sexta-feira, 18 de março de 2016

TRÁFICO DE ESCRAVOS 1600-1608



















1600
«Outras vozes incomodadas com a escravatura surgem noutros pontos do império. Cerca de 1600, o padre carmelita e bispo de Cabo Verde, D. frei PEDRO BRANDÃO, escrevia ao rei D. Filipe II, defendendo que fosse concedida liberdade imediata a todos os escravos que se convertessem à cris. Baseava-se, para isso, entre outros argumentos, na ilicitude dos cativeiros: «Porque humanamente se não pode atalhar aos muitos modos com que injustamente os cativam. Porque uns são furtados por força ou engano, outros condenados sem culpa a cativeiro ( ... ), outros tomados em guerras injustas ( ... ), outros vendidos por seus pais, sem necessidade bastante; ( ... ), e outros por outros modos injustos. De sorte que, dizem os práticos, que de mil escravos que vêm ao Reino, novecentos são mal cativos.»
Ao juntarmos aqui as objecções à legitimidade da escravatura por parte de alguns representantes da Igreja, pode parecer que se trata de uma corrente de opinião com algum peso no conjunto das elites dos séculos XVI e XVII. Nada mais errado. O tráfico negreiro e o trabalho escravo tinham ganhado uma dimensão tão significativa e faziam movimentar interesses tão avultados que já não era apenas um assunto que interessava a um pequeno grupo de negreiros em busca de fortuna ou ao Estado, que dele fizera uma importante fonte fiscal. Toda a sociedade, na Europa ou nos territórios coloniais, adequara os seus quadros mentais à nova realidade socioeconómica e tanto o «infame comércio» como a exploração do trabalho forçado eram vistos como a realidade natural das coisas desde o princípio do mundo. E as elites intelectuais, nomeadamente a Igreja, garante da ideologia dominante, ao mesmo tempo que não desprezavam participar nos benefícios económicos do negócio negreiro, produziam a argumentação que o justificava e lhe garantia continuidade.
O sofrimento pessoal e a injustiça social inerentes à escravatura não deixavam de ser considerados, por muitos, corno factos lamentáveis, mas esse juízo acabava por ser secundarizado por aquilo que se julgava ser uma necessidade social irrefragável.»
ANTÓNIO FERNANDES DE ELVAS e a tentativa de monopolização do tráfico
A nível peninsular, António Fernandes de Elvas foi um dos homens mais ricos e influentes do seu tempo. E veio a ser também um dos grandes «magnatas do tráfico negreiro» (para utilizarmos o título de um livro de José Gonçalves Salvador), tendo quase conseguido monopolizar o comércio atlântico de escravos nas primeiras décadas do século XVII.
A influência de que dispôs, deveu-a, em grande parte, aos laços familiares. António Fernandes de Elvas provinha de uma família endinheirada de cristãos-novos, com fumos de nobreza. O avô, António Fernandes de Elvas (a quem o neto foi bus(ar o nome), além de abastado homem de trato tinha sido fidalgo da Casa Real e tesoureiro da infanta D. Maria, filha de D. Manuel 1. O pai, Jorge Fernandes de Elvas, casado com Branca Mendes Coronel, era também mercador conhecido e fidalgo da Casa Real. Deixou ao filho, além da riqueza móvel, do bom-nome e do crédito comercial, dois importantes morgadios, que incluíam várias propriedades em Lisboa e noutros pontos do país. Entre as propriedades que pertenceram a António Fernandes de Elvas (neto) contava-se a Quinta das Mil Fontes, em Camarate, que ostenta, até aos nossos dias, um belo edifício de traça manuelina. Como o pai e o avô, também António será fidalgo da Casa Real, por alvará de 1566, confirmado em 1573.
O casamento aumentou-lhe o património e aprofundou-lhe os contactos no meio financeiro. A mulher, HELENA RODRIGUES SOLIS, filha do rico negociante JORGE RODRIGUES SOLIS (também ele e os filhos associados ao tráfico de escravos), trouxe para o matrimónio, como dote, uma renda de cerca de 5000 ducados. Diga-se desde já que não trouxe só isso: era uma mulher inteligente, forte e decidida que participará nos negócios ao lado do marido.
ANTÓNIO FERNANDES DE ELVAS, pelo nascimento e pelo casamento, mas também pelas afinidades de carácter religioso e pelos interesses económicos, estava inserido numa vastíssima rede de amizades e de cumplicidades com outras famílias de mercadores como as dos CORONEL, dos VEIGA, dos RODRIGUES DE ÉVORA, dos SOLIS, dos MENDES DE BRITO e dos XIMENES, para só citar algumas, todas elas com ligações ao comércio ultramarino.
Será esse também o seu caminho.
Em 1606 tinha tido o arrendamento dos direitos das naus da índia e em 1612 interveio em negócios de pimenta. Por essa altura, porém, já os seus interesses estavam mais virados para o Atlântico e para o tráfico negreiro, sobretudo a partir de Angola.
A primeira tentativa de ANTÓNIO RODRIGUES DE ELVAS para arrendar o asiento para fornecimento de escravos às Índias Espanholas remonta ao final de 1610. Embora tenha ganho o concurso do asiento que deveria ir de 1612 a 1622, o mesmo acabou por ser anulado por pressão do setor mais antiportuguês da Casa de Contratación, optando-se pela administração direta da Coroa. 
O asiento devia iniciar-se a partir de dia 1 de maio de 1615 e terminar no fim de abril de 1623, podendo e devendo, no total desses oito anos, ser introduzidos nas Américas 28 000 escravos africanos, a um ritmo anual de 3500. Tolerava-se, no entanto, que fossem vendidas, anualmente, licenças para mais 1500, para compensar eventuais perdas, por mortalidade, na viagem a partir de África.
Os navios do trato tinham de ser obrigatoriamente registados e inspeccionados em Sevilha ou Cádis mas, por razões de operacionalidade, podiam navegar directamente entre a África e o continente americano.
