segunda-feira, 7 de março de 2016

DESCOBRIMENTO DA GUINÉ 1448-1455 - MORTE DE NUNO TRISTÃO - ESTUDO DE AVELINO TEIXEIRA DA MOTA


1448
O cronista Gomes Eanes de Azurara relata cenas da chegada dos escravos a Lagos, tendo chegado 927, vindos da Guiné, até ao ano de 1448. Ou seja, cerca de quatro anos após a data tida como sendo a da chegada dos navegadores àquela terra “descoberta”.
«Neste anno foi mandado Fernando Affonso como embaixador a hum Rei chamado Farim, na costa, ao sul de Cabo-verde, convidando-o a abraçar a religião christãa, e assentar commercio com os Portuguezes.
Notão os antigos escriptores, que d'aqui vierão a Portugal os primeiros dentes d'elefante, trazidos daquellas regiões.
Notão também, que Diogo Gil Homem, encarregado de estabelecer commercio com os Mouros, passando além do Cabo de Gué trouxera a Lisboa o primeiro leão, que veio d'Africa.»
Índice chronologigo das navegações, viagens, descobrimentos e conquistas dos portuguezes nos paizes ultramarinos desde o principio do século xv. Francisco de S. Luiz, Lisboa, na Imprensa Nacional, 1841, pg.39
1449
«Soeiro Mendes foi neste anno de 1449 lançar os fundamentos ao castello de Arguim, de que ficou sendo capitão, ou governador. Foi o primeiro castello, que levantamos naquelas conquistas, para segurança do commercio e da navegação.»
Índice chronologigo das navegações, viagens, descobrimentos e conquistas dos portuguezes nos paizes ultramarinos desde o principio do século xv. Francisco de S. Luiz, Lisboa, na Imprensa Nacional, 1841, pg.39
1449/02/25
O Infante de Sagres, logo após a conquista de Ceuta, passou a gerir os novos territórios conquistados e, mais tarde, todas as terras então conhecidas lhe foram doadas para as povoar e estabelecer nelas o resgate. Ao lado do homem de ciência e investigador aparece o homem de negócios e o colonizador, tendo dado provas concludentes neste novo campo da sua actividade. E apesar de tudo não foi um homem rico porque todas as suas rendas e as rendas próprias da Ordem de Cristo reverteram a favor da empresa marítima.
Por carta de doação de 25 de Fevereiro de 1449, D. Afonso V conferia-lhe os direitos das mercadorias importadas e oriundas das terras situadas entre o Cabo Cantim e o Cabo Bojador, reservando-se para a coroa o quinto.
«1449 - 25 de Fevereiro, concessão, feita por D. Afonso V ao infante D. Henrique, dos impostos, excepto da sisa, lançados sobre as mercadorias que chegassem aos portos de Portugal vindas da região entre os cabos de Cantim e Bojador - zona a Norte da Guiné (12).
(12) - Doc. em Chancelaria de D. Afonso V, 1.º 35, fl. 60, 2.º dipl., Arq. Nac. da Torre do Tombo; publ. idem - ibidem, vl. I, doc. n.º 363, p. 461-462.»
Jorge Faro, Duas expedições enviadas à Guiné anteriormente a 1474 e custeadas pela fazenda de D. Afonso V, pp. 76-77, Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Vol- XII, N.º 45, Janeiro 1957
1450
Senegal – capitães desconhecidos em três caravelas.
Refere CADAMOSTO (Iª, XV) uma expedição de 3 caravelas que em 1450 entrou no Rio Senegal. Nada mais diz porém, pelo que ignoramos se avançou mais para sul.
ABRAÃO PAREDES (segunda metade do século XV)
Mercador com negócios na costa africana, Abraão seria, possivelmente, parente de José Paredes, mercador acusado, em conjunto com Isaac de Ocanha, de tentar carregar para fora do reino mercadorias defesas no valor de 841.404 reais. Em 1451, Abraão recebia de D. Afonso V uma carta de seguro para ir e regressar com as caravelas enviadas pelo Infante D. Henrique à Costa da Guiné e ali comerciar livremente, sem sofrer nenhuma represãha. Estas, eram viagens que estavam constantemente sujeitas a actos de piratana e à concorrência castelhana.
JOSÉ NEGRO (2.ª metade do século XV)
Importante membro da comunidade judaica de Lisboa, José Negro era senhor de uma avultada fortuna, traduzida em várias propriedades naquela cidade. Foi um dos poucos membros da corte de D. João II a dedicar-se ao tráfego comercial, nomeadamente na costa a Gumé.
O monarca acaba por acusa-lo, tal como a Eleázer Navarro, de tais acções, por si proibidas, confiscando os 153 marcos de prata que tinha enviado para o comércio de Safim. Porém, mediante o pagamento de mil dobras de ouro, o monarca acaba por perdoá-los dessa transgressão. O rei ter-lhe-á também confiado uma carta de vizinhança.
Estudos Maria José Ferro Tavares, Os Judeus em Portugal no século XV. 1.0 edição, vol. 1, Lisboa, Universidade Nova de Li sboa/Faculdade de iências ociais e l lumanas, 1982.
Idem, Os Judeus na Época dos Descobrimemos, Lisboa, Edições Elo, [s.d.].
Fontes ANTI, Chancelaria de D. João li, liv. 9, íl. 12.
BENJAMIM NAJARIM (2.ª metade do século XV)
Parente de José Alfaquim, Benjamim morava nas proximidades de Lisboa. Os Najarim, ligados aos Alhaquim, algarvios, eram uma família profundamente ligada aos negócios com o Norte de África, onde mantiveram uma rede de comercial com as praças portuguesas até à expulsão. Tal como José Alfaquim, Benjamim dedicava-se ao tráfico de mercadorias nacionais ou importadas para a Guiné e Mina, tendo obtido de D. João II uma permissão para comerciar nestas possessões, exceptuando nos lugares onde se encontrasse o trauto régio.
Estudos Anselmo Braamcamp Freire, "Cartas de Quitação dei Rei O. Manuel", Archivo Histórico Portugue=. 2.ª ed., vol. 1, Lisboa, Libanio da ilva, 1920, p. 94.
Maria José Ferro Tavares, Os Judeus em Portugal no Século XV, I .ª ed, vol. 1, Lisboa,FCSll-UNL, 1982, p. 287.
☻ Por volta de 1450, dois séculos após a expedição de Tiramaghan, as províncias ocidentais tinham um claro domínio mandinga. O povoamento malinké era denso ao longo dos rios Gâmbia e Casamansa, até aos confins do Fouta Djalon. Assim, a maior parte dos povos da Alta e Média Casamansa – baïnouks, balantas, badiarankés, etc – poderia considerar-se mandinga. De resto, os navegadores portugueses incluíam todos os povos da Casamansa, incluindo os diolas, na categoria dos mandingas. Contudo, os mandingas não impuseram a sua língua, embora os chefes diolas a utilizassem para fins comerciais.
A chegada dos portugueses foi um acontecimento maior na História da região; num primeiro momento atribulada, com notórias dificuldades de comunicação, desconfiança e violência, rapidamente a relação com os autóctones melhorou, quando estes perceberam que os portugueses procuravam, sobretudo, comerciar. Um conjunto de circunstâncias auxiliou o rápido estabelecimento de relações comerciais profícuas: em 1433 os tuaregs conquistaram Tombuctou e expulsaram a guarnição malinké; de 1462 a 1492 os songais revoltaram-se, conquistaram a área meridional do Níger, até ao delta interior e conquistaram Djenné; os malinkés viram, assim, cortado o acesso às pistas sarianas mas tinham ainda o controlo das regiões auríferas de Bouré e Bambouk; ainda tentaram reanimar a pista ocidental com destino a Sidjilmassa, em Marrocos (passando pela feitoria portuguesa de Ouadane20), mas esta cidade estava em declínio após a deslocação para o Cairo do eixo comercial do mundo muçulmano. É neste contexto que se ouve falar, por volta de 1445, da chegada de uns brancos em navios gigantes; e quando, em 1456, Diogo Gomes subiu o rio Gâmbia21, tendo já estabelecido boas relações com os autóctones, foi recebido pelo rei do Bintang e fez a paz com o “mansa” do Niomi, o Manding-Mansa (rei dos mandingas) deu ordem aos mercadores das margens do Níger para dirigirem as suas caravanas para Oeste. Os portugueses tornaram-se rapidamente familiares de todo o universo mandinga, com uma predilecção pelas regiões da Casamansa, Cacheu e Rio Grande. Grandes caravanas partiam do Manding, para viagens que podiam durar quatro a seis meses, atravessavam o Diarra, o Bambouk e  encontravam os portugueses no Cantor ou no Woulli. Este comércio permitia ao Manding-Mansa e à sua corte receberem directamente produtos manufacturados europeus, a um preço dez vezes inferior ao praticado pelos intermediários árabes. Do seu lado, os portugueses recebiam o ouro maliano praticamente na fonte, dispensando a mediação onerosa dos árabes. No início, o ouro seria o bem mais procurado pelos portugueses, seguindo-se-lhe as especiarias e, apenas em terceiro lugar, os escravos.22 Os “mansa” e os “farins” – chefes locais - da Gâmbia e da Casamansa foram, na verdade, os grandes beneficiários do comércio com os portugueses, cabendo apenas ao Manding-Mansa o rendimento dos direitos sobre o comércio do ouro.
Ao contrário dos flups e dos balantas que se mostraram muito reticentes ao contacto com os portugueses, os vizinhos kassangas entregaram-se ao comércio e mesmo a uma certa ocidentalização, patente no fausto da corte do rei Massa Tamba23, conquistador do reino dos bainouks, que trocava um bom cavalo por dez a quinze negros.24 Ora, segundo o mesmo autor, Massa Tamba disporia de uma cavalaria de cinco mil cavalos…
Os portugueses fixaram-se em número significativo na Casamansa, no Cacheu e no Rio Grande, sendo a sua principal base Toubaboudaga, próxima de Brikama (na actual Gâmbia), a capital de Massa Tamba. Contudo, no Século XVI, a base principal dos portugueses era o arquipélago de Cabo Verde.
20 Ouadane integra um triângulo de três cidades históricas do Leste da Mauritânia, com Atar e Chinguetti. Era a feitoria portuguesa mais afastada da costa Atlântica e a localidade, inscrita como Património Mundial da UNESCO, foi restaurada entre 2004 e 2006 com apoio financeiro do Estado português.
21 D. T. NIANE, Op. Cit., cita Diogo Gomes de Sintra, neste contexto
22 D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 31
23 Massa Tamba chegou mesmo a criar uma aldeia para brancos, junto à capital Brikama, em 1580, vide D. T. NIANE, Op. Cit., pp. 32
24 A. DONELHA (1625); vide DONELHA, André, Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné e do Cabo Verde, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, Lisboa, 1977, pp. 166 e nota 286, pp. 311
☻Segundo as Ordenações Filipinas, VIZINHO é uma pessoa natural de determinado lugar, vila ou cidade; o que tiver alguma dignidade ou ofício do rei, rainha, ou de algum senhor da terra, ou ainda do concelho; alguém que for feito livre de servidão nesse lugar; ou quem for perfilhado por algum morador nesse lugar.
Ordenações Filipinas, Livro II, tít. LV, Lisboa, 1985, pp. 490-491.
