
paz, abordou a primeira á Caravela de Cadamosro, que tinha a sua gente em
armas. Os Negros mostravão-se pasmados de ver gente branca, e da fórrna, e
mastreação das Caravelas; porém como nenhum dos interpretes os pôde entender,
não souberâo os Portuguezes nada do que desejavão; e só comprárão alguns
pequenos anneis de ouro.
Dous dias
se demorárão as Caravelas, e conhecendo os Commandantes que estavâo em Paizes
novos, onde não podiâo ser entendidos, e que o mesmo lhes sucederia d'alli por
diante, regressarão a Portugal. Nesre Rio tornou Cadamosto
a notar,
que a estrella do Norte apparecia muito baixa; e vio hum fenomeno, para elle novo,
e foi que a enchente da maré durava quatro horas e a vasante oito e no
principio da enchente era tal a força da corrente, que ainda surtas a três
ancoras não se podião as Caravellas aguentar, e a algumas vezes forão obrigadas
a fazer-se á véla com bastanre perigo.
Partindo
deste Rio, fizerão-se na volta do mar para reconhecerem as llhas (4), que
ficàvão sete, ou oito légoas da terra firme, e chegando a ellas, achárao duas grandes,
e outras pequenas: as duas grandes erão razas, com frondosos arvoredos , e habitadas
de Negros, cuja linguagem não entendêrão.
Daqui tomarão
rumo para as partes dos Christãos, para as quaes tanto navegarão, até que Deos por
sua msericortiia os conduzio a bom Porto.
(1) Cabo
Roxo está situado na latitude N. de 12º 17', e longitude 1º 22’. A traducção
diz Cabo Yermelho, mas eu não
doptei este nome, por não confundir este Cabo, que se acha hum pouco ao Sul da
Bahia de Rufisco, •m 14° 37' de latitude, e 0º 36' de longitude, com o Cabo de que falla aqui Cadamosto, o qual ainda conserva a
denominação de Roxo.
(2)
Passado Cabo Roxo, o primeiro Rio, a que Cadamosto chamou de Santa Anna, he o
Rio de S. Domingos, ou de Cacheo; e o segundo, a que elle deo ete nome, he o braço do Norte do Rio chamado das Ancoras nas
Cartas Inglesas. Os Navegantes, que se lhe seguirão,
restitulrão ao de Cacheo o seu verdadeiro nome, e esquecêrão o de Santa Anna.
Este Rio de Cacheo está situado na latitude N. de 12º 25’, e longitude 1º 23’.'
(3)
Tatvez seria este Rio o braço do Sul do das Ancoras, ou antes o Rio de Bissau,
que pela curvacura da terra se figuraria a Cadamosto
muito maior.
(4) Indo
do Rio de Cacheo para o Sul, ficão de parte de Oeste muitas Ilhas, humas
povoadas, e outras não.
1446
Neste anno (se não foi
no antecedente) partirão por ordem do Infante
Antão Gonçalves, e Diogo Affonso (1) em duas Caravellas, e com eles Gomes Pires
em huma do lnfante D. Pedro, com instrucções para entrarem no Rio do Ouro,
e darem principio á introducçâo do Christianismo entre aqueltes Povos,
estabelecerem algumas relações commerciaes. Mas como regeitárão humas e outras proposições, os três Commaodantes regressárão para Portugal, trazendo
só hum Mouro velho, que voluntariamente os quiz acompanhar (e o Infante mandou
restituir á sua patria), e hum Negro que comprárão. Aqui ficou entre os
Barbaros hum Escudeiro de nome João Fernandes, com projecto de examinar o
interior do Paiz habitado pelos Azenegues, para informar depois o Infante do
que visse, ajustando com Antão Gonçalves a época em que havia tornar por elle.
☻ 1446 -
Partio do Algarve Nuno Tristão (2) por Commandante de huma Caravela, e desembarcando ao Sul
do Rio do Ouro, assaItou huma Aldêa, em que cativou vinte pessoas; e com
ellas voltou a Portugal.
☻ 1446 - Neste anno expediuo Infante (3) a Antâo
Gonçalves por Commandante de tres Caravelas, sendo os outros dous Garcia
Mendes, e Diogo Affonso, com ordem
de ir buscar João Fernandes (por serem passados sete mezes que Iá estava), objecto este do seu maior interesse,
pelos desejos que tinha de saber por elle noticias exactas daquelles Povos, e
dos recursos commerciaes do Paiz, por ser homem que entendia bem o idiomados
Azenegues.
Hum
temporal espalhou os navios, e Antão Gonçalves foi o primeiro que chegou ao
Cabo Branco, onde arvorou huma grandeCruz de páo, para servir ás outras
Caravelas de signal de haver alli aportado; e por
fazer
alguma presa, que lhe compensasse os trabalhos da viagem, depois de desembarcar
sem fructo em alguns pontos da Costa, demandou
a Ilha de Arguim,a que a abundancia da pesca atrahia quantidade de
pescadores (4), a pesar do risco a que os expunhão os frequentes assaltos dos
Portuguezes.
Nesta Ilha
se lhe reunirão as outras duas Caravelas e, como os Mouros havião desamparado a
Ilha, por terem descoberto os navios, desembarcou Antâo GonçaIves na terra
firme; e dando com huma Aldea, se bem que os Mouros se puzerão a tempo em fuga;
como costumavão, cativárão os Portuguezes no alcance vinte e cinco, dos quaes Lourenço Dias de Setuval tomou nove, por
ser mui ligeiro. Quando voltavão mui alegres desta especie de caçada, encontrarão
João Fernandes,que havia dias os
andava esperando por aquela Costa, e posto que muito queimado do Sol, vinha bem
pensado e gordo, e acompanhado de alguns Azenegues, tanto para o defenderem
dos pescadores, como para traficarem com os Portuguezes; e
com effeito Antâo Gonçalves lhes comprou nove Negros, e algum ouro em pó, e por
esta causa chamou áquelle lugar Cabo do Resgate (5).
Para
celebrar este feliz encontro com João Fernandes,
armou Antão Gonçalves Cavalleiro a Fernão Tavares, homem de nobre
nascimento, que havendo-se achado em brilhantes acções militares, não quiz
nunca receber similhante honra, senão neste Paiz, por ser novamente
descoberto; e fazendo-se á véla para Portugal, veio correndo a Costa, e em Cabo
Branco assaltou huma Aldea, em que cativou cincoenta e
cinco pessoas, depois de
hum combate, em que morrerão alguns Mouros; e chegou ao Reino a salvamento. O
Infãnte folgou muito mais de ver João Fernandes, que o ouro, e os escravos que
as suas Caravelas trazião, e delle soube: Que os Azenegues do interior daquelle
Paiz erâo pastores, que vivião em Aduares, ou Tribus, e se nutriâo de hervas,
sementes dos campos, e gafanhotos seccos ao Sol, ou de leite do seu gado, que
tambem ás vezes lhes servia de bebida, por se nâo achar agua, senâo de poços,
quasi salôbra, e ainda em poucos lugares, para onde transportavão os rebanhos,
segundo as estaçóes do anno; e só comiâo carne de alguma caça que matavão. Que
os habitantes da Costa erão pescadores, cujo alimento consistia em peixe
fresco, ou secco, sem sal. Que o Paiz era todo de planicie, parte areal, parte
charneca, onde de longe em longe cresciâo algumas palmeiras, e figueiras
bravas; e assim, por falta de pontos de direcçao, quando os naturaes queriâo
fazer huma jornada para mudar de pastos, governavam-se pelos ventos, estrellas,
e vôos daquellas aves que costumão frequenfar es lugares povoados. Que as suas
habitações erão tendas, em que viviao humas Tribus independentes das outras, e
muitas vezes em guerra pela posse de hum pedaço de terra de hervagem, ou de hum
poço. E que o seu idioma era quasi identico ao dos Mouros da
Barberia.
De resto
João Fernandes ainda que foi logo despojado dos vestidos por estes Azenegues
nao recebeo delles outro
damno, e habituando-se em breve ao seu modo de vida, e de sustento, mereceo a
confiança de Huade Meimom, hum dos principaes Azenegues que vivia com mais
comodidades que os outros; e foi quem o mandou com alguns dos seus a esperar os
navios (6).
☻ 1446 -
Neste anno Gonçalo Pacheco, Thesoureiro
da Casa de Ceuta, rico Cidadão de Lisboa, armou huma embarcaçâo á sua custa,
com a necessaria licença do Infante, para mandar á Costa de Africa (7), cujo
commando deo a Diniz Annes da Grã, Escudeiro do Infante D. Pedro; e em sua
conserva forão Alvaro Gil, Ensaiador da Moeda, e Mafaldo (não se sabe sabe o
nome), por Commandantes de duas Caravelas. Chegados a
Cabo Branco, achárâo hum escrito de Antão Gonçalves, em que avisava todos os
navios se poupassem ao trabalho de desembarcarem alli, por quanto elle deixava
destruida a Aldêa dos Mouros. Com esta noticia, e por conselho do Piloto João
Gonçalves Gallego, dirigirão-se á Ilha de Arguim, em que cativárão sete
indivíduos; e Mafaldo, instruído por hum dos cativos, desembarcou na terra
firma, e atacando huma Aldea, tomou quarenta e sete pessoas: depois executarão
outros desembarques inúteis.
Desconfiados
de fazerem desta mais prezaz, pela cautela com que os Mouros se vigiavam,
navegarão oitenta légoas de costa para o Sul, e dalli voltarão á Ilha das Garças a fazer carnagem; e nesta ida, e na
volta desembarcarão algumas vezes, e cativárão cincoenta pessoas, com perda de
sete homens, que os Mouros lhe matarão em huma das outras Ilhas de Arguim, por
meterem a lancha em paragem tal, que ficou em seco. Na Ilha das Garças
acharão Vicente Dias.