Os portos autorizados na América Espanhola eram os de Cartagena e de Vera Cruz mas permitia-se também a entrada de um pequeno número de escravos através do rio da Prata, um destino sempre ambicionado pelo acesso que possibilitava ao metal precioso que dava nome ao rio. Outra novidade: os representantes do assentista podiam levar osescravos por terra até ao interior, caso não houvesse na costa compradores suficientes. Ficava aberta a porta para todos os abusos.
Um ano depois de ter conseguido o exclusivo do tráfico de escravos para as Américas, eram também arrematados a FERNANDES DE ELVAS, por oito anos, os contratos de Cabo Verde (por 14700$000 réis anuais) e de Angola (por 24 000$000), o primeiro a começar em 1 de janeiro de 1616 e o segundo em 24 de junho de 1616. O contrato de Angola excluía Benguela, com um movimento ainda quase insignificante, mas incluía o Congo e o Loango.
Isto significava que, pela primeira vez, se concentrava nas mãos de uma única pessoa praticamente todo o comércio negreiro legal do Atlântico. Só ficava a escapar-lhe o arquipélago de São Tomé e Príncipe, mas a verdade é que essas ilhas já não eram, então, o grande entreposto comercial que tinham sido no século XVI. E de qualquer forma, o contrato respetivo também estava, então, entregue a negociantes cristãos-novos, os irmãos RODRIGUES DA COSTA (Jorge, primeiro, Fernão Jorge, depois), cujos interesses deviam estar próximos dos da família Elvas. Não é, aliás, impossível que, junto de FERNANDES DE ELVAS, no projeto de domínio do tráfico atlântico de escravos, estivessem outros comerciantes e banqueiros cristãos-novos, eventualmente com relações internacionais, nomeadamente ao Norte da Europa.
Fosse como fosse, a dimensão tricontinental do empreendimento, o volume de capitais envolvidos, a necessidade de ter agentes de confiança numa multiplicidade de cidades-portos, tudo isso tornava a empresa difícil de administrar. Sempre que pôde, António Fernandes de Elvas colocou os familiares em lugares-chaves: um dos cunhados, JERÓNIMO RODRIGUES DE SOLIS, foi seu procurador e feitor em Cabo Verde e em Angola, e outro cunhado, FRANCISCO, mais tarde preso pela Inquisição, foi seu representante em Cartagena das Índias. E o próprio filho, JORGE FERNANDES DE ELVAS, irá à América Espanhola como guarda-mor do asiento, levando consigo o feitor ANTÓNIO VIDAL
Mas continuava a não ser uma tarefa fácil. Os pagamentos das elevadas importâncias que era necessário satisfazer, periodicamente, em Lisboa ou em Sevilha atrasavam-se com facilidade, algumas vezes talvez de forma intencional, outras pela dificuldade em sincronizar transferências a tão grandes distâncias .. Por outro lado, com orientação superior ou não, os seus agentes (como forma de obter dividendos rápidos?) não resistiam à tentação de recorrer, sistematicamente, ao contrabando.
Nos anos de 1617, 1618 e 1619 entraram na América Espanhola mais escravos do que em qualquer outro período. Em grande parte devido ao contrabando, que atingiu valores nunca vistos. No rio da Prata, por exemplo, foram introduzidos mais quatro mil escravizados africanos do que estava estabelecido no contrato. No porto de Cartagena das Índias, para contarmos só um dos casos relatados pela historiadora Enriqueta Vila Vilar, quatro dos navios que aí entraram em 1619, procedentes de Angola, traziam registados, com os respectivos direitos pagos, 80 escravos cada um deles. A realidade era muito diferente. A carga efectiva era, navio a navio, de 206, 246, 422 e 623 cativos, nem mais nem menos•
MANUEL BAPTISTA PERES Negociar na Guiné, enriquecer no Peru
Durante o século XVII, mormente durante a União Ibérica, muitos cristãos-novos portugueses procuraram a América Espanhola em busca de fortuna e de tolerância. Em geral, foi mais fácil conseguir a primeira do que a segunda, uma vez que tiveram de confrontar-se não só com preconceitos religiosos como também com uma crescente animosidade contra os estrangeiros.
Em relação ao enriquecimento, uma boa parte deles encontrou no tráfico d a mais rápida de acumular capital. A biografia de Manuel Baptista Peres, nesse campo, é exemplar.
Nasceu cerca de 1591 em Ançã, distrito de Coimbra, numa família de cristãos-novos. Órfão de mãe muito cedo, foi levado para Lisboa pelo pai, Francisco Peres, junto com outro irmão pequeno, João Baptista Peres. Vão ser criados pela tia materna, Branca Gomes, esposa de um mercador, cujo filho (João Vaz Henriques) seria sempre muito próximo de Manuel Batista Peres.
Com os tios e o primo foi para Sevilha aos 11 anos e por lá ficou até perto da maioridade, altura em que regressou a Lisboa. Não tardaria a embarcar para a Guiné; fixando-se no porto de Cacheu (1612?), onde já vivia o irmão mais velho, JOÃO BAPTISTA PERES. Dedicam-se a comprar escravos e a exportá-los para as Índias de Castela. O negócio parece ter-lhes corri o em feição, pois não tardaram a ter navios próprios na travessia do Atlântico.
Em 1618, depois da inesperada morte do irmão no ano anterior, Manuel Batista Peres resolveu abandonar a costa de África. Não era a sua primeira viagem para Cartagena das Índias, mas desta vez ia com a firme decisão de se fixar no Novo Mundo, trocando o tráfico atlântico pelo comércio inter-regional americano, no qual o acesso mais fácil à prata era um poderoso acicate.