Desde cedo, em Portugal, designavam-se por «homens bons» ou «vizinhos» as pessoas que possuissem no concelho bens de raíz e que aí habitassem. Nos séculos XVI, XVII e XVIII, a expressão mantém o mesmo sentido (‘os mais ricos, os mais poderosos’ ) mas ganha o sentido suplementar de ‘os que andam na governança’ (i.,é, os membros das famílias que costumam ocupar os cargos municipais). Hespanha, História das Instituições, p. 244, nota 460.
1452
Diogo de Teive descobriu as ilhas Flores e Corvo nos Açores
1452/06/18
Três bulas papais tiveram grande importância para o futuro das relações entre a Europa e a África. A primeira, Dum Diversas, foi promulgada em 18 de Junho de 1452, onze anos depois da expedição esclavagista de Antão Gonçalves e Nuno Tristão. A bula papal Dum Diversas, autorizava o rei de Portugal a ”atacar, conquistar e submeter Sarracenos, pagãos e outros descrentes inimigos de Cristo; a capturar os seus bens e territórios; a reduzi-los à escravatura perpétua e transferir as suas terras e territórios para o Rei de Portugal e para os seus sucessores”.
Mais claro do que isto não é possível dizer-se. A bula papal é bem concreta. Uma pergunta fica pendente. Qual foi o interesse do Vaticano e dos altos dignitários da Igreja Cristã de dar tanto poder a um país como Portugal, na altura uma nação culturalmente e economicamente atrasada? A explicação só pode ser uma – o ouro. A proveitosa expedição de grande dimensão de que o Papa tinha a intenção de aproveitar pode ser deduzida do texto que dá ênfase a ”bens e territórios e escravatura perpétua”.
1453
CID DE SOUSA e NUNO ANTÓNIO DE GOES (1453} - Uma carta régia de 27 de Fevereiro de 1453 refere urna expedição, de carácter comercial, capitaneada por Cid de Sousa e em que ia um Nuno António de Goes, encarregado do resgate para além do Rio de S. João (na Mauritânia). Número desconhecido de navios. É impossível saber até onde chegou.
«Dom Afomso etc.
A vos Cide de Soussa, fidalgo de nossa cassa e capitam dos navios que ora mandamos a Guineea, e a outras quaaesquer pessoas a que esto pertençer e esta nossa carta for mostrada, saude.
Sabede que nos confiando da bondade e descripçom de Nuno Antonez de Gooes, escudeiro fidalgo da cassa do iffante Dom Anrrique, meu rnuyto prezado e amado tyo, que he tall que o fara bem e como conpre a nosso serviço; teemos por bem e queremos e mandamos que elle seja mercador e traute e recade e despenda e reguate todallas mercadorias que mandamos nos dictos navios e em elles forem pera se fazer o resguate dos mouros, segundo o Regimento que lhe per vos Cide de Soussa for dado por nosso serviço; e mandamos que elle o faça e outro nem húu nom.
E per esta carta mandamos aos reçebedores e escprivãães que nos dictos navios mandamos que a ell dern e emtreguem quaaes quer mercadorias que e lle requerer pera as repartir e dar pressente elles no dicto resguate, segundo em o Regimento que ouver e o sentir por nosso serviço e ysso meesmo.
Mandamos que as duas cara\·ellas que vos mandardes a fazer o resguate aalem do ryo de Sam Joham que elle vaa em ellas por capitam e faça o resgate.
E porem vos mandamos que o compraaes e façades conprir, asy como per nos he mandado, sem outro algúu embargo.
Unde al nom façades, dante em a çidade d'Evora XXVII dias de Fevereiro.
Gonçalo Cardosso a fez, anno do naçimento de Nosso Senhor Jeshú Christo de mil IIII centos LIII.»
Apud Jorge Faro, Duas expedições enviadas à Guiné anteriormente a 1474 e custeadas pela fazenda de D. Afonso V, pp. 76-77, Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Vol- XII, N.º 45, Janeiro 1957
- Crónica dos Feitos da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara (1453-1460?);
“E porque o dicto Senhor [Infante] quis disto saber a verdade, parecendo-lhe que se ele ou algum outro senhor se não trabalhasse de o saber... e vendo outrossim como nenhum outro príncipe se trabalhava disto, mandou ele contra aquelas partes seus navios, por haver de tudo manifesta certidão, movendo-se a isso por serviço de Deus e d’el- Rei D. Eduarte seu senhor e irmão que aquele tempo reinava. E esta até que foi a primeira razão de seu movimento.”40
40 G. E. ZURARA (1453); Op. Cit., Cap. VII, “ no qual se mostram cinquo razoões porque o senhor iffante foe movido de mandar buscar as terras de Guynea”, pp. 44-49.
1454
CABO VERDE – ignoram-se os nomes dos capitães e o número de navios
Expedição ao Cabo Verde
Refere CADAMOSTO (Iª, XXXIV) uma expedição de 1444, que teria descoberto o Cabo Verde. Não sabemos se trata da expedição de 1444, ou de outra diferente, a que CADAMOSTO - talvez por fatuidade – atribuiria tal descoberta.
Viagem ao Cabo Verde (1454) - Refere CADAMOSTO que o Cabo Verde «chamava-se assim, porque os primeiros que o descobrirão que forão Porluguezes, hum anno antes que eu fosse a estas partes, o acharão todo verde...» (Iª, XXXIV).
Já no número 1 se falou da possível explicação da «descoberta» em 1454. A ser verdade o que o veneziano diz - e pode tratar-se deu ma fantasia, para se enaltecer - temos portanto mais uma expedição, que no ano de 1454 eslabeleceu possívelmente as pazes com algum chefeda região do Cabo Verde. Ignoramos, porém, até onde chegou para sul.
☻ CAIOR - ignoram-se os nomes dos capitães e o número de navios. Tomou parte na expedição um genovês. Pode coincidir com a anterior.
Expedição ao Caior
Fala também CADAMOSTO (I.ª, XXXIV) de um genovês que em 1454 andou no Caior. Ignoramos se será a mesma viagem da alínea anterior, ou outra diferente, bem como o ponto mais a sul atingido.
Viagem em que foi um Genovês, que andou no Caior (1454)Refere CADAMOSTO informações sobre o Caior colhidas de um «genovês,homem digno de crédito, que tendo-se achado hum anno antes de mim, na terra de Budomel» (Iª, XXVII). Como a viagem daquele se realisou em 1455, conclui-se que houve cm 1454 uma expedição cujos membros traficaram com o Bor-Damel. Poderá ser a mesma que a do número anterior.
Ignoramos, porém, qual o ponto mais a meio-dia que tal expedição atingiu.
☻ Em 1454, por BULA DO PAPA NICOLAU V, foram ratificadas as conquistas africanas do cabo Não até às costas da Guiné, inclusive, em favor de D. Afonso V, infante D. Henrique e seus sucessores; D. Afonso V entregou à Ordem de Cristo a administração espiritual e jurisdição de todas as terras conquistadas e por conquistar da Guiné, Núbia, Etiópia
Nova Enciclopédia Larousse, 1994, vol 7: Ordem de Cristo “Ordem que herdou em Portugal, os bens e muitos dos membros da Ordem dos Templários, extinta pelo Papa Clemente V a instâncias de Filipe, o Belo, que cobiçava as suas riquezas. Fundada por D. Dinis, foi aprovada (1319) por João XXII, que lhe atribuiu a regra de S. Bento. A sua sede transferiu-se (1357) de Castro Marim para Tomar. Teve um papel notável no empreendimento dos Descobrimentos (descoberta, conquista e evangelização de novas terras), sendo seu administrador o infante D. Henrique. Com D. Manuel (que a chefiou desde 1484), a ordem ficou dependente da Coroa. A Ordem de Cristo foi secularizada em 1789, extinta em 1910 e restabelecida em 1918 para premiar altos serviços militares ou civis.”


1454/01/08
«1454 - 8 de Janeiro, Bula Romanus Pontifex de Nicolau V concedendo a D. Afonso V, e aos Reis seus sucessores, e ao infante D. Henrique, a conquista e ocupação de todas as terras, ilhas e mares da África, conquistadas ou por conquistar, descobertas ou a descobrir, desde os cabos de Bojador e Não até à Guiné, inclusivamente, e toda a costa meridional até ao seu extremo; para as quais poderão fazer leis e impor tributos, aplicar penas e defesas, edificar mosteiros, casas religiosas e igrejas, cujos padroados lhes pertencerão; reduzir à escravidão os infiéis, invadir, conquistar e ocupar quaisquer terras de sarracenos e pagãos; o Pontífice proíbe a todos os cristãos navegarem e efectuarem pescas nesses mares, e comerciarem nessas terras e com os seus naturais, sem licença do Rei de Portugal e do infante D. Henrique, pagando-lhes tributos; no caso contrário, incorreriam na pena de excomunhão de que poderiam ser absolvidos depois de repararem os danos ou estabelecerem relações amigáveis com o Rei e seus sucessores (13).
(13) - Doc. orig. em Bulas, m.º 7, n.0 29, Arq. Nac. da Torre do Tombo; publ. idem - ibidem, vl. I, doc. n.º 401, p. 503-508.»
Jorge Faro, Duas expedições enviadas à Guiné anteriormente a 1474 e custeadas pela fazenda de D. Afonso V, pp. 76-77, Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Vol- XII, N.º 45, Janeiro 1957
1454/06/07
«1454 - 7 de Junho, carta de D. Afonso V concedendo à Ordem de Cristo a jurisdição de todas as praias, costas, ilhas e terras, conquistadas e por conquistar, da Guiné, Núbia, Etiópia, e de qualquer outra denominação; reconhecendo-lhe também a administração espiritual das mesmas terras (14).
(14) - Doc. em Livro das escrituras da Ordem de Cristo, cod. n.º 235 do cartório da Ordem de Cristo, fl. 12-12 v .0, Arq. Nac. da Torre do Tombo; publ. Idem - ibidem, vl. I, doc. n.º 407, p. 518-519.
Jorge Faro, Duas expedições enviadas à Guiné anteriormente a 1474 e custeadas pela fazenda de D. Afonso V, pp. 76-77, Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Vol- XII, N.º 45, Janeiro 1957
1455
Início da fortificação de Arguim, primeira feitoria comercial portuguesa em África.
GâmbiaANTONIO USODIMARE, 1 caravela. Pode coincidir com a seguinte. Numa carta de 12 de Dezembro de 1455 fala o italiano Usodimare de uma viagem que fez ao Gâmbia  no ano de 1455, tendo algumas afirmações fantasiosas. Há quem diga tratar-se de Messer Antoniotto com quem CADAMOSTO se encontrou nesse ano.
Gâmbia CADAMOSTO, 1 caravela, juntando-se no Cabo Verde 1 de Messer Antoniotto (que poderá ser a do número anterior) e 1 de escudeiros do Infante. É bem conhecida esta viagem ao Gâmbia que CADAMOSTO descreve nas suas Navegações.
CADAMOSTO chega à Gâmbia
«Primeira viagem de Cadamosto
Aluisi Cadamosto, gentil-homem de Veneza, com perto de 22 anos de idade, embarcou naquela cidade em 8 de Agosto de 1454 com destino a Flandres. Mas, retido por ventos contrários na altura do Cabo de S. Vicente, desembarcou no Algarve, onde foi informado pelos emissarios do Infante e pelo consuI veneziano das vantagens do comércio na costa de África e das condições em que poderia tentá-lo. (ª)

Soube que os armadores particulares que quisessem ir a África tinham de fazer as despesas por sua conta e no regresso entregar ao Infante a quarta parte de tôda a carga. Ou então receber o navio devidamente fornecido por conta do Infante e no regresso entregar-lhe a metade da carga.