(1)Vede
Barros, Decada Iª, L.º I, Cap. 9 – Soares da Silva, tomo Iº, Cap.º 84 – Faria e
Sousa, Asia Portuguesa, tomo Iº, Parte Iª, e tomo 3º no fim – Antonio Galvão,
pag. 24.
(2)Vede
os Escritores acima citados, menos Galvão, que não faz menção desta pequena
Viagem
(3)Vede
Barros, Cap.º10. - Soaresda Silva, Cap.º 85. Faria
e Sousa nos mesmos lugares citados,onde põe esta viagem no
anno de 1447. - Galvão não faz menção della
(4)Segundo
o testemunho positivo de Cadamosto, que ja referi, começava-se a construir
nesta Ilha hum Forte no anno de 1445 por ordem do Infante, e concentrava-se alli o Commercio daquella Costa, cessando em consequência toda esta guerra de
assaltos, e cativeiro dos naturaes do Paiz; mas esta viagem, e as outras
emprehendidas neste anno, e no seguinte, desmentem aquella asserção, e a
difficuldado não póde resolver-se, senão ou negando a
authoridade de Cadamosto, que he mui grande pelo credito que lhe dá Damião de
Goes, ou suppondo erro nas datas destas Viagens. Com effeito os nossos
Historiadores são inconcordaveis nas épocas dos
descobrimentos da Africa! Eu não decido a questão, siga cada hum a opinião que
lhe parecer mais provavel; só advirto, que não falta quem duvide da veracidade
de Cadamosto.
(5)Não
achei este Cabo mrcado nas Cartas; mas sem dúvida he alguma ponta de terra
fronteira á Ilha de Arguim.
(6)A
narração de João Fernandes, ainda que tão antiga, concorda com a do lngles
Mungo Parker, que visitou aquelles Paizes no seculo actual.
(7) Vede
os Authores ja citados: Faria põe esta Viagem em 1447. Vede Soares da Silva,
Capitulos 85, e 87. - Faria e Sousa noslugares citados, que colloca esta
expedição em 1447. - Barros no lugar ja indicado, pag. 7, diz que as Caravelas
sahiráo de Lagos a 10 d’Agosto de1445, no que ha engano, pois nomêa entre ss Commandentes a Diniz Fernandes, o que primeiro passou á terra dos Negros, isto
he, a Cabo Verde; e no Cap. 9, ,
pgg. 73,e 74 o faz descobridor
deste Cabo em 1446. Creio que devem trocar-se estas datas. N. B. A edição de Barros, de que
trato, he a de 1778. – Goes tambem põe esta Viagem. (Cip. 3) em 1445, na
Chronica do Principe D. João.
1446/08/00
Novos incidentes
nos rios da Guiné
Ao desastre
sucedido a Nuno Tristão e seus companheiros seguiu-se um outro ocorrido pouco tempo depois, quási nas mesmas condições e no mesmo local.
Do pôrto de Lagos haviam saído
oito barcos sob o comando de Gil Eanes, Fernão Vilarinho, Estêvão Afonso, Lourenço d'Elvas e João Bernardes, aos quais se juntou um navio
pertencente ao bispo do Algarve. A esta frota associaram-se
na
ilha
da Madeira mais dois barcos de Tristão
Vaz e Garcia Homem. Depois de
uma acção infrutífera no arquipélago de Canárias, regressaram
os
navios da
Madeira e o de Gil Eanes.
Os restantes oito «foram sua viagem até chegarem
a além do Cabo Verde, LX léguas, onde acharam um rio que era assás
de boa largura, no qual entraram com suas caravelas; mas não foi aquela entrada mui
proveitosa para a caravela do Bispo, por quanto se acertou
de topar em um banco de areia, de que abriu por tal guiza que a não
poderam dali mais tirar... Mas se alguns em isto ocupavam,
Estêvão
Afonso e seu irmão foram em terra cujos moradores eram em outra parte...
E seguindo assim em seu caminho
alguma peça, disseram que acharam a terra com grandes sementeiras e muitas árvores de
algodão e com muitas herdades sementadas de arroz e assim outras árvores
de desvairadas maneiras. E diz que tôda aquela terra lhe
parecia a maneira de paues... E entrando assim por um arvoredo de grande
espessura,
saíram
a
êles de revez
os Guineus com suas azagaias e arcos, chegando-se a êles quanto
mais podiam. E assim quiz a ventura que de sete que foram feridos, os cinco ficaram
logo ali mortos, dos quais os dois eram portugueses e os tres
estrangeiros.
E estando assim o feito em êste ponto,
chegou Estêvão Afonso com os outros que vinham de trás, o qual
vendo o perigo em que eram, recolheu-os todos o melhor que pôde; no qual recolhimento
houveram
assaz trabalho...»
Por esta singela descrição se vê que, algum tempo depois da morte de
Nuno Tristão, deu-se um segundo desastre, nas margens de um rio notável pela sua largura, situado também a 60 léguas
ao
Sul
de Cabo Verde, num local que não se pode
indicar com precisão, possivelmente
entre
os rios de Gâmbia e Geba, qualquer deles notável pela sua largura.
A circunstância de se mencionar as sementeiras
de
arroz, feitas pelos indígenas, leva-nos a supôr que o
facto se teria passado por volta do mês de Agosto.
Azurara não indica o ano em que saíu esta importante expedição, sendo muito provável
que fôsse em 1446, ou no ano imediato.»
João
Barreto, HISTÓRIA DA GUINÉ 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 35-36
PASSAGEM
DO RIO PUNGO
A sorte foi mais propícia com Alvaro
Fernandes, que saíu pela segunda vez da ilha da Madeira, com indicação
de seu tio Gonçalves Zarco para que «seguisse mais avante quanto pudesse e que se trabalhasse de fazer
alguma presa, cuja novidade e grandeza pudesse dar testemunho
da boa vontade».
A caravela passou pelos cabos Verde e dos Mastos e, depois de ter tocado em alguns portos da costa que ia explorando,
chegou à foz de um rio, situado a 110 léguas ao Sul do Cabo Verde. Nesse ponto os nossos expedicionários tentaram desembarcar, mas foram atacados por alguns barcos indígenas. Na contenda ficou ferido numa perna o capitão Alvaro Fernandes, com uma seta envenenada; «mas porque êle era avisado da sua peçonha, tirou aquela frecha muito asinha e fez lavar a chaga com urina e azeite, e dali untou-a muito bem com triaga e prouve a Deus que lhe aproveitom».
Deu-se durante esta viagem um episódio referido
por Azurara, que merece ser reproduzido. Tendo os nossos exploradores encontrado,
numa das praias, duas mulheres que andavam a apanhar
mariscos, tentaram prendê-las. Mas uma delas, que trazia um filho
dos seus dois anos, opôs tanta resistência que nem três homens conseguiram
dominá-Ja. Para resolver a dificuldade, um dos marinheiros conduziu a
criança para o bote fazendo menção de se retirar. Vencida por êste ardil
deshumano, a indígena cessou de lutar e deixou-se aprisionar fàcilmente,
preferindo seguir o destino incerto do filho, a perdê-lo.
«E era isto a além do Cabo
Verde CX léguas... E esta caravela foi mais longe êste ano que todolas outras,
pelo qual lhe foi dado de grado 200 dobras, scilicet, cento que mandou dar o
Infante D. Pedro e outras cento que houveram do Infante D. H enrique», (Azurara, cap. LXXXVII).
Até onde chegou Álvaro Fernandes nesta sua última
viagem?
Na resolução dêste problema surgem as
mesmas dúvidas que já encontrámos em relação ao número e comprimento
das léguas indicadas por Azurara. Admitindo que o conto das
léguas esteja certo e atribuíndo-se-lhes a extensão de 5.920 metros, poderemos
concluir que Alvaro Fernandes chegou até à baía de Konakry, a moderna capital
da Guiné Francesa,
Mas sôbre êste ponto encontra-se uma referência de João de Barros. Analisando
êste trecho da Asia,
escreve o sr. Armando Cortesão no Boletim da Agência Geral das
Colónias, já aludido:
«Diz Barros que êste rio em que Alvaro Fernàndes foi ferido é o
rio Tabite, situado 32 léguas além do Rio de Nuno, o que
está de acôrdo com o que diz Azurara de êle ter navegado alguns dias a partir do Cabo ·dos Mastros e ter depois chegado quási tão longe como a Serra Leoa.
Em nenhuma das cartas antigas do Atlas do Visconde de
Santarém vem indicado o rio Tabite; na altura indicada por Barros
encontra-se em algumas dessas cartas o rio Pichel que deve corresponder ao actual rio Pongo da Guiné
Francesa...»
A dificuldade encontrada por Armando Cortesão na descoberta do rio Tabite parece-nos que é resolvida por uma passagem do Esmeraldo, que nos fala do rio Caabite, situado também
na Guiné F rancesa.
No capítulo 32 do livro I da obra de Duarte Pacheco acha-se esta informação: «... Adiante destas ilhas dos Idolos 7
leguas acharam um rio que se chama do
Cristal... Quatro leguas deste rio do Cristal está outro rio
que se chama Caabite, o qual tem uma boca
larga... Adiante do Caabite cinco Ieguas
está o rio que se chama de Tamara...»
Temos portanto um rio Cabite ou Tabite, situado a II léguas das ilhas dos
Idolos, ao Norte do Melancorê, e dentro das 32 léguas indicadas
por João de Barros.