Não foi de mãos vazias. No navio em que partiu de Cacheu (a nau Nossa Senhora do Vencimento), de que era dono e capitão, transportava, à sua conta, 509 escravos. A viagem não correu bem e, durante a travessia, morreram 90 cativos ( 17% ), o que comprometia a rentabilidade da empresa. Mostrando o seu caráter empreendedor, vendeu em Cartagena a nau em que atravessara o Atlântico para poder fretar outra embarcação do lado de lá do istmo do Panamá e levar a Lima o seu carregamento de escravos, de forma a ressarcir-se das perdas.
A cidade de Cartagena era, à data em que Batista Peres lá desembarcou, um dos mais animados centros económicos das Américas. Antes de mais, pela qualidade do porto. Escrevendo ao rei, em 1570, um capitão espanhol da «frota da Terra Firme» afirmava perentoriamente que «O porto de Cartagena era um dos melhores da América e talvez do Mundo» •

Fundada em 1533, sobre um antigo povoado indígena, protegida, mais tarde, por fortes torres e bons panos de muralhas, a cidade conheceu um crescimento permanente ao longo dos séculos XVI e XVII. O afluxo de metais preciosos, de pérolas e de esmeraldas, bem como os negócios de tabaco e de plantas tintureiras, ajudaram Cartagena a tornar-se uma cidade dinâmica e cosmopolita.
Uma das principais atividades, ou mesmo a principal, era, porém; o tráfico de escravos. Nesse tráfico, eram os grandes comerciantes portugueses que dominavam, sobretudo a partir de 1580, quando os Habsburgo (afinal também reis de Portugal) estabeleceram com eles chorudos contratos monopolistas, abrindo transitoriamente mão do, regime de administração direta pela Coroa.
Os «assentistas» lusos instalaram, então, os seus representantes oficiais em Cartagena, montando paralelamente toda uma rede comercial que assegurava a reexportação de mão de obra cativa, abastecendo grande parte do Caribe e do interior do continente (vice-reinados do Peru e de Nova Espanha) e permitindo negócios recompensadores a muitos portugueses•
A cidade caribenha tornou-se, assim, o principal entreposto esclavagista das Índias Ocidentais. Em cálculos por alto, estima-se que. Entre 1595 e 1640, os «assentistas» portugueses tenham importado, através de Cartagena, 150 000 peças «legais», além de um número indeterminado introduzido através do contrabando• Uma parte desses escravos era retida na cidade e seus arredores (principalmente em trabalhos domésticos e agrícolas), mas a maioria, como já dissemos, era reexportada para outros pontos das Américas.
Um dos principais destinos era a cidade de Lima, capital do vice-reinado do Peru, considerada a Cartagena do Pacífico. As minas de prata, que animavam por si só a economia da região, consumiam grande quantidade de trabalhadores escravos. Mas Lima funcionava também como plataforma de distribuição de mão de obra servil para toda a região peruana e ainda para o Equador e para o Chile. Não admira, por isso, que os escravizados atingissem preços elevados e o seu comércio proporcionasse lucros significativos. Um escravo comprado em Cartagena por 270 a 300 pesos podia ser vendido em Lima pelo dobro dessa importância, o que era importante, apesar dos riscos e dos custos acrescidos.
Os escravizados descarregados em Cartagena eram embarcados para Portobelo (Panamá) e daí faziam, por terra, durante três ou quatro dias, a travessia do istmo até ao porto de Perico, já no Pacífico, percurso que havia que vigiar com mil olhos devido ao perigo de fugas
FRANCESCO CARLETTI, um florentino no tráfico de escravos
Quando se ouve falar em Francesco Carletti não é ao tráfico de e cravos gue o seu nome é normalmente a associado. Ele é considerado o primeiro europeu a dar a volta ao Mundo a título meramente privado, entre 1591 e 1606, utilizando meios de transporte que não lhe pertenciam. Por outro lado, há quem lhe atribua a introdução, em 1606, da técnica de fabrico de chocolate em Itália, o que não é pouco. No entanto, não é da viagem de circum-navegação nem de cacau, mas antes da sua participação no comércio de mercadoria humana, que falaremos aqui.
Francesco Carletti nasceu em Florença em 1573, numa família de negociantes. Quando fez 18 anos, o pai, que tinha negócios com Portugal e Espanha, enviou-o para Sevilha, para fazer aquilo a que hoje chamaríamos um estágio de formação, junto de um compatriota conhecido, Niccolô Parenti, há muito fixado na cidade do Guadalquivir, excelente lugar para quem se queria iniciar nas oportunidades do comércio a distância. Dois anos depois, o próprio pai veio juntar-se-lhe em Sevilha, e, como tinham capital disponível, alguém lhes soprou a possibilidade de um bom negócio: levar escravos de Cabo Verde para as Índias Espanholas.
Houve, primeiro, que vencer a burocracia. A monarquia espanhola, nessa altura em dimensão ibérica, não permitia que negociantes estrangeiros acedessem aos seus territórios coloniais. O jovem Francesco conseguiu ultrapassar o problema tomando-se procurador de uma senhora sevilhana, por acaso ( ! ) casada com um mercador italiano. Fretou depois um navio de 85 toneladas, obteve o despacho da Casa de Contratación de Indias, registou-se a ele próprio e à tripulação e comprou licenças para introduzir 80 escravos nas Américas, passo indispensável dado o regime de monopólio em vigor.
Partiu, finalmente, a 8 de janeiro de 1594., de San Lúcar de Barrameda, rumo a Cabo Verde. O pai, António Carletti, que não dispunha de autorizaçâo para entrar nas tridias de Castela, se ia escondido no navio.