Resolvido a tentar fortuna, abandonou os seus companheiros de viagem e deixou-se ficar no Algarve, «onde o senhor Infante me fez muito agasalho; e depois de muitos dias me mandou armar uma caravela nova, de lote de 45 toneladas, da qual era patrão um Vicente Dias...e partimos do Cabo de S. Vicente aos 22 dias de Março de 1455.»
À medida que descreve as diversas fases da sua viagem, Cadamosto vai dando informações interessantes sôbre os povos, fauna e flora das regiões que atravessava. Descreve o Cabo Branco, a furna de Arguim com as suas ilhas e a feitoria portuguesa. Refere-se à povoação de Guadem (Huadem ou Rodem) que dista da costa cêrca de seis dias de jornada a cavalo, e serve de escala às caravanas de Tombuctú.
O ouro vindo de Melli, terra de Guiné, dividia-se em 3 partes: uma seguia para o Oriente em direcção do Egipto e Síria e as outras duas dirigiam-se para Tombuctú. Daqui, um dos quinhões seguia à Tunísia e outro para Huadem. De Huadem uma parte ia até Arguim e o resto para Marrocos. Os comerciantes europeus, geralmente italianos, adquiriam esse ouro que através da Tunísia e Marrocos ia até aos portos do Mediterrâneo Ocidental.
«Depois que passamos o Cabo Branco, navegamos até ao rio de Senegal, que é o primeiro rio da terra dos Negros o qual extrema os Negros dos pardos chamados azenegues... Os povos que habitam as suas margens chamam-se Jalofos...
Passei do dito rio Senegal e continuando a navegar, cheguei ao país de Budomel...
...Detive-me neste lugar, tendo já tido informação por certos portugueses de que o Rei era pessoa de bem...e fiz-lhe saber por um meu intérprete negro como trazia alguns cavalos para trocar...Ouvindo isto aquele Senhor veio à marinha com perto de 15 cavaleiros e 150 peões...e me recebeu com grande festa...Eu dei-lhe 7 dos meus cavalos e outras coisas que ao todo me custaram 300 ducados...Rogou-me que quizesse ir por terra à sua casa e ali me pagaria bem...e presenteou-me logo uma negra de 12 para 13 anos, mui bela por ser muito negra e disse que me dava para serviço da minha câmara a qual eu aceitei.
Êste Budomel tem sempre em casa uns 200 negros que contínuamente o seguem... Mostrava grande altivez e por isso não se deixava ver, salvo uma hora da manhã...pouquíssimos homens se atreviam a chegar, excepto os cristãos que ali se deixavam andar livremente.
Nêste reino do Senegal...não tem chuvas durante 9 meses desde Outubro até fins de Junho...e seu pão é feito de milho de diversas castas; tem favas e feijões que nascem e se criam os melhores do Mundo...a sua bebida é água, leite e vinho de palmeira.
Porque me aconteceu estar muitos dias em terra, resolvi ir ver um mercado ou feira, a qual se fazia num campo tôdas as segundas e sextas-feiras...
Ajuntavam-se ali homens e mulheres de países visinhos...e nestas feiras é que cheguei a perceber que se tratava de gente pobríssima pelas
 coisas que traziam para venda, que consistiam em algodões (pouca quantidade) fiados e panos de algodão, legumes, azeite, milho, gamelas de pau, esteiras de palma e outras coisas de uso doméstico...e ainda alguma porção de ouro porém pequena... Vendem tudo permutando cousa por cousa e não por dinheiro porque o não têm.
Estando já despachado e tendo alcançado certa soma de escravos, determinei-me navegar mais adiante, passar o Cabo Verde; antes da minha partida de Portugal tinha ouvido dizer ao Sr. Infante que mais adiante se achava outro reino chamado Gâmbia; no qual diziam os negros se achava grande quantidade de ouro...
E estando para me fazer à vela, eis que uma manhã apareceram duas velas ao mar com as quais viemos à fala; e ouvindo que um dos ditos navios era de Messer Antonietto, grande navegador e fidalgo genovês, e o outro de algum escudeiro do Sr. Infante, os quais de comum acôrdo tinham feito conversa para passar o Cabo Verde...e achando-me com o mesmo propósito, me puz em sua companhia e...costeando sempre a terra, no dia seguinte avistamos o Cabo Verde».
Continuando o relato da viagem, Luiz Cadamosto descreve a chegada dos três navios ao rio de Gâmbia, onde foram recebidos hostilmente pelos indígenas, que em número de 150 atacaram as caravelas utilizando-se de sétas envenenadas. De bordo dos navios tentou-se entrar em conversa com os homens, explicando-lhes que os visitantes iam com desejo de negociar amigavelmente, ao que os indígenas responderam que já tinham tido algumas notícias dos portugueses, mas não desejavam entrar em relações com os brancos porque estes comiam a carne dos escravos pretos que compravam.
Depois desta escaramuça na foz do rio Gâmbia, as tripulações dos navios opuzeram-se a que se prosseguisse na viagem e por isso regressaram directamente a Portugal.
No decurso do seu relato, Luiz Cadamosto descreve com grande fidelidade e espírito de observação os usos e costumes indígenas, que ainda hoje, passados mais de quatro séculos, se conservam quási inalterados. Verifica-se também que a maior parte das suas indicações geográficas estão certas. Por isso mesmo, tornam-se mais notáveis os êrros e equívocos que encontramos no relatório da sua segunda viagem em que descreve a descoberta do arquipélago de Cabo Verde.
(a)Pela forma como Cadamosto descreve, parece que foi o Infante quem se esforçou, por meio dos seus emissários, a convencê-lo a tentar o negócio da Guiné. De qualquer modo, fica provado que em Portugal não se fazia segrêdo em volta das navegações e descobertas africanas, pelo menos no tempo de D. Henrique. Para confirmar, temos a intervenção de António de Noli e a presença dos cavaleiros Baltazar, alemão, e Vilarte, dinamarquês, e doutros: tripulantes estrangeiros nas expedições relatadas por Azurara. Isto, porém, não quere dizer que, mais tarde, se não tivesse mudado de orientação neste capítulo.»
João Barreto, HISTÓRIA DA GUINÉ 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 42-45
CADAMOSTO, NOLI (?) e um capitão português pas­sam o Casamansa, C. Roxo, R. de S. Domingos, entram no Geba e visitam os Bijagós.
Claramente se verifica que o ponto mais austral a que chegou foi o Gâmbia, onde traficou. Infere-se que a política de apaziguamento nesta zona estava já cm movimento, porquanto Usodimare fala de um «secretário» que um chefe indígena enviou com ele a Portugal para assentar as pazes. Refere ainda a proxjmidade de um «capitão do Rei de Meli»,que estava a 6 jornadas de um dos locais onde chegou, acompanhado de «100 homens» e «5 de homens do Prestes João». Usodimare julgava-se a 300 léguas do princípio do domínio deste. Como bom comerciante, não se esquece de mencionar o ouro e a malagueta no Gâmbia. Entra, porém, a fantasiar quando se trata de si e do seu pais - e assim diz que esteve «800 milhas para lá donde nenhum cristão havia chegado», e que encontrou um descendente dos Vivaldi. Duas afirmações que não merecem refutação.
Diz CADAMOSTO que no Cabo Verde se encontrou com duas caravelas,com as quais passou a navegar de conserva, e que uma delas erade Messer Antoniotto, gentil-homem genovês e a outra de uns escudeiros do Infante. Creio que com fundamento nesta referência se tem aíirrnado correntemente ser tal Messer Antoniotto o António Usodimare da carta atrás. Na realidade nem este nem Cadamosto passaram em 1455 do Gâmbia. Há, porém, nas narrativas dos dois, certas diferenças. O veneziano não se refere ao episódio do «secretário», antes salienta que os indígenas se obstinaram em recusar relações amistosas. Igualmente nada diz sobre o «descendente dos Vivaldi», nem fala do Prestes João.
Não temos conhecimento de outros elementos, além da referência de Cadamosto, que permitam a identificação que corre. (109) Se esta, porém, se baseia apenas em tal, não é ousada a dúvida, nem parece forçado supor que se trata de duas viagens completamente distintas, embora realizadas no mesmo ano.
(109) Na altura em que escrevemos falta-nos o livroo de CADEO, onde a acção dos italianos vem minuciosa (e exageradarnente) descrita. Ignoramos por isso se outras razões para ver no Messer Antoniotto o António Usodimare. Apenas conseguimos folhear à pressa aquela obra e tirar uns resumidos extractos.
1455/01/08
 Três anos depois, a bula Romanus Pontifex (1455) voltou a reafirmar as mesmas facilidades para Portugal, «em todas as terras, portos, ilhas e mares da África», reforçadas com a proibição a todas as outras nações cristãs de «pescarem nos ditos mares e de comerciarem nas ditas terras e com os seus habitantes», sem prévia autorização do rei de Portugal29.
Portugal obtinha desta forma, nos termos do direito internacional da época, o exclusivo do comércio de escravos em África e sua legitimação moral: tratava-se de um serviço em prol da defesa e da expansão da religião cristã.
O Papa Nicolau V na Bula «Romanus Pontifex», datada do dia 8 de Janeiro de 1455, confirma os direitos dos portugueses sobre as terras descobertas.
o mesmo papa Nicolau V, em 8 de Janeiro de 1455, pela bula Romanus Pontifex, declara que as terras já descobertas ou a descobrir pertenciam ao rei de Portugal e aos seus sucessores a título perpétuo, proibindo que alguém nelas penetrasse sem autorização daquele monarca e reconhecendo o monopólio comercial dos portugueses nesses territórios, incorrendo em pena de excomunhão quem nelas exercesse comércio sem autorização dos monarcas portugueses.” J. C. MAGALHÃES, 1990, pp. 43
Esta legitimação religiosa foi, em 1456, ratificada pela bula Inter Cetera do pontífice Calisto III, a qual concedeu à Ordem de Cristo todo o poder e jurisdição espiritual sobre as terras já adquiridas na costa ocidental africana. Apesar do importante sustento ideológico da Igreja romana e, embora Zurara tenha procurado acentuar o aspecto religioso das expedições portuguesas à África ocidental à época do Infante Dom Henrique, é preciso salientar que os portugueses e os espanhóis já tinham conhecimento do ouro sudanês por intermédio dos mouros (Braudel, 1990, p. 137-149). Com a tomada de Ceuta (1415), os portugueses puderam obter maiores informações sobre as rotas comerciais através do Saara.
Na carta do genovês Antoniotto Usodimare aos seus credores, de 12 de dezembro de 1455, há referência aos rios auríferos da Gâmbia: E cheguei aonde nunca qualquer cristão chegara, a mais de DCCC milhas; e encontrado o rio da Gâmbia, que tem uma boca larguíssima, entrei nele sabendo que nesta região se colhe ouro e malagueta (Dinis, 1960, p. 189-193).
Apesar da ênfase religiosa da história oficial, na qual as obras de Zurara e de João de Barros se filiam, os interesses econômicos foram decisivos para o empreendimento lusitano na costa ocidental da África. Se os motivos mencionados pela historiografia oficial para aquelas viagens ao sul das Canárias são válidos, cabe ainda considerar o tráfico de escravos como motivo daquelas expedições costeiras.3 O próprio cronista Zurara afirma, em 1448, que 927 almas foram trazidas ao reino depois do começo da conquista da Guiné. Já o veneziano Cadamosto oferece um número mais alarmante, ao afirmar que entre 800 e 1000 escravos chegavam anualmente a Portugal por meio dos interpostos comerciais portugueses em Arguim (Cadamosto, 1994, p. 49). Cabe lembrar que o Infante D. Henrique havia proposto um tratado aos árabes dessa região para um exclusivismo comercial durante dez anos. Ainda conforme o relato de Cadamosto, pelas mercadorias dos portugueses no golfo de Arguim, os árabes ofereciam escravos, que eles traziam das terras dos negros, e ouro em pó (Cadamosto, 1994, p. 48).