De tôdas estas informações de diversos autores, Azurara, Duarte
Pacheco e João de Barros, parece lícito concluir-se que no ano de 1446 Alvaro
Fernandes chegou às proximidades da Serra Leoa, a II leguas
ao
Sul
das Ilhas dos Idolos. (Los Islands).»
João
Barreto, HISTÓRIA DA GUINÉ 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 36-38
1447
«Em 1447 -
Nos capítulos 89 a 94 da sua obra, Azurara descreve mais
quatro expedições enviadas com o fim
meramente comercial, uma ao norte do Cabo
Bojador, e três para o Rio de Ouro, sob a capitania de Gomes Pires, Antão Gonçalves e Jorge Gonçalves.
Finalmente
a
Crónica de Guiné termina com o relato da
viagem
que
vitimou
o
gentil-homem
dinamarquês,
de nome Vilarte (Valarte, Bolarte, ou Abelhart) que, levado por espírito
aventureiro, viera a Portugal com o propósito de tomar parte nas explorações
da costa africana.
Esta
última expedição, que parece ter sido organizada pelo Regente D. Pedro,
saíu
de
Lisboa em 1447, com especial missão de entabular negociações com o rei do
cabo Verde que se dizia muito poderoso e possivelmente cristão. Depois de uma demorada
viagem de seis meses, «chegaram à ilha da Palma, que é...acerca do Cabo
Verde...fizeram depois vela para diante... e, sendo a fundo da ponta, em
um lugar que entre os naturais é chamada Abram, ali fizeram lançar o seu batel
fora em terra...»
Vieram ao seu encontro os chefes de nome Guitany,
Satan e Minef, que se diziam subordinados
a um rei chamado Boor, cuja residência ficava a uns seis dias de jornada (ª). Embora se mostrassem sempre
desconfiados, os indígenas da região, durante os dias que a caravela esteve no pôrto efectuaram
a
permuta de algumas mercadorias.
Estas transacções
não
lograram, porém, inspirar inteira confiança nos indígenas que pareciam estar em
desacordo entre si sôbre a atitude a adoptar com os portugueses e assim numa ocaião em
que
Vallarte se encontrava na praia com o seu batel, os indígenas caíram sôbre êle e seus companheiros, conseguindo apenas escapar a
nado um dos marinheiros. Parece que dos portugueses foi morto apenas um e os restantes
quatro feridos foram levados prisioneiros para a presença do rei Boor. Depois deste desastre, Fernando
Afonso, que comandava o navio, conduziu-o
directamente
para PortugaI.
Diz João de Barros que a
morte de Vallarte se deu no ano em que D. Afonso V chegou
à maior idade, isto é, no ano em que tomou
conta do govêrno, em 1448. Se atendermos que· o navio saído de Lisboa
levou seis meses para chegar ao cabo Verde, pode dizer-se que coincidem
as indicações
dos
dois cronistas,
Azurara
e Barros. Segundo Diogo Gomes o desastre teria sucedido na margem
direita do rio Gâmbia.
O relato
da expedição de Valarte constitue um dos últimos capítulos da Chronica do
Descobrimento e Conquista da Guiné. Supõe-se
que Azurara teria acabado de a escrever no ano 1453, pois é precedida
de uma carta-dedicatória ao Rei D. Afonso
V, datada de 18 de Fevereiro dêsse ano. Ela é, sem
contestação, o melhor e o mais seguro documento histórico que se conhece sobre as expedições enviadas pelo Infante D. Henrique para a exploração e conquista
da costa africana.
Não se sabe
se Azurara teria chegado a escrever o segundo volume, como
prometia fazer, abrangendo o reinado· de· D. Afonso V.
Por
isso, a seguir ao
ano
1447 não é fácil reconstituir-se a história dos descohrimentos da costa africana, com a
minuciosidade que caracteriza a obra de Azurara. No entanto pode-se afirmar
que, depois da viagem de Vallarte, houve uma considerável interrupção na série dos
descobrimentos novos. De 1448 até à morte de D. Henrique, em 1460, as
caravelas portuguesas não tinham passado
além do ponto alcançado por Alvaro Fernandês, isto é, além da baía de Konakry.
(ª) Diz João de Barros
que um dos chefes chamava-se Farim. Deve, porém, notar-se que a palavra Farim é
corrupção do vocábulo indígena Faram, que significa
chefe duma maneira geral e não uma determinada pessoa. Não se trata portanto de um nome próprio.»
João Barreto, HISTÓRIA DA GUINÉ 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 38
VIAGEM DE VALARTE E
FERNANDO AFONSO (1447)
Dos textos de ZURARA,
BARROS e DIOGO GOMES nos vamos aproveitar na análise desta viagem. Limitamo-nos
agora a transcrever os dois primeiros, porquanto já no respeitante à expedição
de Nuno Tristão se apresentou o terceiro.
ZURARA,
CAP. LXIV (Segundo edição de 1841)
Como
Vallarte foe a terra de Guinee, e per que maneira foe sua ficada.
«Spargendosse a fama
deste feito pelas partes do mundo, ouve de chegar aa corte delRey de Dinamarca
e de Suecia e Noruega, e como veedès que homeẽs nobres se entremetem de
quererem veèr e saber semelhantes cousas, acertousse que huῦ gentil homem da casa daquele principe, cobiiçoso de
veer mundo, ouve sua licença, e veo a este regno. E andando per tempo em casa
do Iffante, huῦ dya lhe veo a pedyr que fosse sua mercee de lhe armar hῦa
caravella, e de o encaminhar como fosse a terra dos Negros. O Iffante como era
ligeiro de mover a qualquer cousa em que algum boõ podesse fazer honra ou
acrescentamento, mandou logo armar hῦa caravella o mais compridamente que se
pode fazer, dizendo que se fosse ao Cabo Verde, e que vissem se poderyam aver
segurança do rey daquela terra, porquanto lhe fora dicto que he muy grande
snõr, mandandolle suas cartas, e que esso mesmo lhe dissesse algῦas cousas de
sua parte por serviço de Deus e da sua sancta fe; e esto porque lhe afirmavam
que era xpaão: e a conclusom de todo era que se assy fosse, que a ley de Xpõ
tiinha que lhe provèsse seer em ajuda da guerra dos Mouros dAfrica, naqual
elRey dom Affonso, que entom regnava em Portuga, e elle em seu nome, com os
outros seus vassalos e naturaaes, continuadamente trabalhavom. Todo foe prestes
muyto asinha, e aquelle scudeiro, que se chamava Vallarte, metido em seu navyo,
e com elle huῦ cavaleiro da ordem de Xpõ, que se chamava Fernandaffonso, que
era criado e feitura do Iffante, que elle mandava em aquella caravella,
porquanto Vallarte era strangeiro, e nom sabya tam bem os costumes e maneira da
gente, que encaminhasse os mareantes e as outras cousas que pertenciam na
governança do navyo, e ainda casy por embaixador, se se acertasse de veerem
aquelle rey, levando pera ello dous naturaaes daquela terra por turgymaães. Empero
a capitanya principal era de Vallarte. E assy seguiram per sua vyagem, depois
de grandes trabalhos que ouveram no mar, que passados seis meses, do dya que
primeiro partiram de Lixboa, chegaram aa Ilha da Palma, que he na terra dos
Negros acerca do Cabo Verde; onde tendo seu conselho sobre a maneira que dally
avante avyam de teer, segundo os regimentos que levavm do Iffante, fezeram
depois vella pera dyante porque ainda aquelle nom era o porto onde eles avyam
de teer assessego. E sendo a fundo da ponta em huῦ lugar, que antre os
naturaaes daquela terra he chamada a Abram, ally fezerom lançar seu batel fora em
terra, noqual sayu Vallarte com alguῦs outros, onde charom já muytos daquelles
Negros, dosquaaes Vallarte requereu que
lhe dessem huῦ, e que elle lhe darya outro, pera aver entre elles segurança per
que podessem aver sua fallas; cuja resposta foe, que tal cousa nom era em eles
de fazer sem autoridade de huῦ cavaleiro que ally estava, caasy como governador
daquela terra, que avya nome Guitenya, oqual tanto que soube semelhante
requerimento, veo ally, e prouvelhe muyto de outorgar o que Vallarte requerya.
E tanto que huῦ daqueles Negros foe na caravella, Fernandaffonso que sabya
milhor nossa linguagem portuguees, começou de falar com elle, dizendosse assy:
O que requeremos tua vinda a este navyo, foe porque digas per nossa autoridade
a teu snõr, como nós somos de huῦ grande e poderoso principe da Espanha, que he
na fim do poente, per cujo mandado aquy viimos pera falar da sua parte ao
grande e boõ rey desta terra; fazendo-lhe ler hῦa das cartas que levavam, aqual
lhe foe declarada per huῦ dos seus entrepetadores, pera o dizer assy a aquelle
cavaleiro que o ally envyara. Quanto, disse elle, se vós querees veer Boor, que
he o nosso grande rey, nom podees pollo presente aver seu recado, porquanto he
certo que he muy alongado daquy, one anda guerreando a huῦ outro grande snõr
que lhe nom quer obedecer. E se ainda fosse em sua casa, disse Fernandaffonso,
em quantos dyas podyam ir a elle com nosso recado, e esso mesmo tornar com a
resposta? De seis ataa sete dyas, serya a maior tardança, respondeu o Guineu.
Pois, disse Fernandaffonso, sera bem que digas a esse cavaleiro com que vives,
que mande la huῦ homem com seu recado, fazendo-lhe saber todo o que te já
disse, e se o teu snõr assy fizer, fara grande serviço ao seu rey e proveito a
sua terra. Hora, disse o Guineu, eu direy todo muy bem a Guitanye.
Mais
uma vez se verifica que BARROS se limita a sumariar os dizeres de ZURARA. Uma
única diferença - mais propriamente aumento- se nota: o primeiro denomina o Guytanyede
Farim, por ser governador da terra.