Chegados, passados 19 dias, à Ribeira Grande, na ilha de Santiago, alugaram casa e fizeram saber publicamente, através de pregão que estavam compradores de escravos. Primeiro balde de água fria. Havia outros navios a carregar no porto e os proprietários ue traziam escravos para vender exigiam preços muito mais elevados do que aqueles que os Carletti aviam previsto em Sevilha, «no papel», quando planearam o negócio. Assim, em vez de 50 ou de um máximo de 60, tiveram de pagar, no mínimo, 100 escudos florentinos por cabeça. E só conseguiram comprar 75 escravos, sendo, como convinha, dois terços de homens e um terço de mulheres, mas sem distinguir novos e velhos, pequenos e grandes, «ao uso da terra»,
Com alguma hipocrisia, FRANCESCO CARLETTI espanta-se de se ver a ele próprio a participar num negócio em que se compram pessoas ao rebanho, como se fossem gado, «com todas as precauções e verificações para que estivessem de boa saúde e tivessem boa constituição e nenhum defeito físico».
A verdade é que leva o seu papel a sério e não hesita em ser ele a marcar a fogo os seus escravos com um ferrete de prata aquecido na chama de uma vela de sebo. Os escrúpulos são tardios: «Quando me lembro de a ter feito [a marcação], por ordem daquele de quem dependia [o pai?], não deixo de sentir uma certa tristeza e problemas de consciência, porque, para dizer a verdade, este tráfico pareceu-me sempre inumano e indigno da fé e da piedade cristãs[ ... ]. Este negócio nunca me agradou.»
No entanto, essas justificações são muito posteriores, e os problemas de consciência também. Na altura, a preocupação era outra: obter o maior lucro possível. Francesco assumiu a direção da tarefa. Separou os escravos por sexos e dividiu-os em lotes de dez, cada lote sob a direção daquele que lhe pareceu mais capaz e que estava encarregado de distribuir a alimentação (legumes secos cozidos com sal e um pouco de óleo) duas vezes por dia. Homens e mulheres andavam nus ou, quando muito,com um bocado de tecido, de couro ou mesmo de folhas de árvores a cobrir-lhes o sexo. Depois de comentar que andavam assim sem qualquer pudor, acrescenta que alguns homens usavam, a seu modo, de certa galanteria e prendiam o membro viril com uma fita ou um fio vegetal e, puxando-o para trás, entre as coxas, escondiam-no de tal forma ue não se sabia se eram homens ou mulheres. Outros adornavam-no com o chifre de algum animal ou com conchas marinhas. Outros ainda cobriam o sexo com múltiplos anéis de osso ou fios entrelaçados ou pintavam-no de vermelho, amarelo ou verde.
Francesco teve de interromper, no entanto, as observações antropológicas e a tarefa de cuidar dos escravos, pois caiu fortemente doente, provavelmente com malária, já que era o seu primeiro contacto com os trópicos. As sangrias a que foi sujeito, durante sete dias, não lhe trouxeram quaisquer melhoras.
Quando chegou o momento de partir para Cartagena das índias, o porto de destino, a sua debilidade era total e estava incapaz de se mover, tendo encarregado dois portugueses de tomarem conta dos escravos dele.
Estes foram embarcados no pequeno navio que os Carletti tinham fretado. Os homens foram instalados na coberta, tão apertados e comprimidos uns contra os outros que mal se podiam virar. As mulheres espalharam-se pelo convés, o melhor que puderam.
A viagem entre a ilha de Santiago e Cartagena durou um mês e foi feita em conserva com um outro navio negreiro que seguia na mesma direcção. Em grande parte do percurso, conseguiram pescar uma enorme quantidade de peixe, que lhes serviu para poupar víveres e alimentar, com ele, a tripulação e os escravos.
FRANCESCO CARLETTI atribui, aliás, ao facto de os escravos comerem um certo tipo de peixe mal cozido, ou quase cru, a doença que afetou alguns deles, que morreram de «fluxo de sangue».
Uma noite, já à vista das Antilhas, o navio que os acompanhava, maior e mais pesado, foi embater contra eles, por inadvertência do marinheiro que seguia ao leme, causando alguns danos e só por milagre não provocando o naufrágio da embarcação mais pequena. Mas o embate teve pelo menos uma vantagem: o choque e o enorme susto que ele lhe provocou curaram Francesco Carletti da doença que o atormentava, livrando-o, de um momento para o outro, da febre que até aí nunca o tinha largado.
À chegada a Cartagena das índias houve alguns problemas com as autoridades espanholas, mas que se resolveram de forma satisfatória.
Até a situação do pai António Carletti, que se mantivera escondido no navio, pôde ser legalizada, mercê de algumas cartas de recomendação e mediante o pagamento de 500 reais, cerca de 45 escudos florentinos.
Dos 75 escravos embarcados em Cabo Verde só chegaram vivos 68, mas a maioria doentes e muito maltratados. Os Carletti tudo fizeram para que eles recuperassem a boa forma, «não por caridade, é preciso dizê-lo, mas para não perderem o valor e o preço que representavam», conta o filho, num rompante de sinceridade. Apesar da melhoria detratamento, alguns deles, não sabemos quantos, acabaram por morrer pouco depois do desembarque.
Economicamente, a expedição tinha sido um desastre e não correspondera minimamente às expectativas risonhas que os seus promotores tinham projetado em Madrid. Carletti faz as contas. Na ilha de Santiago, em vez de por 50, cada escravo tinha sido comprado por 100 escudos ou mais. Cada licença para introduzir cativos na América custara 25 escudos. Os direitos de saída de Cabo Verde, 16. O transporte até Cartagena, a alimentação e outras despesas. Tudo somado, cada escravo ficara, segundo o mercador, em cerca de 170 escudos. Como tinham morrido sete na viagem e mais alguns já em terra, só haveria algum lucro se cada um dos sobreviventes fosse vendido por cerca e 300 escudos. Ora. o preço máximo a que foi possível negociá-los foi de 180. Segundo Francesco Carletti, tinham perdido nesta aventura 40% do capital investido. O florentino aprendia à sua custa que o negócio dos escravos, além de desumano, não era tão seguro nem tão lucrativo como muitas vezes se pensava.