A busca direta pelo ouro foi, provavelmente, um dos motivos principais dessas primeiras viagens ao litoral atlântico africano. Inclusive, Cadamosto mencionou esse interesse português pelo ouro da Gâmbia, cujo conhecimento da sua existência foi também obtido pelos primeiros escravos negros chegados em Portugal (Cadamosto, 1989, p. 92).
1455/03/22
Este é um dos textos mais antigos sobre os descobrimentos portugueses, pois refere-se a uma viagem iniciada no Algarve em 22 de Março de1455 por Alvise da Ca' da Mosto, ou simplificando, ALVISE CADAMOSTO (1428 – 1488), que veio para Portugal quase por acaso, como ele mesmo conta. O seu texto foi publicado aqui e ali, ao longo dos séculos, a primeira vez em “Paesi nouamente retrouati et Nouo Mondo da Alberico Vesputio florentino intitulato.» (Stampato in Vicentia: cum la impensa de Henrico Vicentino & diligente cura & industria de Zammaria suo fiol, 1507 a di III de nouembre). Relazione di viaggi di Da Mosto, Colombo ed altri, curata da Fracanzio da Montalboddo. A versão mais difundida foi a inserida em 1550 no primeiro de três volumes, publicados por Giovanni Battista Ramusio (1485 – 1557):
Primo volume delle nauigationi et viaggi nel qual si contiene la descrittione dell'Africa. Et del paese del prete Ianni, con uarii uiaggi, dal mar Rosso a Calicut, et insin all'isole Molucche, doue nascono le spettie.
 Et la nauigatione attorno al mondo. Li nomi de gli auttori, et le nauigationi, et i uiaggi piu particolarmente si mostrano nel foglio seguente. In Venetia, nella Stamperia de Giunti, L’Anno 1563
O livro de Cadamosto teria sido escrito por volta de 1464 ou 1465, depois do regresso de Cadamosto a Itália. Ao contrário de outros seus compatriotas, não ficou por cá.
«Como já disse, tive motivo para ficar nestes países do senhor Budomel uns dias, para ver, comprar e entender várias coisas; e estando já despachado e com certo número de escravos, resolvi ir mais adiante, passar Cabo Verde, ir a descobrir países novos, e experimentar a minha sorte. E ouvindo do senhor Infante, antes da minha saída de Portugal (como pessoa que de tempos a tempos era informada das coisas destes países dos negros, entre as outras informações que tinha), que não muito longe deste primeiro reino de Senegal, mais adiante, se achava outro reino chamado Gâmbia, do qual contavam os negros levados para Portugal que nele se encontrava grande soma de ouro e que os cristãos que lá fossem ficariam ricos; portanto eu, movido do desejo de achar este ouro e também de ver várias coisas, desembaracei-me de Budomel e fui para a caravela.
E fazendo-me depressa à vela para sair daquela costa, eis que certa manhã apareceram duas velas no mar, as quais avistando-nos a nós e nós a elas, sabendo que só podiam ser cristãos, viemos á fala; e sabido que um dos ditos navios era de ANTONIOTO USODIMARE, gentil homem genovês, e o outro dalguns escudeiros do dito senhor Infante, os quais de acordo se tinham feita conserva para passar o dito Cabo Verde, experimentar sua fortuna e descobrir coisas novas, encontrando-me também com o mesmo propósito, pus-me em companhia deles; e com uma só vontade dirigimos o nosso rumo para o dito Cabo, também para sul, ao longo da costa, sempre à vista da terra. E assim que no dia seguinte, com vento próspero, tivemos vista do dito cabo, que é distante do lugar donde parti umas trinta das nossas milhas italianas.
Este Cabo Verde, assim chamado dos primeiros que o descobriram (que foram os portugueses) um ano antes que eu estivesse naquelas terras, o encontraram todo verdejante de grandes árvores, viçosas durante todo o ano; e por esta razão lhe foi posto o nome de Cabo Verde, da mesma forma que o de Cabo Branco ao outro de que já falámos, por ser todo arenoso e branco. Este Cabo Verde é muito belo e alto, e tem na ponta duas lombadas, isto é, dois montículos, e estende-se muito pelo mar dentro; sobre ele e à roda há muitas habitações de camponeses negros, e casas de palha, todas junto à marinha e à vista dos que passam; e são estes negros também do dito reino de Senegal.
Sobre o dito cabo há umas secas que saem fora do mar, talvez meia milha, e depois de passado encontramos três ilhotas pequenas, não muito longe da terra, desabitadas, e abundantes de árvores verdejantes e grandes; e carecidos de aguada, deitámos âncora numa delas, que nos pareceu maior e mais frutífera, para ver se encontrávamos aí alguma fonte, mas desembarcando, não a encontrámos, a não ser num lugar, onde parecia nascer alguma água, o que nos não pôde servir. Nesta ilha encontrámos muitos ninhos e ovos»
1455/12/12
12 de Dezembro de 1455 - Carta do genovês ANTÓNIO USODIMARE a seus credores, na qual ele lhes refere: haver navegado, em caravela, para as partes da Guiné e chegado aonde nenhum cristão chegara, ou seja a 800 milhas, e encontrado o rio Gambia, de amplíssima  foz, no qual entrou e onde, tomado por inimigo, foi atacado pelos indígenas com arcos e setas envenenadas; pelo que, regressou e, a cerca de 70 léguas, um nobre negro lhe dera 40 escravos, dentes de elefante e almíscar, em troco de panos, e mandou consigo secretário ao rei de Portugal, com alguns escravos, o qual se comprometeu a tratar a paz com o rei de Gambia; que o soberano português o quisera excluir de tal empresa, mas veio a anuir, e volta a fretar caravela, em que levará carregamento dos servidores do infante, para retomar o negócio; que, por terra firme, estivera menos de 300 léguas do território do preste João e, se houvesse podido demorar, ter-se-ia avistado com o capitão do rei de Meli, o qual se encontrava seis jornadas com 100.000 homens e com ele 5.000 cristão do Preste João; que topou lá um italiano, talvez das galés dos Vivaldi, perdidas havia 170 anos; que lhe falaram de elefantes, unicórnios, gatos de algália e de homens de cauda que devoravam os próprios filhos; que se navegasse mais um dia, haveria perdido a estrela polar, mas não o pudera fazer pela escassez de víveres e não poderem os homens brancos alimentar-se da comida dos negros, sob pena de adoecerem e morrerem; que o ar é bom, a terra belíssima e sita quase no equinócio; roga-lhes, enfim, aguardem mais seis meses o que lhes deve, tanto mais que se inscreve no seguro, embora aquelas águas sejam como as do porto de Génova.
In Monumenta Henricina, 12º vol., Coimbra, 1971, pp. 189-193 António Taveira
1456
Geba e GâmbiaCADAMOSTO, MESSER ANTONIOTTO e escudeiros do Infante, 3 carvelas
«Segunda viagem de Cadamosto
Segundo narra Cadamosto, no ano seguinte (1456) o dito gentil-homem (Antonio de Nolli ou Antonietto Uso-di-Mare) «de acordo comigo fez armar duas caravelas... e tendo o senhor Infante ouvido esta deliberação, quiz armar uma caravela sua para que viesse em nossa companhia ... e partimos de Lagos no princípio do mês de Maio ...
Fizemo-nos na volta de Canarias; chegamos ao Cabo Branco e tendo vista dele, nos alargamos um pouco ao mar; na noite seguinte assaltou-nos um temporal do Sudoeste com vento furioso; pelo que, para não tornar para trás, fizemo-nos na volta de Oes-noroeste para pairar; agüentamos assim o tempo, duas noites com três dias, havendo ao terceiro dia visto da terra; e gritando toda terra, terra, muito nos maravilhamos, porque não sabíamos que naquelas paragens houvesse terra alguma, e mandando subir ao mastro dois homens, descobriram duas grandes ilhas...e tanto que chegamos a um lugar que nos pareceu estação segura, lançamos âncora; e deitamos a lancha fóra e a mandamos à terra».
Os nossos partiram...não acharam caminho, nem sinal algum por onde se pudesse inferir que era povoada... Na manhã seguinte, para me acabar de esclarecer tudo, mandei 12 homens bem providos de armas...à dita ilha por uma parte onde ela era montanhosa e alta... Partiram, mas não acharam nada mais que terra deshabitada e uma grande quantidade de pombos...
Quando estes homens estiveram na montanha, houveram vista de três outras ilhas grandes... Também lhes pareceu vêr da parte do Poente (mas muito metidas pelo mar dentro) a modo de outras ilhas... e a estas não cuidei de ir.
Tornando ao nosso propósito, partimos desta ilha e seguindo a nossa derrota, chegamos à vista das outras duas; e correndo ao longo da costa de uma delas que parecia cheia de árvores, descobrimos a bôca de um rio...e saíndo alguns dos meus em terra, foram pela margem acima dêste rio e acharam algumas pequenas lagôas de sal branquíssimo, de que trouxeram para o navio grande quantidade...e igualmente vendo água belíssima, também nos provemos dela...
0 rio era grande e bem a vontade podia entrar dentro um navio de 75 toneladas; tendo largura de um bom tiro de arco; nele estivemos dois dias de descanso... E à primeira ilha em que abordamos puzemos o nome de Ilha de Boa-Vista...e estoutra, que nos parecia melhor de tôdas as quatro, o de São Tiago, porque no dia de S. Filipe e São Tiago é que lançamos âncora nela».
Depois de descrever nestes termos a suposta descoberta do arquipélago de Cabo Verde, Luiz Cadamosto continua a narrativa da sua segunda viagem, ao continente africano.
«Feito isto partimos destas quatro ilhas, fazendo-nos na volta do Cabo Verde, aonde chegamos a um lugar que se chama de Duas Palmas; na manhã seguinte passamos o Cabo e chegamos outra vez ao rio de Gâmbia, onde entramos sem oposição dos negros..
Depois de muito instado, entrou a bordo da caravela um indígena e informou que o rei daquela região se chamava Forosangoli e era suzerano do Imperador de Melli; mas havia na localidade outros chefes de menor importância e entre êstes um chamado Batimansa.
Cadamosto subiu o rio 60 milhas até chegar ao reino de Batimansa, com quem entabulou relações trocando as bugigangas que levava por «alguns escravos e certa quantidade de ouro, mas não coisa de importância em comparação com o que esperávamos achar, porque era maior a fama...
 ... Ao cabo de II dias, porque muitos dos nossos principiaram a adoecer com febres agudas e contínuas...levantamos âncora».
Cadamosto refere-se ao extraordinário desenvolvimento do baobab, ao cavalo-marinho, ao elefante e à caçada aos paquidermes que os pretos fazem com as suas azagaias. Diz que a seu pedido um indígena matou um pequeno elefante, de que provou a carne e mandou salgar uma parte que trouxe a Portugal e ofereceu a D. Henrique, assim como cabelos, uma parte da tromba e um pé com o respectivo casco.