Esquemàticamente
tiram-se dos cronistas as seguintes indicações principais:
1
- A expedição tinha por fim estabelecer relações amistosas como senhor do Cabo
Verde.
2
- Além das cartas para esse efeito destinadas seguiam na caraveladois
intérpretes, «naturais daquela terra», e que se depreende facilmente terem-se
feito entender no local a que chegou Valarte.
3
- O términus da viagem foi para sul da Ilha de Palma (Gorea). Desconhece-se
porém qual a distância a essa ilha.
4 - O local era chamado pelos indígenas Abram e ficava a «fundo de uma ponta».
4 - O local era chamado pelos indígenas Abram e ficava a «fundo de uma ponta».
5
- O Governador da terra denominava-se Guitenya ou Guitanye (segundo
BARROS, Farim). Outros indivíduos importantes tinham os nomes de Satam, Minef e Amallam.
6
- O «grande rei» da região era Boor, e estava a cerca de 3 dias de
viagem do local
7
- Os indígenas não devem ter morto todos os que ficaram cativos.
8
- Segundo DIOGO GOMES a caravela de Valarte foi além da de NunoTristão (?) ou
daquelas que travaram luta com o Bezeguiche
(?)s endo
porém ainda os Niuminkas os atacantes.
Não
parece fácil à primeira vista com as indicações de ZURARA identificar o local
onde chegaram Valarte e Fernando Afonso. Por isso os investigadores - tão
categóricos a respeito das viagens anteriores- cautelosamente se têm abstido,
de uma maneira geral, em se pronunciar sobre esta.
CHARLES
DE LA RONCIÈRE (1925) refere-se ao assunto em termos tais que se é levado
a supor ser o Guitanye umv asalo do Imperadorde Mali (90).
(90) RONCIÈRE, B 39, lI, pag. 48, «Descendu dans undroit
appelé Abram, il croyait avoÍr desarmé l'hostilié de la tribu du chef «Guitanye», vassal du roi de Mali (Bomeli), qui guerroyait à huit joumées de Ià».
JOÃO
BARRETO (1938) fez notar que pelo relato de DIOGO GOMES o desastre
se teria dado na margem direita do Gâmbia (91).
DAMIÃO
PERES já procura ir mais longe. Começa por notar que de DIOGO GOMES se deduz:
ter Valarte ido além de Nuno Tristão. Como havia feito este último chegar à
barra do Gâmbia, conclui que o «mais além» pode significar que o primeiro subiu
esse rio em maior extensão. A observação de RONCIÈRE (o Boor seria o Bor·Meli)
conjugada com uma informação de DIOGO GOMES (o Bormelli era o senhor
de «toda a terra dos pretos da parte direita do rio») levam-no assim a aceitar
como muito plausível que o dinamarquês tivesse sido aprisionado nas margens do
Gâmbia. Para reforçar a conclusão apresenta ainda a hipótese de o Abram de
ZURARA ser o mesmo que Habanbarranca, aldeia «das imediações do Gâmbia»
citada por DUARTE PACHECO (92).
Finalmente
MACALHÃES GODINHO (1945) também apresenta algumas hipóteses (93). Talvez sugestionado
por RONCIÈRE aíirma que o rei
para o qual Valarte era embaixador não devia ser o de Cabo Verde, por nenhuma fonte o
mencionar, mas sim o Imperador Mandinga. Acha plausível a hipótese de DAMIÃO PERES,
se bem que lhe pareça mais seguro afirmar que o insucesso de
Valarte teve lugar entre o Cabo dos Mastros e o rio de S. Domingos. A
designação de Farim dada por BARROS ao Governador da terra, fá-lo
concluir que «a aceitar-se levariaa localizar a morte de Valarte no rio de S.
Domingos (Cacheu) pois sabemos por Valentim Fernandes (Pág. 84) que o
senhor deste rio é Farinbraço, de origem mandinga,
bem como toda a sua
gente».
(91) BARRETO, B 6, pag. 39.
(92) PERES, B 36, pág.99-100.
(93) MAGALHÃES GODINHO, n 32. II. Pág.s 262-3.
Passemos
agora à
análise dos vários elementos apresentados.
a)Elementos
geográficos
Como
já notou DAMIÃO PERES, o local atingido não deve ficar muito longe da Ilha da
Palma, porquanto o cronista não refere nenhuma escala intermédia. ZURARA indica expressamente que o objectivo era um rei do Cabo Verde, o que reforça
aquela suposição.
Deve-se notar ainda que não há qualquer referência a rios, o que faz pensar, até certo ponto, que a caravela não atingiu a região entre Sangomar Pt. E Cape Bald, abundante de desembocadouros fluviais, alguns dos quais bem notáveis e conspícuos.
Deve-se notar ainda que não há qualquer referência a rios, o que faz pensar, até certo ponto, que a caravela não atingiu a região entre Sangomar Pt. E Cape Bald, abundante de desembocadouros fluviais, alguns dos quais bem notáveis e conspícuos.
Mas
a palavra Boor exerceu uma irresistível influência sobre os investigadores
citados, que nela quiseram ver uma referência
ao Bor Meti,
e assim puseram de parte as indicações que levavam a supor ficar o términus
da viagem para o norte do Salum, a fim de poderem realçar a hjpótese do Gàmbia,
habitado por mandingas, onde aquele rei dominaria.
Nesta
ordem de ideias procurou DAMIÃO PERES identificar a palavra Abram com o
nome de uma aldeia referida por DUARTE PACHECO na sua descrição do Gâmbia.
Fàcilmente se pode porem verificar que tal identiíicação não tem
cabimento.
Comecemos
por notar que o Abram de ZURARA ficava na costa, «a fundo de uma ponta».
Não há indicação alguma de que estivesse na margem de um rio; e se, apesar
disso, tal sucedesse, certamente ficaria próximo da foz, pois o cronista não
refere a subida de nenhum por grande extensão.
É
no Cap. 29 do Livro I do «Esmeraldo» que DUARTE PACHECOf ala da aldeia de
Habanbarranca. Depois de descrever o Reino Mandingado Gâmbia e várias
das suas povoações e referir como os portuguesessubiam o rio até 180 léguas da
foz (na realidade 85) paratrazer ouro,o roteirista prossegue da seguinte
maneira: «...& duzentas leguas alem deste Reyno de mandingua estaa huma comarca de terra honde ha nuito ouro a qual chamon toom e os
moradores desta provincia teem Rostro & dentes como caës & Rabos como
de carn & som negros & de esquiua conuersasõm que nom querem uer outros
homees & has gentes de uns lugares
aos quaes hum deles chamon veetun & o outro habanbarranca &
o oulro baha baião a esta terra de toom comprar ho ouro per mercadorias e escravos
que que lhe levom os quaes no modo do seu comercio tem esta maneira...»
Segue-se a já tradicionaI descrição do comércio
mudo do ouro, que outros viajantes da época igualmente
referem, bem como a lenda dos homens-cães.
Não
diz DUARTE PACHECO claramente qual a localização de Habanbarranca; mas
visto que os seus habitantes iam comercial a Toom - 200 léguas para lá
do Reino do Gâmbia - lícito é supor que aquele lugar ficaria situado no Alto
Gâmbia, possivelmente na região de Cantôrá, que era o grande mercado
aurífero (ou mesmo para leste, visto o roteirista indicar anteriormente em
Cantôrá quatro povoações principais, distintas das três que agora menciona)
(94). Difícil se torna aceitar que se Habanbarranca ficasse na foz do
Gâmbia fossem os seus habitantes quem se ocupasse a ir buscar a cerca de 380
léguas o ouro para o venderem noutro local a 180 léguas da sua terra.
Mas a
este argumento de natureza geográfico-comercial junta-se ainda um outro, de
carácter linguístico. Verifica-se que DUARTE
PACHECO
reproduz com bastante exactidão os termos indígenas, como se constata com as
quatro povoações de Cantôrá, cujos nomes escreveu com grande fidelidade. É portanto lícito admitir-se que
o mesmo suceda com Habanbarranca ou Banbarranca
(como mais abaixo volta a enunciar). Ora existem no idioma mandinga os dois
termos ABAMBARANCA e BAMBARANCA. O primeiro significa «aquele Bambaranca»; o
segundo «individuo oriundo da tribo BAMBARA» (95) . Os BAMBARAS são um povo
afim do mandinga cujo núcleo principal tem assento na região entre o
Alto-Senegal e o Alto-Niger, para leste já do Alto-Gâmbia. Natural era, em virtude
da sua situação geográfica, que eles se dedicassem a transportar
o ouro das regiões auríferas (provavelmente o Bambuk e o Bouré) para Cantôrá,
onde recebiam outros produtos em troca; ainda hoje os Bambaras praticam
um activo comércio desse metal, aproveitandoo facto de as zonas do litoral estarem divididas por
várias soberanias.
Quer
isto dizer que DUARTE PACHECO tomou o povo pela região onde ele habitava (o que
aliás sucede frequentemente nos escritos antigos – Jalofo por Terra
dos Jalofos; Mandinga por Terra dos Mandingas, etc.).
Conclui-se
assim que Habambarranca ou Banibarranaa diz respeito à região
habitada pelos Bambaras, a muitas centenas de quilómetros da costa. É
portanto impossível identificá-la, como DAMIÃO PERES quer, com o lugar de Abram,
que ficava no litoral.
Sobre
a palavra Abram apenas conseguimos apurar que não tem relação com a
lingua mandinga, o que exclui a hipótese de o lugar ficar no Niumi.
A
suposição de Valarte não ter passado o Jumbas é assim reforçada.