MARTIM RODRIGUES TENÓRIO
MARTIM AFONSO TENÓRIO DE AGUILAR
(Castela, século XVI - Paraupava, São Paulo 1608 ou 1610)
De acordo com José Gonçalves Salvador, Martim pertencia a wn grupo de cristãos-novos que contraíram matrimónio com cristãs-velhas, no ensejo de obter prestígio social. Em São Paulo, casou com a viúva de Damião Simões, Susana Rodrigues, a 30 de Julho de 1589, de quem teve oito filhos. Entre os seus genros figuravam os nomes dos mineiros Clemente Álvares e Cornélio de Arzão.Recebeu o baptismo já adulto, no dia 18 de Agosto de 1601. A partir desse ano, tornou-se membro da Confraria de Nossa Senhora do Carmo, do Santíssimo Sacramento e da Misericórdia.
Letrado, no seu inventário de bens são referidas várias obras, entre as quais figuram Instrução dos Confessores, O Retábulo da Vida de Cristo, Mistérios da Paixão, o panegírico de Gonçalo Córdova e Crónica do Grão Capitão.
A actividade mercantil de Martim, sertanista e traficante de escravos, foi exercida a partir de São Paulo, onde era residente. Muito rico, ocupava-se de várias actividades comerciais, sendo proprietário de várias casas no termo de São Paulo, assim como de uma fazenda na mesma cidade. Ainda ali, Martim também desempenhou alguns cargos administrativos. Possuía um engenho em Ibirapuera e, em 1608, decidiu-se a penetrar pelo interior da região paulista de Paraupava, acabando por lá perecer como os restantes que o acompanhavam.
Apenas em 1612 é que a notícia da sua morte foi conhecida pelos seus familiares. Uma vez que Martim nunca dera a conhecer o testamento, estes acabaram por dividir os seus bens da forma que lhes pareceu mais conveniente.
Estudos
José Gonçalves Salvador, Os Cristãos-Novos e o Comércio no Atlântico Meridional (Com enfoque nas Capitanias do Sul 1530- 1680) , São Paulo, Pioneira Editora/MEC, 1978, pp. 77, 78, 82, 92, 102, 104 e 125.
Idem, Os Cristãos-Novos. Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro (1530- 1680), São Paulo, Pioneira/Universidade de São Paulo, 1976, pp. 7, 14, 62, 92, 95 e 229.
JOÃO SOEIRO (n. sec. XVI, m. sec XVII)
Fidalgo da Casa Real e mercador ligado ao comércio negreiro, JOÃO SOEIRO ganhou notabilidade ao se trornar contratador dos direitos de Cabo Verde e Rios da Guiné entre os anos de 1609 e 1614. recebendo uma renda anual de 16 contos de réis. Ao obter este contrato, adquiriu também autorização para fazer deslocar as suas embarcações até às Antilhas e outros locais.
Somente JOÃO SOEIRO empregava no tráfico legal, como no sub-reptício, mais de 30 navios transportadoresEnquanto contratador, fez-se rodear de outros cristãos-novos gue lhe serviam como intermediários, armadores, agentes e feitores. Entre os seus feitores contavam-se os nomes de PEDRO RODRIGUES DA VEIGA, FILIPE DE SOUSA CORCOVADO, ESTÊVÃO RODRIGUES PENSO, BALTAZAR LOPES DE SETÚBAL, DIOGO TABORDA LEITÃO e HEITOR CARDOSO.
O contrato de João Soeiro esteve longe de gerar o pleno apoio da população de Cabo Verde. Aliás, em 1610, surgiu uma controvérsia entre este e os moradores do arquipélago, fruto do processo de importação de alimentos da Guiné, o qual havia gerado uma anotação fraudulenta dos montantes de víveres que entravam em Santiago.
Os moradores, encabeçados nos seus protestos pelo governador de Cabo Verde, NICOLAU CASTILHO, acusavam Soeiro de furtar muitos direitos à fazenda real, de canalizar os carregamentos para os seus contratadores, feitores e parentes e de desviar da feitoria de Santiago todo o rendimento, de forma a poder provar o alegado prejuízo no contrato.
Segundo o capitão da infantaria da ilha de Santiago, JOÃO MENDES, esse prejuízo nunca chegou a existir. Este alegou que, desde o contrato de João Soeiro, nunca haviam faltado navios a circular pelo arquipélago, contando um total de mais de trinta, uns que seguiam de Lisboa às Canárias e dali até aos Rios da Guiné, outros que faziam o percurso directo a partir de Sevilha e ainda outros que iam directamente de Lisboa até à Ilha de Santiago. Ora, segundo o mesmo testemunho, cada navio carregava, em média, entre 300 e 400 escravos por ano e, desta forma, nunca até então existira um contratador que tanto tivesse ganho quanto SOEIRO. JOÃO MENDES provou igualmente como os negócios do contratador se estendiam até à Flandres. Um irmão de Soeiro que lá residia mandara para a Guiné uma nau que foi carregada de vinhos na ilha da Palma e dali seguiu para a costa, onde se abasteceu de couros, marfim e cera, acabando por rumar até ao Norte Europeu. Toda esta acção havia contado com o favor de João Soeiro.
As contendas com os moradores eram a prova de que o prejuízo alegado era fraudulento e conduziram ao termo do seu contrato em Agosto de 1614. Filipe li ordenou a apreensão da fazenda de Soeiro em Cabo Verde e mandou o governador Nicolau de Castilho proceder à apreensão dos seus feitores. Mas este revelou-se um processo moroso e, em 1625, João Soeiro ainda não havia apresentado os papéis das despesas relativas ao arrendamento, nem pagara as suas dívidas, apontando, por outro lado, queixas sobre a forma como o litígio se desenrolara. Aliás, sempre defendeu a sua inocência ao justificar que as quebras no cumprimento das suas obrigações se deviam à alteração das condições, causada pela provisão de 10 de Junho de 1611. Esta provisão decretava que os carregamentos de escravos não podiam seguir directos de África até ás Índias, tendo que passar antes por Sevilha. Contudo, esta defesa não convenceu o rei.