Cadamosto chega às ilhas de Bijagós
Continuando a sua viagem ao Sul do Gâmbia, entraram, ao quarto dia, no rio de Casamansa. Como não encontrassem ali o respectivo rei, seguiram para o Sul, «chegando a um cabo...obra «de vinte milhas...que se mostrava de côr avermelhada e por isso lhe puzemos o nome de Cabo Vermelho...Continuando a navegar pela costa, chegamos à embocadura de outro rio assaz grande, e a nosso vêr de largura de um tiro de bésta; não quizemos entrar nele, mas puzemos-lhe o nome de Santa Anna (ª).
E tendo-o passado, seguindo a nossa derrota, chegamos a outro rio, o qual não nos pareceu maior que o de Santa Anna e lhe puzemos o nome de rio de S. Domingos; e do Cabo Vermelho a êste último computamos por estimativa ser a distância de 56 a 60 «milhas».
Depois continuando a navegar pela mesma costa mais uma jornada, viemos ter à embocadura de um grandíssimo rio, e tão grande que ao princípio todos nós julgamos que era golfo; aonde se avistavam árvores bonitas e verdes, da outra banda para a parte do Sul; cuja largura foi julgada por todos ser ao menos de vinte milhas; quando estivemos da outra banda, avistamos algumas ilhas ao mar; pelo que determinamos saber aqui algumas novas destes países e logo lançamos âncora.
Na manhã seguinte vieram ao nosso navio duas almadias...as quais eram realmente muito grandes e uma delas quási tão grande como as nossas caravelas, e nesta vinham trinta negros...
Vendo-os pois vir e tendo receio deles, tomamos as armas até vermos o que faziam; quando se nos avizinharam, levantaram ao ar um lenço branco...Desejoso de saber alguma coisa desta casta de gente, lhes fiz falar pelos meus intérpretes mas nenhum deles poude entender nada do que diziam, o que visto tivemos grande desgosto, e...conhecendo que estávamos em países novos, onde não podíamos ser entendidos...determinámos voltar para trás.
Estivemos dois dias sôbre a embocadura dêste rio... Achamos neste lugar uma grande contrariedade que não se encontra em outra parte; e é que, havendo aqui marés de água enchente e vasante, cresce quatro horas e baixa oito; e é tão grande o ímpeto da corrente da maré quando principia a encher, que é quási incrível; porque com três âncoras na prôa, apenas e com trabalho nos podíamos segurar...
Partimos dêste grande rio para tornar para Espanha e fizemo-nos na volta do mar por aquelas ilhas que estavam distantes da terra firme obra de trinta milhas e chegamos a elas; duas são grandes e algumas outras pequenas. Estas duas grandes são habitadas por negros, e são ilhas muito baixas, mas abundantes de belíssimas árvores. Aqui também não tivémos lingua...e daqui tomamos rumo para as nossas partes dos cristãos...»
Contradições e erros de Cadamosto
Nestes termos descreve Luiz Cadamosto a sua segunda viagem à costa africana, empreendida em 1456 na companhia de Antonio Nolli e de um outro capitão português, cujo nome se esqueceu ou não quiz mencionar. Como é fácil de vêr, esta última parte do relato refere-se ao actual território da Guiné Portuguesa, desde o Cabo Roxo até as ilhas de Bijagós. O rio a que Cadamosto diz ter dado o nome de Rio Grande é o rio Geba, onde se verifica o fenómeno de macaréu.
Pela forma como Cadamosto fala, dir-se-ia que foi êle o primeiro navegador que descobriu estas paragens, mas nós já vimos que, dez anos antes, Álvaro Fernandes tinha ultrapassado as ilhas de Bijagós e atingido a baía de Konakry, não falando dos desastres sucedidos a Nuno Tristão e Diogo Afonso. Convém notar que Cadamosto permaneceu em Portugal até o ano 1463, sendo de admirar que não tivesse tido conhecimento dêstes factos.
A obra do navegador genovês foi impressa pela primeira vez em 1507, em Vicenza. No ano seguinte foi dada à luz, em Milão, a sua versão latina e mais tarde, em 1550, divulgada por João Baptista Ramuzio na sua colecção Navigatione e Viaggi.
Desde essa data passou a ser considerada como descrição mais antiga da costa de Guiné e como fonte histórica mais segura e pormenorizada sôbre aquela região e sôbre a descoberta do arquipélago de Cabo Verde.
Todavia na descrição feita por Cadamosto das ilhas de Cabo Verde encontram-se algumas passagens pouco coerentes e outras que não correspondem aos carácteres topográficos das ilhas de Boa-Vista e Sant'Iago. Estas contradições, aliás, evidentes, só muito tarde, no século XIX é que foram apontadas, pois não consta que algum crítico as tivesse denunciado antes de J. J. Lopes de Lima, nos seus Ensaios sobre a Estatística das Possessões Portuguesas, em 1844.
As objecções apontadas à descrição de Cadamosto foram reforçadas por R. H. Major, em 1868, com a revelação do Relatório de Diogo Gomes. Estes e outros autores, que mais tarde trataram do assunto, demonstraram:
1.º - Que, celebrando-se as festas de S. Filipe e S. Tiago em 1 de Maio e dizendo Cadamosto que haviam saído de Lagos «nos princípios de Maio» não lhe era possível avistar a ilha de Santiago no dia indicado pelo autor.
2.º - Declarando Cadamosto que se encontrava na altura do Cabo Branco, quando foi assaltado por vento furioso de Sudoeste, não era possível que fôssem arrastados precisamente para o lado donde soprava o vento, até ao arquipélago de Cabo Verde que fica 100 léguas para o Sul.
3.º - Que na ilha de Boa-Vista não existem montanhas nem altitudes apreciáveis que figuram no relato analisado. Desta ilha normalmente se avista a ilha do Sal e muito excepcionalmente alguma outra ilha, em dias de rara cIaridade. Parece pouco provável que as melhores condições de visibilidade se tivessem retinido no dia da chegada de Cadamosto para que os seus homens pudessem avistar nitidamente duas ilhas do Sotavento, além de outras mais confusas.
4.º - Nem a ilha do Santiago, nem qualquer outra do arquipélago possuem um rio de água dôce em condições de receber navios e muito menos caravelas de 75 toneladas. Não existem em Santiago lagoas de sal branquíssimo, que, segundo Cadamosto, os seus marinheiros teriam recolhido.
5.º - Admitindo que a descoberta do arquipélago tivesse sido feita em 1456, é de estranhar que se não encontre qualquer referência a estas ilhas nem no testamento de D. Henrique nem em qualquer outro documento anterior a dezembro de 1460.
Por tôdas estas razões chegaram alguns autores a concluir que Cadamosto não realizou a sua segunda viagem, limitando-se a aproveitar das informações de António de Noli e doutros navegédores para se atribuir a glória dessa descoberta.
Deve-se, porém, notar que a descrição exacta e circunstanciada que Cadamosto faz da costa da Guiné desde Gâmbia até às ilhas de Bijagós, não permite duvidar de que o autor tenha percorrido aquelas terras e presenciado os factos que narra. É de presumir, pois, que essa viagem se efectuou de facto à costa de África, embora nessa ocasião se não tivesse realizado a abordagem ao arquipélago de Cabo Verde.
Que na descoberta destas ilhas tivesse tomado parte o navegador italiano António de Noli não há dúvidas; mas, excluída a hipótese da intervenção de Cadamosto, só nos resta a versão dada por Diogo Gomes, segundo a qual a descoberta teria sido feita por êle e António de Noli, em 1460 (?).
(a)Na descrição de Cadamosto existe neste ponto uma confusão de nomes. O rio Santa Anna, que diz ser o mais largo, seria talvez o Rio de Cacheu. O outro a seguir, que Cadamosto chama S. Domingos, deve corresponder ao Rio Mansôa, ou a qualquer dos canais das Ilhetas. O Rio Grande, onde observou o fenómeno de macareu, é evidentementé o estuário do Geba.»
 João Barreto, HISTÓRIA DA GUINÉ 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 45-51
Geba e GâmbiaDIOGO GOMES, JOÃO GONÇALVES RIBEIRO, NUNO FERNANDES DA BAÍA, 3 caravelas
DIOGO GOMES
Descreve-nos Dioco Gomes no seu relato a viagem que em 1456 fez à Guiné.
O termo dessa viagem, para sul, foi o Rio Fancasso, cuja identificação tem sido motivo de discussão.
ERNESTO DE VASCONCELOS (Apud B 12, pág. 22, nota 2), afirmou tratar-se do Geba, sendo, nessa hipótese o Rio Grande o Casamansa.
ARMANDO CORTEZÃO (B 12) contestou este ponto de vista, mostrando que o Rio Grande sempre foi o Canal de Geba. E como no relato vem que o Fancasso ficava para sul do Rio Grande, entendeu ser aquele o Rio de Buba ou Bolola.
Igualmente se pronunciou DAMIÃO PERES (B 30), chamando no entanto a atenção para o facto de nalgumas cartas de Benincasa e da sua escola, do século XV, a palavra Fancaso aparecer no Canal do Geba. Conclui porém que houve uma deslocação daquele nome, e que o rio Fancaso é o actual rio de Buba.
Em nosso entender (B 33) não houve porém deslocação cartográfica. O termo Fancasso é mandinga, significando grande extensão de águas, razão por que foi aplicado ao Canal do Geba, de notável largura. Além disso, lendo com atenção o relato de DIOGO GOMES, verifica-se que ele não passou do rio onde refere o macaréu, isto é, do Canal do Geba. Fancasso e Rio Grande são portanto uma e a mesma coisa, tendo simplesmente havido confusão da parte de MARTINHO DA BOÉMIA ao lançar no papelo relato que ouviu de DIOGO GOMES.
Nessa mesma viagem, no regresso, DIOGO GOMES esteve no Rio Gâmbia, que explorou por todo o percurso navegável, até à região de Cantorá. Essa exploração notável, representando uma penetração de cerca de 400 quilómetros no interior, é digna do maior realce, tendo no entanto passado despercebida até agora, pelo menos dos investigadores portugueses, grande parte dos quais, inexplicàvelmente, se têm preocupado mais em atacar DIOGO GOMES do que em estudar devidamente as suas viagens.
DIOGO GOMES explora o Rio Geba e o Rio Gâm­bia, subindo o primeiro por 150 quilómetros e o segundo por 400 quilómetros.
Viagens de Diogo Gomes.
Diogo Gomes, segundo se depreende da sua própria narrativa, era môço da câmara do Infante D. Henrique e tomou parte em várias viagens à Costa de Africa, sendo possível que se trate do mesmo navegante que figura na Chronica, de Zurara, sob o nome de Gomes Vinagre. Mais tarde, foi nomeado almoxarife do Paço de Sintra e foi nesta situação que conheceu o alemão Martinho de Boémia, que escrieveu em latim as suas narrativas, provàvelmente em 1482. Este escrito foi reproduzido por Valentim Fernandes, num códice que existe na Biblioteca de Munich.
De uma cópia fiel dêsse códice foi feita a versão portuguesa pelo erudito Gabriel Pereira e publicada no Boletim da SociedaÍe de Geografia de Lisbôa, número 5, da série 17 (1900).
Não há dúvida que os relatórios de Diogo Gomes são muito imperfeitos e contêm vários êrros sôbre pessoas, datas e lugares a que se referem; mas em geral êstes enganos são relativos a pormenores, de forma que, embora deslocados através do tempo e de lugares, os acontecimentos relatados por Diogo Gomes correspondem às descrições de Azuarra e ainda às de Cadamosto.