(94) As quatro povoações são Sutucoo, Jalancoo, Bancoo e Jamnam Sura. Estes termos são mandingas, e perfeitamente identificáveis. São asseguintes as suas interpretações, segundo o Administrador
António Carreira:
Sutucoo - SUTUCUÓ «coisa misteriosa da noite»,
on seja feitiço. É um nome
utilizado para povoações bastante arborizadas.
Jalancoo - O termo pode equivaler a duas
palavras mandingas, qualquer delas com a mesma raiz: JALANCUÓ «relativo a
JALAN; JALAN é um pano branco de grandes dimensões, usado por pessoas de grande
respeitabilidade. Ou então JALAN-COlÓ, a «veste propriamente
dita».
Bancoo - BANCÓ,
terra, local, pátria.
Jamnam Sura - JAMANAM SURÁ. Trata-se de designação de certa planta medicinal. O lermo é próprio dos mandingas
do Gâmbia, pois na nossa Guiné essa mesma planta é
designada por SAPATÉU. Dá-se tal nome às povoações que estejam situadas em local onde exista o
arbusto.
(95) lnformação amavelmente prestada pelo Adminislrador
António Carreira.
b)
Elementos etnográficos
Deixou-nos
ZURARA os nomes de vários indivíduos da região:Guitenya ou Guitanye (o chefe), Satam,
Minef e Amallam.
Podemos
afirmar de certeza que nenhuma das três primeiras palavras pertence à língua
rnandinga (97). Embora não o possamos já garantir tão categoricamente, também
não se afigura provável que sejam de algum dos idiomas das tribos que têm o seu
habitat no actual território português.
Significa
portanto esta conclusão que a zona costeirao onde Valarte aportou ficava ao norte
do Niumi, o que equivale a dizer estar compreendida entre o Ilha de
Palma e o Rio Jumbas (98).
Cremos
que deve ser fácil a identificação dos referidos termos para quem conheça os
idiomas jalofo e serere. Apesar de eles já estarem estudados pelos franceses,
não conseguimos haver qualquer das várias publicações sobre o assunto, a fim de resolvermos
definitivamente a questão.
A
hipótese do Gâmbia resulta assim muito pouco provável. Ela assenta sobre o
relato de DIOGO GOMES e sobre uma sugestão - a de que o Boo de ZURARA
era o Bor Meli. Ao relato voltaremos mais adiante; a última identificação
vamos mostrar desde já que não tem qualquer valor.
ZURARA
diz que o Guitanye era um chefe local, dependente do «grande rei» Boor.
O primeiro julgava-se com autoridade suficiente para tratar com os
portugueses mas Fernando Afonso não se convenceu e impôs a sua vontade no
sentido de um mensageiro ir levar a carta ao Boor, que nessa altura
estava no interior guerreando um senhor revoltado. Previamente informara-se
porém do tempo que a resposta demoraria, sendo-lhe dito que seis a sete dias:
isto significa que o Boor estava a 3 ou 4 jornadas da costa.
Verificamos
desde já que RONCIÈRE se enganou ao afirmar que o rei estava a 8 jornadas
(talvez baseado em BARROS).
E
éfácil
mostrar que o mesmo lhe sucedeu ao dizer que se tratava do Rei de Meli - Bor
Meli.
A
designação Bor Meli é caracteristicamente jalofa. É certo que DIOGO
GOMES só aplica essa designação, mesmo quando está a falar de informações
colhidas no Gâmbia (Bormelli, Mormelli), mas deve-a te repetido por
frequentemente ouvida entre os jalofos. Os mandingas dizem Mandimansa (99).
O Bor é o equivalente jalofo do Mansa dos mandingas.O imperador
mandinga era conhecid!o na generalidade por Mandimansa; a
sua fama era porém muito grande, e, nalgumas regiões, mesmo naquelas onde não
dominava, davam-lhe nomes equivalentes noutros idiomas, como é o caso presente
com os jalofos, que estavam fora do seu poder.
Em
resumo: o facto de ZURARA chamar ao Rei da região Boor demonstra que não
se tratava
de terra de mandingas, mas sim de jalofos, barbacins ou mesmo sereres (se bem
que estes tenham para o mesmo caso a palavra própria Mad; no entanto,
como estavam muito influenciados pelos jalofos, também podiam empregar o termo
destes).
Aceitar
que Boor em questão era o Bor Meli é absurdo. O Imperador Mandinga
residia nas margens do Alto Nlger, a milhares de quilómetros para o interior
(Valentim Fernandes, pág. 75, diz: «Este rey vive dentro
no sartão 700 légoas»). Para chegar até ele seriam necessários meses, e de modo
nenhum três
ou quatro dias. Poder-se-ia supor ter-se ele deslocado para ocidente, a fim de
combater algum súbdito desobediente; não temos porém informação alguma de que
em tempo algum um Mandimansa viesse até ao Atlântico. As suas conquistas
para os lados do Gâmbia eram efectuadas por cabos de guerra que ele mandava
para esse fim; a administração corria por chefes locais ou enviados, de
confiança.Para mais, nessa altura estava o Imperador mandinga bastante
atarefado com vizinhos próximos, que aclivamente lhe retalhavam domínios perto de
Mandem. Estranho seria supor que numa ocasião dessas ele se deslocasse tanto
a ocidente para combater um senhor da periferia do império. Aliás o seu poder
(já nessa altura bastante teórico) apenas atingia o litoral na zona do Gâmbia.
RONCIÈRE
enganou-se portanto, obcecado como estava com o Imperador de Meli, que na sua
obra constitui uma figura central.
O Boor
de ZURARA era um chefe de menor importância, dos váriosque iam do Cabo
Verde ao Jumbas, da tribo jalofa ou da serere. DIOGO GOMES fala de dois, na região do Sine, em
seguida aos Sereres: o Barbacin (Bor-Ba-Sine)
durte o Barbacin
negor. Também já a propósito da viagem de Nuno Tristão se falou de um outro Bor de maior poder que estes: o Borsalo
(Bor-Salum), da região do Salum.
De
ALVARES DE ALMADA (caps. III e IV) concluimos que por alturas do Cabo Verde o Budumel
(Bor-Damel) do Encalhor (Caior) deixavade ter dominio na costa do
mar. Ao longo desta corriam até o Rio dos Barbacins (Salum) os barbacins
do Reino de Ale-em-biçane, e desse rio para o sul os do Reino de
Borsalo.
AZEVEDO
COELHO refere os Xeréos (Sereres), à beira-mar, entre os reinos de Encalhor
e Bóol (Baol), sujeitos ao Reino de Porto Dale, ao qual se
seguia, para sul, o Reino de Berbecin, depois o de Borçallo, e ,
após o Rio de Felam (Jumbas), o Reino de Barra (100).
Cita
DIOGO GOMES, antes da última viagem de Nuno Tristão, uma expedição que passou
para o sul do Cabo Verde chegando a terras do Besegichi, tendo este
traiçoeiramente atacado os nossos.
Creio
portanto ser fácil concluir que o Boor de ZURARA diz respeito a alguns dos chefes entre o Cabo Verde e
o Jumbas, talvez o Bor-ba-Sineou o Bor-Salum. Em virtude do mau caminho que
estavam tomando as relações com os potentados negros ao sul daquele cabo,
natural era que de Portugal se enviassem expedições destinadas a estabelecer amizade
com eles. Tal seria o objectivo daquela em que embarcou Valarte, objectivo esse
bem claramente revelado por ZURARA.
Não
vemos portanto razão para crer, como MAGALHÃES GODINHO,que «não deve tratar-se
de um rei da região do Cabo Verde, que nenhumafonte menciona, mas do Imperador
de Meli».
Evidentemente
nenhuma fonte menciona um «Rei de Cabo Verde» - notar que o nome do Cabo éportuguês - mas na região e nas
proximidades havia vários reis, cujos nomes gentilicos apontámos. O «senhor da
terra» de que ZURARA fala seria o Bor Damel - caso o cabo estivesse então na
jurisdição do Caior, o que não pudemos apurar em definitivo - ou o chefe dos
Sereres do litoral, talvez o Besegichi de que tanto fala DIOGO GOMES.
Não vemos razão alguma para ir buscar o Imperador de Meli e não aceitar a
afirmação simples e clara de ZURARA.
Note-se
ainda que os dois intérpretes que levavam se fizeram entender- no que o texto do cronista é bastante
claro. Não é de excluir a suposição de que eles fossem alguns dos cativos das
expedições anteriores. Temos repetidas provas de que havia este costume,
de utilidade evidente. ZURARA não indica porérn que nas três viagens de 1446 se
tivesse capturado algum homem; resta portanto a suposição de que os intérpretes
teriam sido aprisionados nas expedições de 1444 e 1445, no sul do Senegal ou
nas imediações do Cabo Verde. Seriam portanto jalofos, o que significaria que
no local atingido por Valarte habitariam jalofos ou barbacins (ÁLVARES DE
ALMADA indica que embora as línguas sejam diferentes, eles se entendem).
Evidentemente
este argumento não tem demasiada importância, porquanto poderia tratar-se de
escravos obtidos por outras vias, nomeadamente através dos mouros ao norte do
Senegal (101).
Resta
agora analisar uma hipótese derivada da versão de BARROS.
Já se
acentuou que este dá ao Guitanye a designação de Farim, por ser o
Governador da terra («sabido este recado per o Governador da terra a que
eles chamam Farim»). Quer dizer, não se trata fundamentalmente de uma
divergência, derivada de nova fonte (e a comparaçãodos dos textos prova que
esta não existiu), mas sim de uma ilacção. A JOÃO DE BARROS, que estivera na
Mina, não era desconhecido o facto de, entre os mandingas, ser muito vulgar a
designação Farim (mais própriamente Faran - adiante trataremos
pormenorizadamente do assunto) aplicada
aos régulos. A palavra era muito corrente na Guinée no Sudão. Daí o cronista
tê-la aplicado ao caso de Guitanye sem se proocupar se este era ou não mandinga.