João Soeiro não ficou imune à acção do Santo Oficio. O mesmo João Mendes alegou que, desde que ele obteve o contrato de Cabo Verde, houve um aumento dos cristãos-novos judaizantes na Costa da Guiné. António de Proença, nobre morador em S. João da Praça, acrescentou que Soeiro se judaizou publicamente depois de ter obtido o contrato. Estes testemunhos repetem-se na voz de outros denunciantes, nomeadamente o mercador veneziano JOÃO ANDRÉ POYOLO, ANTÓNIO NUNES DE ANDRADE e ÁLVARO COELHO, mestre na carreira da Guiné. São poucas as informações sobre a sua vida antes do contrato de 1609-1614. Um alvará da Chancelaria de D. Filipe l, datado de 2 de Junho de 1593, atribuía a um João Soeiro o estatuto de morador da cidade de S. Jorge da Mina. A questão levanta-se este João Soeiro e o biografado seriam o mesmo indivíduo ou apenas homónimos.
Estudos José Gonçalves Salvador, 0.1 Cristãos-Novos e o Comércio 110 Atlântico Meridional (Com enfoque nas Capitanias do Sul 1530-1680), São Paulo, Pioneira Ed itom/MFC, 1978, pp. 259--260 e 318.
Maria Emília Madeira Santos (coord.), História Geral de Cabo Verde, vol. li, Lisboa/Praia,llCT/lnstituto Nacional da Cultura de Cabo Verde, 1995, pp. 29, 36, 40-45 e pauim.
Outras vozes incomodadas com a escravatura surgem noutros pontos do império. Cerca de 1600, o padre carmelita e bispo de Cabo Verde, D. frei PEDRO BRANDÃO, escrevia ao rei D. Filipe II, defendendo que fosse concedida liberdade imediata a todos os escravos que se convertessem à fé cristã. Baseava-se, para isso, entre outros argumentos, na ilicitude dos cativeiros:
«Porque humanamente se não pode atalhar aos muitos modos com que injustamente os cativam. Porque uns são furtados por força ou engano, outros condenados sem culpa a cativeiro( ... ), outros tomados em guerras injustas( ... ), outros vendidos por seus pais, sem necessidade bastante;( ... ), e outros por outros modos injustos. De sorte que, dizem os práticos, que de mil escravos que vêm ao Reino, novecentos são mal cativos.»
No início do século xvn, a Mesa da Consciência e Ordens, o conselho régio criado em 1532 por D. João III para a resolução das matérias que tocassem a «obrigação de sua consciência», debruçou-se por várias vezes não apenas sobre o problema do baptismo dos negros adultos que da África eram levados às Américas, mas também sobre a necessidade de esses baptismos «serem verdadeiros e com notícia e conhecimento dos que os recebem».
1602
 «E o alemão JÁCOME FICHER está com CUSTÓDIO VIDAL no contrato de Cabo Verde (160l-1606), embora logo em 1605 o tenham de abandonar por dívidas.»
ESCRAVOS E TRAFICANTES NO IMPÉRIO PORTUGUÊS, O comércio negreiro português no Atlântico durante os séculos xXV a XIX, Arlindo Manuel Caldeira, A Esfera do Livro, Lisboa, 2013, pg.169bo Verde]
1603/01/11
 ORDENAÇÕES FILIPINAS
Livro Quinto das Ordenações
TÍTULO XLI
Do scravo, ou filho, que arrancar arma contra seu senhor, ou pai
O scravo, ora seja Christão, ou o não seja, que matar seu senhor, ou filho de seu senhor, seja atenazado, e lhe sejão decepadas as mãos, e morra morte natural a forca para sempre; e se ferir seu senhor sem o matar, morra morte natural. E se arrancar alguma rama contra seu senhor, posto que o não fira, seja açoutado publicamente com baraço e pregão pela Villa, e seja-lhe decepada huma mão.
1.E o filho, ou filha que ferir seu pai, ou mãe com tenção de os matar, posto que não morrão de taes feridas., morra morte natural.
TÚITULO LXII
Da pena que haverão os que achão scravos, aves, ou outras cousas, e as não entregão a seus donos, nem as apregoão
Se algum scravo, que andar fugido, for achado, o achador o fará saber a seu senhor, ou ao Juiz da cabeça do Almoxarifado da Comarca, em que forachado, do dia, em que o achar, a quinze dias. E não o fazendo, haverá pena de furto. E o Juiz desse Lugar, notifique per sua carta ao Lugar, onde morar o senhor do scravo, ou ao mesmo senhor, e à sua conta se leve o recado. E à pessoa, que tiver tal scravo per auctoridade de Justiça, se dará para seu mantimento vinte réis cada dia, e os dias, que se servir dele, não haverá cousa alguma pelo mantimento; e mais haverá o achador de seu achadego por scravo negro trezentos réis, e por scravo branco, ou da Índia, mil réis.
1.E porque muitas vezes os scravos fugidos não querem dizer cujos são, ou dizem que são de huns senhores, sendo de outros, do que se segue fazerem-se grandes despezas com eles, mandamos que o Juiz do lugar, onde for trazido scravo fugido, lhe faça dizer cujo he, e donde he, per tormentos de açoutes, que lhe serão dados sem mais figura de Juízo, e sem apellação, nem aggravo, com tanto que os açoutes não passem de quarenta. E depois que no tormento affirmar cujo he, então faça as diligencias sobreditas.