Diogo Gomes, depois de se referir às expedições já mencionadas na Chronica de Guiné até à morte de Valarte, em 1448, diz: «Algum tempo depois o senhor Infante armou uma caravela de Lagos, chamada Piconso, e fez Domingos Gomes capitão dela.
E armou também outras duas caravelas, para que fôssem mais avante quanto pudéssem. E mandou que Diogo Gomes fôsse capitão-mór destas caravelas...
E assim passámos o rio de S. Domingos e outro rio grande que se chama Fancaso, para do Ryo Grande, e tivemos ali grandes correntes do mar, e na enchente faz grande ímpeto, o «que chamam macareo... (ª)
...E vieram os mouros da terra nas suas almadias e nos trouxeram suas mercadorias, a saber, panos de seda (?) ou algodão, dentes de elefante e uma quarta de malagueta em grão e nas suas cascas tal qual cresce, com o que muito me alegrei...
No outro dia tomamos o caminho do Cabo Verde. E vimos a foz de um rio, que tem 3 léguas de largura, e pela grandeza logo pensamos que era o Gâmbia. E entramos com vento próspero...e vimos muitas almadias, que fugiram, porque eram os que haviam assassinado os supraditos cristãos com o seu capitão (b). Porém noutro dia vimos gentes e chegamos até próximo e fizernos pazes com êles. O senhor deles chama-se Frangazick, sobrinho de Forisangul, grande príncipe dos negros. E ali recebi dêles 180 (?) arrateis de ouro em troca das nossas mercadoria. (d).
Com auxílio de um indígena, chamado Bucker, Diogo Gomes subiu o rio em uma das caravelas até à riegião de Cantor, Diz que a fama da chegada dos cristãos se espalhou ràpidamente, acorrendo para o negócio moradores de Tombuctú; e da parte do Sul gentes de Serra de Geley (Serra de Futa Jalom) e da Quioquia (Kukia) «que é uma grande cidade cercada de muralhas feita de tijolos, capital do reino de Bormelli (e).
É êste o maior potentado de tôda a terra dos pretos... E disseram que êle era senhor de tôdas as minas e que tinha ante a porta da sua casa uma pedra de oiro, tal qual nasce da terra, de tamanho tal que 210 homens a custo a poderiam mexer, e que a essa pedra o rei prendia sempre o seu cavalo».
Depois de dar algumas outras informações sôbre os povos do Senegal e Sudão, Diogo Gomes passa a relatar a viagem do regresso, durante a qual na margem Sul de Gâmbia, encontrou o régulo Batimansa (de que também fala Luiz Cadamosto).
Êste chefe fez-lhe o melhor acolhimento, mostrando desejos de entrar em relações com o Infante e adoptar a religião cristã, pelo que pediu a Diogo Gomes que enviasse sacerdotes para os baptizar. Declarou que não mais faria guerra aos cristãos, podendo êstes negociar com segurança por todo o seu território.
«O que eu quiz experimentar mandando Jacob, índio que o sr. Infante comnosco mandou para que chegassemos à India, nos servisse de língua (f)...e mandei-lhe que fosse ao lugar que se chama Alcuzet...o qual Jacob me contou que Alcuzet é terra muito viçosa... e o senhor daquele país me mandou dentes de elefantes e quatro pretos».
Informa Diogo Gomes que os chefes indígenas e em especial o rei Nomimansa, mostravarn grandes desejos de serem baptizados  imediatamente, ao que respondeu que não tinha poderes para isso, prometendo-lhes que o Infante mandaria sacerdotes para satisfazer os seus desejos. E acrescenta:
«E aconteceu que nos dois anos próximos, ninguém foi à Guiné, porque o rei Afonso, com 352 navios, passou à Africa e tomou a poderosa cidade de Alcácer-Ceguer e por êste motivo o senhor Infante, entretido com êste negócio, não atendeu a Guiné (g)... Depois da chegada do Sr. Infante, na armada do rei Afonso, recordei-lhe o que me dissera o rei Nomimansa que lhe mandasse tudo o que êle pedira. O Infante fez tudo e mandou para ali o sacerdote, parente consaguíneo do Cardial, para que ficasse com aquele rei e o industriasse na fé. E com êle foi um moço de câmara chamado João Delgado, e isto foi no ano 1458».
A seguir Diogo Gomes narra o falecimento do Infante D. Henrique, ocorrido em 13 de Novembro de 1460, e acrescenta:
«Dois anos depois o Sr. Rei Afonso armou uma grande caravela onde me mandou por capitão. Levei 10 cavalos comigo e foi à terra dos Barbacins... Com a ajuda de Deus, em 12 dias cheguei a Barbacins e achei ali duas caravelas, a saber: uma em que era capitão Gonçalo Ferreira, familiar do Sr. Infante e outra na qual ia como capitão e mercador Antonio de Noli, genovês, levando também cavalos... E isto foi no porto de Zaya...
Êstes mercadores fizeram muito dano ao resgate dali; porque onde os mouros costumavam dar 12 negros por um cavalo, não lhes davam mais do que seis.
Então eu chamei à minha presença aqueles capitãis e da parte do Rei lhes dei 7 negros por um cavalo e depois troquei um cavalo por 14 e 15 negros. E estando nós assim veio uma caravela de Gâmbia com a nova de um fulano, chamado Prado, vinha com uma caravela cheia de riquezas. Armei logo o navio de Gonçalo Ferreira e ordenei-lhe que fôsse ao cabo Verde esperar aquela caravela. Assim fez e tomou-a e nela encontramos muito ouro. E escrevi isto tudo a El-Rei» (h).
(a) Êste nome de Fancaso, dado a um dos rios da Guiné, o encontramos no relato de Diogo Gomes. Parece tratar-se do Rio de Buba.
(b) Referência à morte do cavaleiro Valarte, ou de Nuno Tristão.
(c) No escrito de Martinho de Boémia quási todos os vocábulos portugueses e os das línguas indígenas aparecem deturpados, o que não é de extranhar, visto que o autor era alemão e escreveu em latim, procurando dar nesta língua os nomes portugueses e indígenas de forma a serem adaptados à pronúncia alemã.
(d) Esta quantidade de 180 arrateis parece um pouco exagerada, tanto mais que, como vimos atrás, Luiz Cadarnosto, que diz ter estado na Gâmbia na mesma época, queixa-se de ter encontrado apenas pequenas porções do precioso metal. No entanto devemos notar que André Álvares de Almada descrevendo a sua viagem ao mesmo rio em 1578, diz também que ali deixou cinco arrobas e oitô arrateis de ouro por não ter já mercadorias com que permutar. A serem exactos os pêsos indicados por Diogo Gomes e Almada, devemos concluir que pelo rio Gâmbia foram exportadas quantidades consideráveis de ouro.
(e) Depois do declínio do Império de Malli, com a morte de Mussa, em 1330, formou-se uma confederação de pequenos reinos locais, suzeranos de um chefe mandinga, que se designava por Bour ou Bur. Dali resultou a palavra Burmeli, isto é, chefe de Meli, ou Malli,
(f) Desta informação tambóm se deduz o propósito do Infante de àlcançar a índia pelo Sul da Guiné, na suposição de que êsse «desideratum» poderia ser ràpidamente atingido.
(g) Segundo estas indicações a viagem de Diogo Gomes deveria ter-se realizado no mesmo ano em que Cadamosto coloca a sua segunda exploração (1456), sendo por isso de estranhar que nos seus relatos não se encontrem mútuas referências, tanto mais que se tratava de primeiros contactos dos portugueses com os régulos Batimansa e outros da Gâmbia.
(h) Desta passagem deduz-se que já em 1460 se tornava deficiente a fiscalização do comércio na costa de Guiné, onde começavam a aparecer os navios piratas fazendo contrabando e comércio ilícito. Este capitão Prado, que levavà armas aos indígenas, foi condenado por D. Afonso V a ser atrelado a um carro e, depois de morto, foi lançado à fogueira, juntamente com as suas mercadorias.»
João Barreto, HISTÓRIA DA GUINÉ 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 51-55
«Descoberta das ilhas de Cabo Verde
«Eu e Antonio de· Noli, do porto de Zaya, fomos dois dias e uma noite a caminho de Portugal e vimos ilhas no mar. E por que a minha caravela era mais veleira que a outra cheguei eu primeiro a uma daquelas ilhas; parecendo bom porto, lancei a âncora e o mesmo fez António. Disse-lhes que queria ser o primeiro a pôr o pé em terra, e assim fiz, e nenhum indício de homens vimos ali. Chamamos Santiago à ilha, e até agora assim se chama...
E depois vimos a ilha da Canária...e em seguida fomos à ilha da Madeira. E querendo ir a Portugal com vento contrário, fui às ilhas dos Açôres, e Antonio de Noli ficou na ilha da Madeira. Com melhor tempo chegou a Portugal antes de mim e pediu ao Rei a capitania da ilha de Santiago, que eu descobrira; e o rei deu-lha, e êle a conservou até morrer. E eu com muito trabalho cheguei a Portugal...»
São estas as circunstâncias em que Diogo Gomes relatou a descoberta das ilhas de Cabo Verde. Como vimos, o autor fala da campanha de Alcácer-Ceguer em 1458, e a seguir dedica alguns períodos à morte e enterro de D. Henrique, em 1460. E começa o relato da segunda viagem com estas palavras: Dois anos depois o Sr. Rei Afonso armou uma grande caravela...
Da confusa redacção de Martinho de Boémia não é fácil deduzir-se se devemos contar os dois anos acima indicados da data do falecimento do Infante, ou da tomada de Alcácer-Ceguer; admitindo esta última interpretação, podemos concluir que o primeiro reconhecimento da ilha de Santigo fez-se no ano de 1460, o que está de acordo com todos os outros factos e indicações históricas que se conhecem em relação ao arquipélago de Cabo Verde.»
João Barreto, HISTÓRIA DA GUINÉ 1418-1918, edição do autor, Lisboa, 1938, pg. 66-56
LUÍS DE CADAMOSTO
É também bem conhecida a segunda viagem do veneziano, que ele relata nas suas Navegações.
Nessa segunda expedição ia acompanhado do genovês com quem se encontrara na viagem anterior. Ia também uma caravela armada pelo Infante D. Henrique. Ao todo eram três navios, mas CADAMOSTO não diz quem era o chefe.
Nessa viagem os navios subiram o Gâmbia por cerca de 90 quilómetros até à região do Botimansa, um chefe mandinga. Na foz do rio estiveram com o Gnumimansa (chefe do Niumi).
Navegando depois para sul, passaram o Rio Casamansa, o Cabo Roxo,o Rio de Santa Ana (?), o Rio de S. Domingos, e chegaram ao Rio Grande.
Tem-se afirmado correntemente tei sido CADAMOSTO o primeiro explorador do Gâmbia e o descobridor das terras entre este rio e o Canal do Geba. Uma simples análise revela que nenhuma das afinnações tem fundamento. As razões podem ver-se com desenvolvimento no nosso anterior trabalho (B 33). CADAMOSTO foi um notável relator do que viu, mas está muito longe de ter sido o grande explorador e navegador que se tem afirmado.
Segunda viagem de CADAMOSTO
«Da condição deste pais de Gâmbia, pelo que pude ver e entender nesta minha primeira viagem, pouco ou nada se pode dizer, especialmente de vista, porque como ouvistes, sendo as gentes da marinha ásperas e selvagens, não pudemos falar com elas em terra nem tratar coisa alguma, e depois fomos obrigados a voltar para Portugal e a ir mais para frente porque, como acima dissemos, os nossos marinheiros nos não quiseram seguir.