E fê-lo com infelicidade, porque errou, pois a referência de ZURARA ao Bor, chefe
do Guitanye, prova que não se tratava de mandingas.
MACALHÃES
GODINHO aproveitou-se do termo de BARROS para o ligar a uma passagem de
VALENTIM FERNANDES onde se fala da existência de um chefe mandinga, Farinbraço, que
tinha assento no rio de S. Domingos {Cacheu). Diz que, a aceitar-se a indicação
de BARROS, a morte de Valarte localizar-se-ia no referido rio. O trecho de
VALENTIM FERNAMDES é o seguinte:
«Ryo
de samdomjgos he hüm ryo qentrã
nanjos por elle ë cima 60 leguas
a este ryo por seu lingoa chamã jaffada. Os navios q
vam tãto acima vãm resgatar cauallos os quaes resgatã cõ
hüm senhor ¨q se chama farinbraço. E
he mãdinga e toda sua gente mandinga». (102)
Comecemos
por notar que no Rio de S. Domingos habitavam então na foz os felupes. A estes
seguiam-se, para montante, os brames e banhuns. Após eles vinham os balantas,
ao tempo de AZEVEDO COELHO sujeitos ao Rei do Casamansa. Só então, a cerca de
20 léguas da foz, surgiam os mandingas do Brossuou Braço, cujo chefe
(Farinbraço) residia normalmente a 30 léguas da barra (e não 60, como
VALENTIM FERNANDES, com exagero, afirma) no local onde chegavam as caravelas, e
perto do qual Gambôa Ayala, por volta de 1641, fundou a povoação de Farim - (a
origem do nome fica demonstrada), uma das mais antigas da Guiné Portuguesa.
Como
já se viu que Valarte desembarcou na costa - e não temos nenhuma indicação de
que Abram ficava na proximdade de um rio - é fácil concluir que, se
outras razões não houvesse, nunca poderia ser o Farinbraço
o Guitanye de ZURARA.
Acresce
ainda que entre o Gâmbia e o Rio Grande tinham então assento vários Farans, a
que mais tarde nos referiremos, com vagar. A errada indicação de BARROS só
viria afinal complicar a questão, dificultando a escolha.
Fica
portanto demonstrado que não tem qualquer cabimento o que se viu ser uma
ilacção de BARROS, e com mais forte motivo a interpretação de MAGALHÃES
GODINHO.
(97) Os três referidos termos foram apresentados ao senhor
Administrador António Carreira, que foi concludente em afirmar que nenhuma
relaçáo têm oom a língua mandinga, admitindo como possível terem sido
introduzidos no idioma jalofo pelos berberes da Mauritânia. Desde já declaramos
que no decorrer deste trabalho por muitas vezes ainda recorreremos a informações
de carácter linguístico amàvelmente prestadas por aquele Senhor Administrador,
que conhece a fundo a vida dos mandingas. Essas informações revelaram-se de
grande importância, pelo que desde já aqui lhe deixamos expresso o nosso
agradecimento.
(98)
Sabemos, com efeito, que da rnargem sul do Gâmbia, do Combo, alé ao Cacheu, a
costa era habitada por Felupes, como já se demonstrou no relativo à viagem de
Nuno Tristão. Da análise às respostas a um lnqnérito Antroponímico recentemente
levado a cabo na Colónia pudemos verificar
a
não existência de tais
termos,
quer na língua felupe, quer nas
restantes. Entre os muitos nomes indigenas que temos
ouvido nunca nenhum se deparou que pudesse aproximar –se dos três primeiros
referidos. Quanto ao quarto termo, apenas nos lembramos do fula e mandinga
Malam, parecido oom o AmalIam de ZURARA. Tal termo é porém de origem árabe, e
encontra-se largamente espalhado por toda a Africa Ocidental, pelo que
unicamente se pode
concluir
que ele, na época e no litoral, apenas se encontraria
no
Combo, no Niumi ou daí para o norte (em regiões
islamisadas).
(99) Já VALENTIM FERNANDES menciona expressamente o facto, ao descrever o Reino Mandinga:
«Elrey de Mandinga se chama Mãdimãsa
porque os desta terra por seu lingoagë chamã a prouincia de Mãdinga, Mandi. E mansa quer dizer rei por sua lingoa. E a ssim
se chama elrey delles Mandimãsa» (B 45, págs 75).
(100) AZEVEDO COELHO, B 2a, fls. 7-11.
(101) Com um indígena aprisionado por Pedro de Cintra numa
zona do litoral que actualmnte está incluida na
Liberia sucedeu ter sido compreendido em Lisboa por uma escrava, que
evidentemente não podia ter sido antes capturada pelos portugueses no local, e
devia assim ter chegado à Europa por outra via.
(102) VALENTIN FERNANDES, B 45, págs. 84.
c) Os cativos
De
ZURARA parece concluir-se que nem todos os que ficaram
retidos em terra foram mortos.
Diz
o cronista que anos após se soube por alguns cativos que num «castelo» do
interior haviam sido aprisionados quatro cristãos, um dos quais já morrera,
concluindo tratar-se, talvez, dos companheiros de Valarte.
É bem conhecida uma carta, datada de 12 de
Dezembro de 1455, dirigida aos seus credores por um Antonio Usodimare, italiano
que fez uma viagem ao Gâmbia. Nessa carta fala Usodimare
da
existência na regiãõ de um indivíduo «della nostra natione, credo di quelli
della galea Vivaldi» (103).
Já
SANTARÉM, há
um século, mostrara que se devia tratar de algum dos companheiros de
Valarte. A suposição afigura-se bastante verosímil. No entanto continua a
correr como certa a absurda afirmação de Usodimare - como se fosse possível que
após 170 anos ainda andasse pelo Gâmbia alguém (onde aliás não é de crer que os
Vivaldi pudessem chegar com seus batéis) no meio de povos negros, conservasse a
língua italiana e recordação do facto.
Se
abrimos um parêntesis para referir este ponto, que nada interessa à localização
do termo de Valarte, foi porque nunca é demais contestar afirmações de uma
historiografia tão abundante em fantasias.
(103) CADDEO, B 14, págs. 153-55.
d)
Conclusões
Depois
de eliminadas uma série de hipóteses sem fundamento – identificação de Abram
com Habanbarranca, de Boor com Bor Meli, de Farim com
Farinbraço - continua de pé a
suposição de que o ponto onde Valarte fui morto ou capturado tem de procurar-se
entre a Ilha Gorea e o Rio Jumbas. Já atrás ficaram devidamente expostos os
fundamentos geográficos e etno-linguísticos em
que tal suposição se apoia.
Chegou
agora a altura de voltar ao relato de DIOGO GOMES. Comecemos por notar que este
refere apenas as expedições de NunoTristão e Valarte, omitindo a de Estêvão
Afonso. Como já se acentuou, deduz-se de DIOGO GOMES que a região atingida pelos
dois primeiros foi o Niumi. Com
efeito diz ele ter sabido, de um chefe indígena, que fora o Niummansa quem
fizera dano aos cristãos e «às caravelas já nomeadas». Como antes aíirmara que
NunoTristão levara apenas uma caravela e Valarte outra, as caravelas só poderão
ser as duas referidas.
Mas
já se viu atrás que os elementos etno-linguísticos extraídos de ZURARA provam
de forma coucludente que Valarte não atingiu a região dos mandingas, o Niumi.
Conclui-se
portanto que DIOGO GOMtES laborou em confusão. Resta
apurar
como esta se formou.
Poderia
ainda argumentar-se que quando ele diz que Valarte navegou «ainda além do lugar
já dito, onde os cristãos tinham sido mortos» se está a referir não a Nuno
Tristão, mas à expedição que descreve anteriormenteà deste, e em que os
atacantes foram os homens do Besegichi. Não se consegue porém assim
desfazer a confusão, porquanto fica de pé o passo relativo ao dano feito «àscaravelas
já nomeadas».
Outra
explicação há porém a apresentar, que se afigura mais plausível. Deve-se
salientar que DIOGO GOMES:
1)
- Não refere a expedição de Estêvão Afonso;
2)
- Atribui à expedição de Nuno Tristão um facto que não se
verificou - a destruição da caravela. Este facto diz porém respeito à
expedição de Estêvão Afanso (encalhe da caravela do Bispo do Algarve);
3)
- Atribui à expedição Valarte factos que não se verificaram - a grande
mortandade dos tripulantes, a condução da caravela por moços e
o encontro de um
corsário na costa de Portugal. Estes factos dizem porém respeito à expedição
de Nuno Tristão;
4)
- Atribui à
expedição de Valarte outro facto que se não verificou - o ter passado além da
de Nuno Tristão. Este facto dis porém respeito à expedição de Estêvão
Afonso.
Conclui-se
portanto que DIOGO
GOMES baralhou e resumiu em duas os sucessos de três expedições diferentes.
Julgo
que à luz desta interpretação - que tem fundamentos evidentes - o desacordo
entre ZURARA e DIOGO GOMES fica arrumado. E em conclusão os factos
teriam sido os seguintes:
-
Nuno Tristão passou o Rio dos Barbacins, chegando provavelmenteao Rio de Lago,
onde foi morto. O sucesso deu-se já no Niumi – DIOGO GOMES está na razão.