2. E tanto que algum scravo for preso na cidade de Lisboa, antes que o mettão na Cadea, ou em outra parte, o levem a um Julgador, e lhe digão como o levão preso por andar fugido; o qual Julgador lhe fará as perguntas necessárias, para saber se anda fugido, e disso se fará assento. E se lhe parecer, que anda fugido, o mandará ao Tronco, ou à Cadêa, ou a seu dono, se for morador na Cidade. E achando-se, que passa de oito dias, que anda fugido, mandará pagar de achadego ao que o achou, cem réis somente, se o dono for morador na Cidade. E se se provar, que anda fugido, sendo seu dono morador fora da Cidade, ou sendo scravo achado fora dos muros dela, e de seus arrabaldes, posto que seu dono seja morador na Cidade, e posto que não sejão passados os oito dias, pagar-lhe-hão trezentos réis por scravo negro e mil réis por scravo branco ou da índia. Defendemos, que nenhumas pessoas levem fora dos nossos Reinos scravos, para os porem a salvo, e saírem de nossos Reinos, nem lhes mostrem os caminhos, per onde se vão, e se possão ir, nem outrosi dêem azo, nem consentimento aos ditos scravos fugirem, nem os encubrão.
TÍTULO LXIII
Dos que dão ajuda aos scravos captivos para fugirem, ou os encobrem
E qualquer pessoa, que o contrario fizer, mandamos que sendo achado levando algum captivo para o pôr em salvo, aquelle, que assim o levar, sendo Christão, será degredado para o Brazil para sempre. E sendo Judeu, ou Mouro forro, será captivo do senhor do scravo, que assi levava. E sendo Judeu, ou Mouro captivo, será açoutado. E, sendo-lhe provado que o levava, postoque com elle não seja achado, haverá as mesmas penas, e mais pagará a valia do scravo a seu dono. E quanto aos que derem azo, ou encobrirem, ou ajudarem aos captivos fugirem,incorrerão nas penas sobreditas.
TÍTULO LXX
Que os scravos não vivam por si, e os Negros não façam bailos em Lisboa
Nenhum scravo, ou scrava captivo, quer seja branco, quer preto, viva em caza per si; e se seu senhor lho consentir, pague de cada vez dez cruzados, ametade para quem o accusar, e a outra para as obras da Cidade, e o scravo, ou scrava seja preso, e lhe dem vinte açoutes ao pé do Pelourinho. E nenhum Mourisco, nem negro, que fosse captivo, assi homem como mulher, agasalhe, nem recolha na caza, onde viver, algum scravo, ou scrava captivo, nem dinheiro, nem fato, nem outra cousaque lhe os captivos derem, ou truxerem a caza; nem lhe compre cousa alguma, nem a haja delle per outro algum título, sob pena de pagar de cada vez dez cruzados, ametade para as obras da Cidade, ou Villa, e a outra para quem o accusar, além das mais penas, em que per nossas Ordenações e per Direito incorrer. E bem assi na cidade de Lisboa, e huma legoa ao redor, se não faça ajuntamento de scravos, nem bailos, nem tangeres seus, de dia, nem de noite, em dias de Festas, nem pelas semanas, sob pena de serem presos, e de os que tangerem, ou bailarem pagarem cada hum mil réis para quem os prender, e a mesma defesa se estenda aos pretos forros
Baptismo de escravos
Ordenações Filipinas, Livro V, capítulo 99
«Mandamos que qualquer pessoa, de qualquer estado e condição que seja que escravos de Guiné tiver, os faça baptizar e fazer cristãos, do dia que a seu poder vierem até seis meses, sob pena de os perder para quem os demandar.
E se algum dos ditos escravos que passe de idade de dez anos(*) se não quiser tornar cristão, sendo por seu senhor querido, faça-o seu senhor saber ao prior ou cura da igreja em cuja freguesia viver, perante o qual fará ir o dito escravo; e se ele, sendo pelo dito prior e cura admoestado e requerido por seu senhor, perante testemunhas, não quiser ser baptizado, não incorrerá o senhor em dita pena.
1. E sendo os escravos em idade de dez anos ou de menos, em toda a maneira os façam baptizar até um mês do dia que estiverem em posse deles; porque nestes não é necessário esperar seu consentimento.
2. E as crianças que em nossos reinos e senhorios nascerem das escravas que das partes de Guiné vierem, seus senhores as farão baptizar aos tempos que os filhos das cristãs naturais do Reino se devem e costumam baptizar, sob as ditas penas
(*) nota 242 onde consta que segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia a idade mínima para poder escolher a religião era de sete anos.
FONTE: Silvia Hunold Lara (organização), Ordenações Filipinas, Livro V. São Paulo:Companhia das Letras. 1999. p. 308. Colecção Retratos do Brasil, 16.
1605
 Com vista, a por termo à concorrência estrangeira nos seus domínios, Filipe II, de Espanha, determinou através de uma lei de Março de 1605 a saída de todos os estrangeiros da Índia, do Brasil, da Guiné e dos arquipélagos de São Tomé, Cabo Verde, Açores e Madeira
Em 1605, o padre da Companhia de Jesus MANUEL DE BARROS falava dos tangomaus assim:
«Homens portugueses há que andam metidos dentro da Guiné tiguilando (?) e comprando negros, passando vinte e trinta anos, mais e menos, sem se confessarem; e além de ser gente estragada, não têm confessor por aquelas partes. Estes se chamam tangos maus, gente bem nomeada pela vida que fazem, tão esquecida de sua salvação que muitos deles andam nus, riscando e lavrando a pele com um ferro, tirando sangue e depois, com o sumo de certa erva, deixando a pintura do lagarto ou serpente (que é o comum) ou outras que eles mais querem, e isto por mais se naturalizarem com o gentio da terra em que tratam
Mais ou menos pela mesma data, um outro jesuíta, o padre Manuel Álvares, poupava ainda menos nas palavras:
«São todo o mal, idólatras, perjuros, desobedientes do céu, homicidas sensuais, ladrões da fama, do crédito, do nome do inocentes, da fazenda. Traidores que, nos apertos, se lançam com os piratas, levando as sua naus aonde costumam surgir e regatar as nossas embarcações, gente sem direito nem avesso, sem respeito mais que o próprio apetite, semente do inferno”.