Portanto no ano seguinte, o dito gentil-homem genovês e eu, outra vez de acordo, armámos duas caravelas para buscar este rio; e ouvindo dizer o dito senhor Infante (sem cuja licença não podíamos ir que nós tínhamos tomado esta resolução), muito lhe agradou, e quis armar uma sua caravela, que viesse em nossa companhia. E providos de todo o necessário, saímos do lugar chamado Lagos, que fica perto do Cabo de S. Vicente, no princípio do mês de Maio, com vento próspero, e pusemos o rumo para as Canárias, onde em poucos dias chegámos. Sendo o tempo favorável, não nos preocupámos de tocar nas ditas ilhas, mas navegámos em seguida para o sul e com a corrente da água, que impetuosamente seguia para sudoeste, andámos muito.
Chegámos finalmente ao Cabo Branco, e tendo vista dele, fizemo-nos um pouco ao mar, e na noite seguinte assaltou-nos um temporal de sudoeste com vento forte, pelo que, para não voltar para trás, fizemo-nos para oes-noroeste, salvo erro, para costear e defendermo-nos do tempo, duas noites e três dias.
Ao terceiro dia tivemos vista de terra, gritando todos terra, terra, e muito nos admirámos porque não sabíamos de naquelas paragens haver terra. Mandámos subir ao mastro dois homens, que descobriram duas grandes ilhas; o que, sabido de nós, demos graças a nosso Senhor Deus, que nos levava a ver coisas novas, pois bem sabíamos que destas ilhas não havia notícia alguma em Portugal; e julgando que podiam ser habitadas, para saber mais e para experimentar a nossa sorte, fizemos rumo a uma delas, e em pouco tempo estávamos perto.
Chegados a ela, pareceu-nos grande e costeámo-la bastante à vista de terra; e tanto que chegámos a um lugar onde pareceu que haveria boa paragem, ali lançámos âncora, e fazendo bonança, deitámos a lancha fora e enviámo-la a terra, bem armada, para ver se havia ali gente ou vestígio de habitação. Foram e buscaram muito, mas não encontraram nem  estradas nem vestígios pelos quais se pudesse entender que fosse habitada.
Recebido este relato deles, na manhã seguinte, para me elucidar completamente, enviei dez homens bem providos de armas e bestas, que subissem à dita ilha por uma parte onde era montuosa e alta, para ver se achavam alguma coisa, ou se viam outras ilhas. Foram, e nada mais acharam senão que era desabitada, e havia imensa quantidade de pombos, que se podiam apanhar à mão, não sabendo o que fosse o homem; e trouxeram muitos deles para a caravela, apanhados com bastões e massas. No alto da montanha tiveram vista de três outras grandes ilhas de que não tínhamos dado conta, porque uma nos ficava a sotavento da parte do norte, e as outras duas estavam na mesma linha, do lado oposto, da parte do sul, também na nossa derrota, e todas à vista umas das outras. Pareceu-lhes ver mais ilhas pelo poente, muito pelo mar dentro. Todavia, não se viam bem, pela distância, e não cuidei de ir lá, quer para não perder tempo e seguir a minha viagem, quer por julgar que estivessem desabitadas e selvagens, corno eram estas outras; mas depois, pela fama destas quatro ilhas que eu tinha descoberto, chegados outros aqui, foram reconhecê-las e descobriram que eram dez ilhas, entre grandes e pequenas, desabitadas, e só encontraram nelas pombos, aves de espécies estranhas e grande pescaria de peixes.
Mas, voltando ao nosso propósito, partimos desta ilha e, seguindo nossa viagem, chegámos à vista das outras duas onde, correndo ao longo da costa duma delas, que nos parecia abundante de árvores, descobrimos a boca dum rio que dela saia; e julgando que fosse de boa água aproximámo-nos da margem para nos prover dela.
Desembarcaram alguns dos meus e foram ao primeiro lugar deste rio, pela margem acima, onde acharam lagoas pequenas de branquíssimo e belo sal, de que trouxeram grande quantidade para o navio, e dele tomámos quanto nos pareceu; e igualmente, achando muito boa água, nos provemos dela. E digo que encontrámos aqui grande quantidade de tartarugas, ou seja “gajandre” à nossa maneira, das quais tomámos algumas, cujas conchas eram maiores que boas adargas; e aqueles marinheiros mataram muitas e fizeram muitas comidas, dizendo que de outras vezes tinham comido delas no Golfo de Arguim, onde também apareciam, mas não tão grandes; e digo que para experimentar mais coisas, também comi delas e pareceram-me boas, quase tanto como carne branca de vitela, tão bom cheiro e sabor tinham; de forma que salgaram muitas delas, que em parte nos foram boa munição na viagem. Também pescámos na embocadura deste rio, e dentro dele, e achámos tanta quantidade de peixe, que é incrível de se dizer; muitos nunca os tínhamos visto, mas eram grandes e de bom gosto. O rio era grande, e assim facilmente podia entrar nele um navio de setenta e cinco toneladas carregado, e de largura uns bom tiro de arco. Aqui estivemos dois dias de descanso e nos provemos dos ditos refrescos e com inúmeros pombos que matámos; e noto que à primeira ilha onde desembarcámos, demos o nome de Ilha de Boa Vista, por ter sido a primeira vista de terra naquelas partes; e a esta outra, que nos parecia a maior das quatro, demos o nome de Ilha de Sant’Iago, porque fomos lançar âncora nela no dia de S. Filipe [e] Sant’Iago[...]
Feito o que acima escrevi, partimos das ditas ilhas na direcção de Cabo Verde, onde em poucos dias, com a ajuda de Deus, chegámos à vista de terra, a um lugar que se chama as Duas Palmas, entre Cabo Verde e Rio de Senegal. E, por se ter bom conhecimento do terreno, continuámos correndo o Cabo [...]»



Segunda viagem de Cadamosto (1456)
No seu relato refere CADAMOSTO duas «navegações» ou viagens que fez à Guiné. A primeira realizou-se no ano de 1455. A segunda diz ele que foi no ano a seguir, em 1456 portanto. (111)
A viagem de 1455 não tem para nós grande interesse, dado que não foi ultrapassado o Gâmbia. Depois do encontro das duas caravelas no Cabo Verde, os três navios, juntos, entraram naquele rio, onde não conseguiram entabular relações pacíficas com os indígenas. Um dos intérpretes que levavam fez-se entender.
Num combate que se travou, CADAMOSTO refere que o primeiro a atirar dos navios, matando um indígena, foi «um filho bastardo daquele genovez». Este é certamente o que capitaneava uma das caravelas que se haviam juntado à do veneziano.
(111) No entanto ainda recentemente AUGUSTO REIS MACHADO, numa nova edição portuguesa das «Viagens» (s. d., Portugália, Lisboa, 166 págs.),diz ter-se realizado em 1457, «visto Cadamosto ter regressado da primeira viagem em 1456». Nada encontrámos no relato que permita tal suposiçâo; pelo contrário, lê-se expressammte que a 1.ªNavegação se iniciou em 22 de Março, e embora as datas depois escasseiem, há o registo de uma observação pessoal sobre a duração dos dias e das noites no Gâmbia (cap. XXXIX) que se diz relativa a 2 de Julho. Como Cadamosto pouco tempo se demorou na região, estaria em Portugal o mais tardar em Agosto do mesmo ano.
Já se referiu a dúvida sobre quem seria o «Messer Antoniotto». DAMIÃO PERES afirma ser Usodimare (112); ignoramos, porém, o fundamento. Se é apenas a carta deste, não nos parece concludente. E a favor da hipótese de Noli está a passagem sobre o «filho do genovez». Com efeito sabe-se que António de Noli trouxe consigo para Portugal dois fiilhos ou sobrinhos - Rafael e Bartolomeu. Natural era que nas suas viagens à Guiné os levasse, e não repugna, por isso, admitir que o filho bastardo referido por CADAMOSTO fosse um deles.
Este pormenor não é de grande utilidade para o que aqui nos interessa - a investigação das primeiras expedições que ultrapassaram o Cabo Roxo. Assume no entanto importância para o problema da descoberta do Arquipélago de Cabo Verde. (113)
(112) PERES, B 36, págs. 133. Este investigador refere que o livro de CADDEO mostra serem distintos o Antonio de Nolli e o Antonio Usodimare. Não se percebe porém se a afirmação relativa ao companheiro tem fundamento igualmente em CADDEO, que, como dissemos, só conseguimos consultar de passagem, numa altura em que não nos preocupava este pormenor.
(113) Este problema continua por resolver, dividindo-se as opiniões principalmente entre Cadamosto, Antonio Noli e Diogo Gomes. Para reivindicar a prioridade de cada um deles têm-se apresentado as hipóteses mais contrárias. Em nosso parecer esta questão é insolúvel e tem andado mais ou menos ao sabor das simpatias pessoais dos investigadores por cada um daqueles três navegadores. Assim é que, por exemplo, para DUARTE LEITE («Coisas de Vária História», Seara Nova, 1941, págs. 132/139) a sua antipatia notória e bastantes vezes acentuada por Diogo Gomes leva-o a aceitar a versão de Cadamosto como verdadeira, admitindo porém que não se tratava da descoberta e criando para o efeito uma viagem de Antonio Noli, que lá teria estado em 1455.
Em face desta suposição assume particular importância o saber-se quem foi o genovês que se encontrou com Cadamosto na sua primeira viagem. Com efeito, sabemos que este partiu do Gâmbia para Porlugal na primeira quinzena de Julhode 1455, o mesmo se passando com as outras duas caravelas. Nada mais natural que, no regresso, um dos navios topasse ainda nesse rnês com as ilhas, pois que a necessidade de contornar os alisados obrigava a afastar da costa. Esse navio poderia ser o de Noli.
Tudo isto não passa porém de uma hipótese, como oulras várias que se podem estabelecer. Em nada nos repugna aceitar que os factos se tivessem também passado como diz Diogo Comes. DAMlÃO PERES acentuou já que o almoxarifado de Sintra não parece recompensa inferior à capitania de Santiago, que, por ter sido dada a Noli, tem servido de argumento principal da contestação da versão de Diogo Gomes.
De qualquer maneira, a afirmação de CADDEO (B 14, pág. 104), de que a atribuição da descoberta a Diogo Gomes é de «um ridicole ineffabile» não só é injusta como tendenciosa. Para não dizer o mesmo de Cadamosto teve aquele historiador italiano de recorer a um «erro de copista» que teria por engano incluído na segunda navegação o relato que seria da viagem de Noli... Mais uma vez as consequências de escrever a história com as simpatias e paixões pessoais. Não será muito mais cientifico reconhecer que se ignora a verdade, e não passar de apresentar as hipóteses, com o seu maior ou menor grau de probabilidade?
ATÉ AO GÂMBIA
Diz CADAMOSTO que o «sobredito gentil-homem genovez», portanto o mesmo da viagem anterior, «de acôrdo comigo fez armar novamente duas caravellas para buscar êste rio» (o Gâmbia). Foi ainda outra caravela, armada pelo Infante, e de que ignoramos o nome do capitão. Igualmente não sabemos quem chefiava a expedição. O facto de ter CADAMOSTO relatado esta como a sua anterior viagem tem-no feito ser considerado com a principal personagem. Mas tanto ele, como Noli e Usodimare, foram à Guiné não como navegadores, mas como mercadores. As suas propostas foram bem acolhidas por D. Henrique apenas porque via neles, como italianos de Génova e Veneza, indivíduos conhecedores das questões comerciais e espertos para traficar. Não foram certamente os seus conhecimentos náuticos que pesaram. Eles iam enquadrados por tripulações portuguesas e Messer Antoniotto em 1455 e este e CADAMOSTO em 1456 foram ainda acompanhados de caravelas armadas pelo Infante e dirigidas por escudeiros seus.