-
Estêvão Afonso passou além de Nuno Tristão e chegou à foz do Gâmbia,
encallhando aí uma das caravelas. O sucesso deu-se igualmente no Niumi – DIOGO GOMES
deslocou para a viagem de Nuno Tristão o encalhe (destruição) da caravela e a
ultrapassagem para a de Valarte. O encalhe da caravela não foi porém no Rio do Lago,
mas sim no Gâmbia.
-Valarte
ficou aquém de Nuno Tristão, e ao norte de Niumi - DIOGO GOMES
errou.
Como
quer que seja, os argumentos extraídos de ZURARA no respeitanteà viagem de
Valarte são suficientemente concludentes para localizar o seu termo entre a
Ilha da Palma e o Rio de Lago. Há confusão manifesta em DIOGO GOMES.
Ocorre
agora uma dúvida - assente que há confusão no relato de DIOGO GOMES, poder-se-á
atribuir alguma importância à sua informação tendente a mostrar o Niumi - mais
em especial o Jumbas - como términusde Nuno Tristão? Bem claramente
demonstrámos, após a devida análise, que igual conclusão se extrai de ZURARA,
pelo estudo combinado do relato que faz das viagens de Nuno Tristão e Estêvão
Afonso. Fo imesmo por essa análise que começámos, e só no fim se apresentou o texto
de DIOGO GOMES, como comprovação.
Quando
duas fontes, uma mais segura que outra, se acordam, creio que não há razão para
duvidar da menos segura; pelo contrário, ela fica verillicada no ponto em que
há acordo. Significa isto que o relato de DIOGO GOMES tem certamente utilidade
- mas necessita de ser empregado com a devida cautela.
Após
tanta discussão chegou a altura das conclusões.
Nas
primeiras viagens após a descoberta do Senegal as relações comos indigenas
estavam-se manifestando francamente más. Os escravos capturados eram escassos,
comparados com os obtidos na Mauritânia. Os negros mostravam-se aguerridos, e a
mortandade entre os tripulantes dos navios era bastante grande, mercê dos
ataques com frechas ervadas. Urgia mudar de orientação, e obter por meios
pacíficos o que até ai senão conseguira.
Com
este fim partiu a expedição onde Valarte embarcou. O seu objectivo era
estabelecer as pazes com urn dos chefes da região do Cabo Verde - o Bor-Damel, o Bor-Ba-Sine ou o Bor·Salum.
A caravela passou além da Ilha da Palma e chegou a terra do Bor-ba-Sineou do Bor-Salum,
voltando sem que se conseguissem firmar as relações de amizade, ficando por lá
Valarte e alguns portugueses, cativos ou mortos.
☻
1447 - Para aproveitar a boa vontade, que os habitantes das
margens do Rio do Ouro mostrarão a Gomes
Pires quando ultimamente alli esteve, lhe deo o commando de duas Caravelas (1), e o mandou
estabelecer com eles hum
commercio regular. Chegou elle ao Rio, e em breve conheceo, que os Mouros só
buscavão engana-lo, armando-lhes ciladas para o surpreender; de que irritado, assaltou
as suas Aldeas, e cativando oitenta pessoas, recolhendo-se a Portugal.
(1)Faria , tomo l.º da sua Asia, Parte 1.ª - Barros, Cap. 15 da Decada 1ª,
L.º 1.º
☻
1447 - Nao sendo possível, em consequencia deste acontecimento, organizar o
commercio dos escravos com os Mouros do Rio do Ouro, e sabendo o
Infante que os de Meca (ou Meissa), cidade situada entre
os Cabos de Guer, e de Nâo,na Lat. N. 30º 5’ e Long.8 50', desejavão a amizade,
e commercio dos Portugueses, mandou em essa comissão Diogo Gil (1) homem experimentado, por Commandante de huma
Caravela, e com elle por interprete João
Fernandes, celebre pela sua habitação voluntaria entre os Azenegues. E como
em Portugal se achavão dezoito Mouros captivos naturaes de Meca, que offerecião
por si huma certa quantidade de Negros, o entregou o Infante a Diogo Gil, para
que os resgatasse.
Chegado
elle ao Porto do seu destino, e tendo recebido cincoenta Negros pelos dezoito
Mouros, sobreveio tamanha travessia, que se fez á vela, deixando em terra a
Joâo Fernandes, e voltou para Portugal, trazendo ao Infante o primelro Leão, que veio daquele
Paiz, o qual Infante enviou de presente a hum Fidalgo
inglez seu amigo , que assistia no Principado de Walles.
(1)Barros (a quem seguem Faria, e Soares da Silva nos lugares já citados)
colloca esta viagem, e a seguinte de
Fernáo Affonso a Cabo Verde no anno de 1448; mas parece-me que hanisto
manifesto engano, pois diz (pag. 30), que neste anno (1448) El·Rei
D. Affonso sahio da tutoria do
Infante D. Pedro seu tio, e
houve inteiramente posse de seus Reinos em idade de dezasete annos. Eis
aqui este acontecimento, Ségundo Ruy de Pina na Chronica d'El-Rei D. Affonso, Capitulo 86. Cumprindo El-Rei
quatorze annos no mez de Janeiro de 1446, celebrárão-se no dito mez Cortes
Geraes em Lisboa, e alli lhe entregou o Infante D. Pedro mui livremente, e sem
cautela e Regimento. Concluido este Acto, e achando-se El-Rey na sua Camara com
seu irmão o Infante D. Fernando, e os infntes D. Pedro, e D. Henrique, e outras
Personagens, pedio ao Infante D. Pedro, que até nisto poderia fazer, elle
inteiramente mandasse, e fizesse em seu nome o que dantes fazia. Tres dias
depois fez o Doutor Diogo Affonso, em nome, e na presença d’El-Rey, em outra
sessão das Cortes, huma Declaração solemne nesta Real resolução.
Continuou o Infante segunda vez na Regencia do Reino, e
ocorrendo os memoráveis sucessos, que as Historias referem, e não são do
objecto destas Memorias, largou de todo o Governo a El-Rei em .Maio do anno seguinte de 1447, senão foi antes;
porque neste mez he que El-Rei em
Santarem tomou sua casa, e sua
mulher junlamente, e já o Infante se tinha de facto dimittido de todos
os negocios da Regencia, não querendo assignar Diploma algum.
A' vista desta passagem de Ruy de Pina fica evidente, que a
data das viagens de Diogo Gil, e Fernão Affonso, que Barros, e
os seus seguidores põem no anno de 1448, devem
recuar-se ao anno antecedente pelos seus proprios fundamentos.
☻
1447 - A fama dos descobrimentos das novas regiões, e extranhos Povos, que os Ponuguezes sucessivamente fazião, atrahia a Portugal muitos homens notaveis, curiosos de cousas tão extraordinarias, e entre
estes veio hum Gentil-Homem da Camara d’EIRei de Dinamarca, e por elle recommendado ao Infante; os nossos Historiadores lhe chamâo Balart, corrompendo talvez o nome. Este
Fidaigo ardia em desejos de viajar na Costa d' Africa, para examinar de perto
as maravilhas, que entre os gelos da sua patria ouvia relatar daqueles
climas, em que as arvores nunca se despojâo da sua folhagem, e as producções
da natureza são
totalmente diversas.
O
Infante mandou logo armar hum navio, cujo cornmando deo a Fernão Affonso.
Cavalleiro da Ordem de Christo, que levava huma mensagem ao
Soberano de Cabo Verde; e com elle se embarcou Balart, cuja
curiosidade obrigou Fernão Affonso a fazer huma viagem costeira
até ao Cabo para lhe ir mostrando todas as Bahias, Portos, Rios, e Promontorios
já descobertos; e por esta causa, e por alguns ventos contrários gastou seis mezes na jornada,
Chegando
ao Cabo, logo que os Negros virõ os navios, sahirão a reconhece-lo, em som de
guerra, em suas Almadias, mas explicando-lhes os interpretes o verdadeiro
objectivo da viagem, e informados dos presentes para o seu Principe, foram
avisar o Governador da terra, por estar o Rei dalli oito jornadas occupado em
huma guerra no sertão. Veio elle á praia receber em
ceremonia a João Affonso, e a Balart, e alguns dentes de elefante dos quaes
maravilhado o Dinamarquez, offereceo-lhes grande preço, se lhe mostrassem hum
destes animaes vivos, ou lhe trouxessem a pelle, ou a ossada de algum. Os
Negros, cobiçosos do premio, prometêrão tudo; e três dias depois o vierão chamar,
para que fosse a num certo lugar, onde tinhão hum elefante vivo. Balart, sem
mais consideração, nem receio, partio na lancha (única embarcação do navio), só
com os marinheiros que a remavam, e chegando a terra, onde as ondas andavam de
lavadío, cahio um marinheiro ao mar no momento de tomar huma cabaça de vinho de
palma, que lhe dava um Negro; e querendo os companheiros recolhe-lo, foi tal a
revolta, que se atravessou a lancha, e foi á costa. Os Negros vendo os
Portuguezes em estado de não poderem defender-se, nem ser socorridos, derão
sobre elles, e os matarão a todos, excepto hum, que se salvou a nado.
Assim
acabou este ilustre Estrangeiro ás mãos de bárbaros traidores, sem que Fernão
Affonso podesse tomar deles justa vingança, porque nem eles tornarão mais a
bordo nem tinha outra embarcação, em que desembarcasse. Esta desgraça fez com
que se recolhesse a Portugal.
☻
Em 1447, já reinava D. Afonso V, Fernando
Afonso, cavaleiro da Ordem de Cristo, e o nobre
dinamarquês Valarte (ou Abelharte) são massacrados e os seus homens
em Baol, uma localidade entre a ilha da Palma e o atual rio Jumbas.
Paradoxalmente, esta viagem constituiu a primeira missão henriquina com um
objectivo diplomático a sul do Senegal – encontrar um rei cristão ou mesmo
Preste João que se aliasse ao rei de Portugal.