1608
«ANTÓNIO FERNANDES LANDIM, natural de Famalicão, residia desde novo em Lisboa, junto aos Remolares, freguesia da igreja de São Paulo. Filho de Gonçalo Eanes e de Maria Pires, nunca casou nem teve filhos legítimos nem naturais. Aparentemente também não tinha irmãos nem parentes próximos com quem privasse dado que nomeia como seus testamenteiros dois amigos, João Lopes, morador em Lisboa junto à Sé, e Cosmo Vieira, solicitador do Físico Real, morador nos arrabaldes da mesma cidade, deixando bem claro no seu testamento que "dezerdo todos( ... ) quaysquer meus paremtes e quero que nhenu suseda nem erde couza alguma mynha".
Mercador de recursos medianos, dispunha na altura em que mandou lavrar o seu testamento dos seguintes bens: um navio pequeno o Santo António, dois contos de réis empregues em fazendas que pretendia levar para os resgates na Guiné, 200.000 réis em dinheiro, uma escrava doméstica de nome Graça, 45 peças de escravos em Cacheu em poder do escrivão da capitania, FERNÃO LOPES DE MESQUITA, e mais 5 ou 6 negros procedentes de dívidas também naquele porto da Guiné• Tais bens deveriam provir dos negócios do trato de escravos de que Antônio Fernandes Landim era um activo participante. Efectuava ligações regulares entre Lisboa- Rios da GuinéCartagena-Sevilha- Lisboa. Para além da viagem comercial que pretendemos analisar, e que decorreu aproximadamente entre 1628 e 1630, Landim já havia realizado outras deslocações - uma certamente pelos anos de 1623/4 -, preparando-se, em 1632, para iniciar uma nova aventura em terras afro-americanas. De facto, quando em 21 de Novembro de 1632, Landim mandou lavrar o seu testamento afirma o seguinte: "[ ... ] estamdo eu ao prezemte san e em todo o meu prefeytto yuizo emtemdimemento que Deos me deu e prestes pera me embarquar pera os Reinos de Gyne pera dahy segyr mynha vyagem a Y mdias de Castela". Embora com tudo preparado para partir navio armado, 4 000 cruzados (ou seja, c. de 1 conto e 600 mil réis) em fazendas compradas para resgatar na Guiné, mais 1 000 cruzados (ou seja, c. de 400 mil réis) procurações para receber em Cacheu fazendas de terceiros (ANTÓNIO FERNANDES LANDIM tinha urna procuração de um mercador lisboeta, ANTÓNIO LOPES SOARES, para receber de FERNÃO LOPES DE MESQUITA, escrivão da capitania em Cacheu, os bens de FRANCISCO DIAS MENDES BRITO que estavam em poder daquele. ANTT, Convento de São Bento da Saúde, Livro 18, fls. 513-517, de 22 de Setembro de 1632)  - não sabemos se esta viagem se chegou a concretizar.
Activo mercador, António Fernandes Landim era todavia iletrado, não sabendo ler nem escrever. Disso suspeitámos desde logo, quando em todas as de tripulação e escrituras de dívidas se repetia no final a seguinte frase: "Roguei a Gaspar Rodrigues que este fizeçe e asinaçe", surgindo no final dos documentos o seguinte sinal Antonio Lamdim.
Esta suspeita foi posteriormente confirmada quando num documento semelhante encontrámos esta menção: "Roguei a Pero de Carvalho que este fizese por mi por no saber escrever"; a mesma informação é reafirmada no seu testamento, "roguei a Gaspar Pereira tabelyão das notas nesta sydade que por my o escrevesse por eeu não saber eescrever"• Situação curiosa mas não de forma alguma invulgar, visto que a documentação da época está pejada de exemplos de mercadores de pequenas e médias fortunas e de armadores que não sabiam escrever, mas que nem por isso descuravam os seus negócios, e até de mestres de navios que não sabendo escrever recebiam a incumbência de anotar no livro da razão dos navios "as cousas tocantes a esta armação e de tudo o que nele escrever como por suas cartas e lembranças será crido ( ... ) e a todos os seus papéis se dará inteiramente fé e crédito como escrituras públicas". » - DE SANTIAGO PARA A COSTA DA GUINÉ: A TRANSFERÊNCIA DO CENTRO GEOGRÁFICO DOS NEGÓCIOS E A MANUTENÇÃO DA ELITE COMERCIANTE as transacções da companhia de António Fernandes Landim e de Francisco Dias Mendes de Brito ( 1629-1630)* por Maria Manuel Ferraz Torrão** pg. 91-93
Um dos investidores nestes empreendimentos comerciais de Amesterdão para a África Ocidental era um certo DIOGO DIAS QUERIDO . Dias Querido é uma figura interessante do período que tem sido discutido por vários historiadores no campo ( Wiznitzer 1960 : 47; Schorsch 2004: 178 ) . Ele parece ter desenvolvido a sua experiência do mundo atlântico através da gestão de uma refinaria de açúcar na Bahia, nordeste do Brasil , na década de 1580 ( Wiznitzer 1960 : 47) . Aqui, ele desenvolveu uma reputação como um cripto -judeu , e pode ter sido julgado pela Inquisição Português durante a visita inquisitorial ao nordeste Brasil de 1591-1.595,4 Ele chegou em Amsterdam , no final do século 16 e foi um dos membros fundadores da Beth Yahacob , a primeira sinagoga na cidade.
Há alguma evidência circunstancial sugere que a obra de Dias Querido em Bahía pode tê-lo posto em contato pessoal com os povos do Costa Senegambian no 1580. Isto talvez possa explicar a sua vontade de investir pesadamente em negociação viagens para a região , uma vez estabelecido em Amsterdã, e também talvez um dos elementos mais controversos da sua prática judaica no Holandês Províncias Unidas : para Dias Querido foi um dos que buscaram ativamente converter seus escravos africanos para o judaísmo ( Schorsch 2004: 178 , ver também ANTT , Inquisição de Lisboa , Livro 59, folio 130v ) 

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