PEDRO AFONSO (?) e o dinamarquês VALLARTE vão a Caior (?), ao Sine(?) ou
ao Salum(?), sendo o segundo morto ou feito prisioneiro. VALLARTE apareceu em Portugal recomendado pelo rei dinamarquês
Cristóvão III. Sobrinho e sucessor de ErIk VII (da Pomerânia) o qual havia
casado com D. Filipa de Lencastre, sobrinha da Rainha de Portugal sua homónima
e, consequentemente, prima direita do Infante D. Pedro.
Conta
Diogo Gomes:
«Ouvindo o senhor infante a má nova da morte
dos seus christãos (Nuno Tristão e os outros) ficou mui triste. E estava então
de visita no seu palácio um certo nobre do reino da Suécia, que veiu a Portugal
para se fazer cavaleiro no ultramar em Africa, cujo nome era Ábelhart
(Vallarte). Desejando ver terras estranhas, e principalmente Guiné, pediu ao
senhor infante que o mandasse áquellas regiões. E o senhor infante cedeu ao
pedido d'elle, deulhe uma caravella armada com alguns nobres da sua corte.
Estes navegaram ainda
alem do logar já dito, onde os christãos tinham sido mortos. E acharam os
pretos com almadias armadas, mais de trezentas, com as suas setas venenosas, e pelejaram com os christãos e ficaram
muitos mortos e quasi todos feridos, excepto três rapazes. E sobrevindo
vento forte foram levadas para o mar quebradas as ancoras e rotos os cabos,
quasi por milagre de Deus. E na caravella estava um certo ancião gravemente
ferido, grande marinheiro. Conhecendo que ia morrer disse aos meninos: depois
que eu morrer ide para o norte com a vossa caravella e encontrareis o reino dos
christãos.
Muitos dos christãos que estavam feridos com veneno
morreram, e por milagre de Deus estes três rapazes lançaram ao mar os cadáveres
d'elles, vendo sem temor de
que modo os corpos desciam á profundeza, e assim fizeram também ao velho
marinheiro. Quando elles, porém, entraram no grande mar oceano, seguindo o
ensinamento do ancião, sem vista da terra nem das ilhas, vieram por instincto
de Deus ter a Portugal.
E quando avistaram terra saiu-lhes ao encontro um certo
corsário com muitos navios, chamado Maclán de Trapana, e um dos seus navios menores chegou á caravella dos
meninos, e entraram n'ella, e acharam aquelles três meninos e ficaram muito
admirados. E isto era ao pé do Cabo de Pichei, a 7 léguas de Lisboa. O corsário
tripulou a caravella e dirigiu-a para Lisboa com os meninos.»
«Indo nós próximo da margem avistámos duas
almadias que iam no mar. E puzemo-nos entre élles e a terra, e navegámos para
elles, e em cada uma das almadias estavam 38 homens. E o interprete
chegou-se-me e segredou-me que ali estava Besêghichi, senhor d'aquella terra e
homem medroso de que já acima falámos. E eu fiz com que elles entrassem na
caravella, e dei-lhes de comer e beber e presentes, e disse-lhes, como se não
soubesse que o senhor delles estava ali, para o experimentar: esta terra é
Beseghichi? E elle mesmo disse: Assim é. E eu disse-lhe: Porque é elle tão mau
para os christãos? Era melhor para elle fazer pazes com os christãos, e que uns
e outros trocassem as suas mercadorias, e teria cavallos, etc, como faz
Burobruck e Badamel e outros senhores dos negros. E digam-lhe lá que eu vos
tomei n'este mar, e que por amor d'elle vos deixo ir livres para terra. Ficaram
muito contentes; e disse-lhes que entrassem nas suas almadias; e entraram. E
depois de todos estarem nas suas almadias disse então ao senhor: «Beseghichi,
Beseghichi, não julgues que te não conheci; certamente eu poderia fazer de ti o
que quizesse. E visto que te fiz bem, tu agora faze o mesmo aos nossos
christãos».E assim cada um de nós seguiu o seu caminho.»
Valarte
e Fernando Afonso
Viagem
descrita por ZURARA (Cap. LXIV), BARROS (Déc. I. Liv. I.Cap. XV e DIOGO GOMES.
Indicações
principais:
1-
A
expedição tinha· por fim estabelecer relações amistosas comuro chefe da região
do Cabo ·Verde.
2-
A
caravela passou para sul da Ilha da Palma (Gorea).
3
- O ténninus era denominado pelos indígenas Abram e ficava junto de uma
ponta.
4 - O Governador da terra chamava-se Guitenya ou
Guitanye. Outros indivíduos importantes tinham os nomes de Satam, Minef e
Amallam.
5
- O grande rei da região era Boor, e estava a cerca de 3 dias de viagem
do local.
BARROS
Resumo
de ZURARA. Apenas difere em chamar Farim ao Guitanye,por ser o
Governador da terra.
DIOGO
GOMES
1
- A caravela de Valarte foi além de Nuno Tristão.
2
- Os indígenas que atacaram Valarte eram do mesmo agrupamento triboa! dos que
mataram Nuno Tristão, sendo o seu chefe, nos dois casos, o Nomimans, senhor
da margem norte do Gâmbia junto da foz.
Interpretações
principais de historiadores e investigadores: sobre otérminus:
a)
1925 -
CHARLES DE LA RONCIÈRE (B 32) - O Guitanye eraum vassalo do Imperador deMali
(Bormeli).
b)
1938 -
JOÃO BARRETO (B 4) - Margem direita do Gâmbia.
c)
1943 -
DAMIÃO PERES (B 30) - Rio Gâmbia.
d)
1945 -
MACALHÃES GODINHO {B 25) - Entre o Cabo dos Mastros e o rio de S. Domingos,
provàvelmente este.
e)
1946 - A. TETXEIRA DA MOTA (B 33) - Local entre a llbada Palma (Gorée) e o rio
Jumbas.
f)
1946 -
JOSÉ DE OLIVEIRA BOLÉO (B 28) - Rio de S. Domiogos.
ZURARA
não indica nenhuma distância; fornece porém alguns topónimos e antropónimos que
permitem apurar alguma coisa. No entanto só muito recentemente eles foram aplicados
para esse fim.
C.
DE LA RONCIÈRE(a), sem apresentar argumentos, afirmou ser o Guitanye um
vassalo do Bormeli, sendo este o Boor de ZURARA.
JOÃO
BARRETO (b) utilizou pela primeira vez o relato de DIOGO GOMES, fazendo notar
que, por ele, o ataque a Valarte se teria dado na margem direita do
Gâmbia.
Foi
porém DAMlÃO PERES (e) que procurou utilizar oom maior fundamento esse relato.
Entende que o «mais além» significa que Valarte subiu o Gâmbia, em maior
extensão do que Nuno Tristão. Como RONCIÉRE afirmava ser o Boor o Bormeli,
e DIOGO GOMES dizia dominar este na margem direita do Gâmbia, julga este
facto uma confirmação da estadia de Valarte nesse rio. Além disso vê no local Abram
de ZURARA a aldeia de Habanbarranca de DUARTE PACHECO, nas
imediações ainda do Gâmbia.
MAGALHÃES
GODINHO (d) entende que o rei que Valarte procurava era o imperador mandinga.
Acha plausível a hipótese de DAMlÃO PERES, se bem que lhe pareça mais seguro
afirmar que o insucesso de Valarte teve lugar entre o Cabo dos Mastros e o R.
de S. Domingos. A designaçãode Farim, aplicada por BARROS, levaria mesmo
a supor tratar-se deste último rio, pois VALENTIM FERNANDES diz ser senhor dele
o Farinbraço, de origem mandinga. OLIVEIRA BOLÉO (f) também se inclina
para esta hipótese.
No
nosso trabalho (e) pudemos desfazer alguns equívocos destes últimos
investigadores:
a)
Deve-se notar que o objectivo de Valarte era um rei da região do Cabo Verde,
conforme revela ZURARA. Este não refere também rio algum.
b)
O termo Habanbarranca de DUARTE PACHECO não é identificável com Abram;
trata-se de uma referência aos Bambaras ou Banbarrancas, que comerciavam em
ouro. Abram não tem relação com a língua mandinga.
c)
Os
termos Guitanye, Satam e Minef não se aparentam como sendo da
língua mandinga, o que portanto leva a supor que Valarte não chegou ao Niumi.
d) O Boor de ZURARA não é o Bormeli, mas
sim um dos vários chefes jalofos ou sereres da costa (lbor Damel, Bor-ba-sine,
Bor Salum,por exemplo, ou ainda o Bezeguiche).
e)
A aplicação da designação de Farim ao Guitanye, por BARROS, não passa de
uma ilacção, pois os outros antropónimos provam não se tratar de mandingas. A identificação
destes deve fomecer a solução do problema; cremos não errar em afirmar
serem termos jalofos ou sereres.
f)
A existência de vários farins na região entre o Gâmbia e o Geba
tomaria difícil apurar de qual se tratava - a ser verdadeira a afirmação de
BARROS. Por isso não se pode afirmar que fosse o farinbraço do
R. de S. Domingos.
g)
Em nosso entender Valarte não passou da região dos jalofose sereres, tendo
portanfo atingido um local entre a IIha da Palma e o R. Jumbas.
h)
O
facto de DIOGO GOMES afirmar que Valarte passou além de Nuno Tristão, explica-se facilmente por uma
confusão com a viagem de Estêvão Afonso. Ele não fala desta, e tudo leva a crer
que resumiu e baralhou em duas os sucessos de três expedições diferentes.
Barreto, João, História da Guiné 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 41
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