Mas os historiadores têm-se esquecido disto e guindado o veneziano e os genoveses à categoria de mentores. Assim é que CADDEO (pág. 81) escreve que
«Altreri cognizioni portoghesi di non grande importanzasi svolsero fino al 1455, quando dos italiani, il genovese Antoniotto Usodimare e il veneziano Alvise da Cada Mosto compaiono sul mar di Guineae con essi uno sprazzo di luce si proietta sulle terreche soltanto allora incominciano a rivelare il loro volto enigmatico».
O absurdo da afirmação nem merece contestação. VALENTIM FERNANDES, que se serviu do relato de CADAMOSTo, já viu a questão. Como transcrevera a «Crónica» de ZURARA, esta findava em1448 e não tinha mais elementos, julgou o Gámbia descoberto em 1455 e o Gêba cm 1456. Mas, apesar de se utilizar do escrito do veneziano, menciona assim tais «descobertas»:
«Ano 1455. Foy descuberto ho ryo de Gambia per (falta o nome] criado do Iffante, seëdo cõ elle dous mercadores cada hum cõ sua caravella, hum genoves chamado Antoniotto e o veneziano chamado Luys de Mosto.
«1456. 3 caravellas. S. húm criado scudeyro do lffante, e hum genovês Antoniotto, e hum veneziano Luys de Mosto descubrirõ este ryo.»
VALENTIM FERNANDES não se esquece dos escudeiros do Infante, que menciona sempre em primeiro lugar. Os outros são os «mercadores», só interessados em traficar e não em descobrir. Aliás bastará ler com atenção o que CADAMOSTO diz no Cap.º I na Navegação I: «todos os meus  pensamentos eram de exercitar a minha mocidade, trabalhando por todos os modos possíveis em adquirir cabedaes, para depois com a experiência do mundo, em idade mais avançada, poder alcançar alguma ocupação honrosa». E a razão porque D. Henrique o reteve também lá eslá: «Se alguém da nossa nação queria cometer a viagem, faria nisso uma cousa muito grata ao Sr. lnfante, que lhe faria mercê, pois presumia que nas ditas terras se descubririam especiarias e outras cousas boas, de que os venezianos eram mais conhecedores do que nenhuma outra nação». Apenas se requeria dele a experiência comercial. Nem navios nem conhecimentos náuticos interessavam - ser-lhe-iam fornecidas caravelas e marinheiros para o levar onde quisesse.
E no que respeita a Usodimare também a sua carta é bem explicita em revelar que a Guiné foi a última tábua de salvação para se livrar dos seus credores.
É este simples pormenor que tem andado esquecido, principalmente dos historiadores compatriotas de Cadamosto, Noli e Usodimare, que lhes têm conferido intentos e méritos muito chamados reais. Eles não foram mais do que peões aproveitados num jogo dirigido por quem sabiao que estava fazendo, modestos figurantes numa empresa que pouco ou nada teria perdido com a sua ausência.
Só o facto de ter desaparecido a documentação relativa ao período em que andaram na Guiné e eles terem deixado escrito qualquer coisa, aliado ao espírito partidário de alguns historiadores, poderá justificar a imerecida proeminência de que continuam a gozar.
A Segunda Navegação, embora se tratasse de uma viagem mais extensa, é relatada em muito menos espaço que a Primeira.
Abre com a descrição do desembarque nas Ilhas de Cabo Verde – no que muitos vêem uma falsificação, mas que aqui nos não interessa.
Daí teriam navegado para a costa, dobrado o Cabo Verde e entrado no Gâmbia, sern oposição. Já dentro do rio morreu um marinheiro, quando estavam juntos de uma ilha. Enterraram-no nela e deram-lhe o nome de Ilha de Santo André (115), em memória do morto. Encontraram indígenas, os intérpretes fizeram-se entender e conseguiram captar as suas simpatias. Souberam por um deles que «o seu principal senhor (do paiz de Gâmbia) o Forosangoli, o qual dizia estar a afastado do rio, pela terra dentro entre sul e sueste, segundo elle nos mostrou, de 9 a 10 jornadas; e este Forosangoli dependia do imperador de Meli, que era o grande Imperador dos Negros: mas que havia muitos oulros Senhores menores; que habitavão junto ao rio, tanto de hum como de outro lado; e se quizessemos, que elle nos levaria a hum deles que se chamava Batimansa...»
Subiram então o rio por 60 milhas (15 léguas) e chegaram aos domínios do Batimansa ou Butimensa, estabelecendo relações amistosas e traficando. Receberam escravos, algum ouro, algodão, panos de algodão, bugios, macacos e gatos de algália. Estiveram lá por onze dias, mas a doença atacou muitos, pelo que desceram o rio.
Na foz receberam de presente um elefante que o Senhor da região,o Gnuminansa (já se viu que o Guermimensa da ed. da «Colecção de Noticias» deve ser erro), ou seja o Niumimansa, lhes ofereceu.
Destes chefes indígenas nos ocuparemos com vagar no estudo da viagem de Diogo Gomes.

(115) Deve ser a Dog Island, que é também, ao que parece, a tradução de umoutro nome que os portugueses lhe deram bastante mais tarde- Ilha dos Cães.
PARA SUL DO GÂMBIA
Três dias depois de sairem da foz do Gâmbia, navegando para sul ao longo da costa, chegaram a um rio «de razoavel grandeza», de largura de mais de meia milha. Tratava-se de um dos vários pequenos rios entre o Gâmbia e o Casamansa, provavelmncute o Bliss, o Suta ou o Oyster. No dia seguinte chegaram a outro rio. Um batel foi a terra, e souberam tratar-se do «Rio de Casamansa» isto é, do rio que pertencia ao rei denominado Casamansa. Talvez que ele tirasse o título do nome do rio, que a ser assim se chamaria mais propriamente Rio de Casa, como aliás vem nalgumas cartas antigas. O Casamansa habitava a 30 milhas da foz (cerca de sete léguas e meia), mas não o viram porque andava em guerra. Os indígenas que encontraramn seriam talvez fe!upes, pois os Casangas viviam mais para o interior. A influência mandinga já se fazia sentir no rio, como o revela o próprio nome do rei local. Mais tarde VALENTIM FERNANDES registará que o nome de um dos régulos da foz era o Mansa Folup, o que mostra que até os altivos felupes já haviam sofrido a mesma influência.
Navegando mais para o sul atingiram um cabo que na «sua írente mostrava uma cõr vermelha»,pelo que lhe chamaram Cabo Roxo. Mais adiante encontraram um rio «assaz grande», que é indubitavelmente o actual Cacheu, e a que CADAMOSTO diz terem posto o nome de Rio de Santa Ana.
A seguir toparam com outro rio «não maior» que o de Santa Ana. Que teriam denominado de Rio de S. Domingos, e que estava a umas 55 ou 60 milhas do Cabo Roxo.
Um dia depois chegaram à «embocadura de um grandíssimo rio, tão grande que ao princípio todos nós julgámos que era golfo». Era o rio que durante muito tempo caracteristicamente foi chamado de Rio Grande e que uma infeliz generalização transformou em Rio Geba ou Canal do Geba. Deram-lhe uma largura de «ao menos vinte milhas (italianas)», no que não erraram. Passaram para o que julgavam ser a margem sul, apercebendo-se então de que se tratava de ilhas. Já perto delas, vieram ao seu encontro duas almadias muito grandes «uma delas quasi tamanha como as nossas caravelas, mas não Ião alterosa, e nesta vinha trinta Negros». Eram certamente duas canoas bijagós, características pelo seu notável comprimento. Os intérpretes não se fizeram, porém, entender, pelo que desistiram de navegar mais além e iniciaram o torna-viagem.
Descobriu a expedição onde foi Cadamostonovas terras não avistadas ainda?
Já atrás se viu como CADAMOSTO atraza a descoberta do Senegal e do Cabo Verde. Igualmente se apresentou a possível justificação, conforme LOPES DE LIMA.
Quem ler as «Navegações» e nada mais souber fica com a crença arreigada de que Cadamosto foi o primeiro a navegar para o sul do Cabo Verde.
Ele diz que só no ano anterior à sua primeira viagem se atingiu o referido Cabo. Ao chegar ao Rio Salum diz: «e lhe puzemos o nome de Rio Barbacim; e por esta maneira é notado na carta de navegar, que se fez daquefa costa». Fica-se com a impressão de que o descobriu e de que antes não havia cartas da região.

Quando entra no Gâmbia exprime-se de forma tal que se é levado a supor que nenhurna outra expedição lá havia estado antes. Não nega que os portugueses já tivessem conhecimento da existência do País de Gâmbia, mas habilidosamente lança no espírito do leitor a idéia de que tal conhecimento derivava apenas de informações obtidas dos indígenas do Senegal.
A Segunda Navegação abre pela descrição do desembarque nas ilhas de Cabo Verde - no que muitos vêm uma falsificação. Após a entrada no Gâmbia segue-se o relato da viagem para o sul, aprentando-se Cadamosto como dando o nome ao Cabo Roxo, Rio de Santa Ana e Rio de S. Domingos - o que parece confirmar a crença de que antes dele ninguém lá havia estado.
A notícia da entrada no Geba é toda ela surpreza - julgavam primeiro que se tratava de um golfo, viram afinal que do lado sul havia um arquipélago, os indígenas pasmados, como se nunca tivesse visto brancos…
E quando Cadamosto ouve de um escrivão o relato da viagem de Pedro de Cintra, tem a arte de o lançar no papel de forma tal que este navegador aparece como um «continuador» da sua obra, descobrindo para além do ponto onde de fora o primeiro a chegar...
Esta tendenciosa forma de escrever, que durante séculos fez passar Cadamosto por um descobridor - e que só ilude afinal quem se quiser deixar iludir - já mereceu de alguns investigadores o devido reparo.
Assim, DUARTE LEITE, com razão comenta, referindo-se ao relato que o veneziano fez das suas viagens e da de Pedro de Cintra, que
«...os maritimos, por ignorancia ou fatuidade, com frequencia se arrogavam descobertas já feitas por outrem. Exemplo desta manha nos oferece o próprio Cadamosto, anunciando ter descoberto terras que seguramente tinham sido avistadas havia uns nove anos; e no caso presente, como ele não passara do Rio Grande na sua última viagem, considerou nova toda a costa seguinte».
Os escritos de Cadamosto foram habilidosamente arquitectados para deixar no espírito do leitor a impressão de que o autor fora o descobridor de toda a costa entre o Cabo Verde e o Geba.
Mas já atrás fitou suficientemente demonstrado que nove anos antes de o veneziano vir à Guiné já fora descoberta toda a costa alé alturas do Cabo Roxo, pelo menos.
O rio a que ele diz ter posto o nome de Barbacim já era afinal o rio de Nuno Trislão. Aquele onde lhe trucidaram um intérprete já havia presenceado nove anos antes o massacre de Nuno Tristão. O Niumimansa que lhe deu um elefante já havia feito matar antes numerosos portugueses, e guardava uma âncora de navio que dez anos antes de Cadamosto receber o presente estivera no Gâmbia. O Rio de Casarnansa era afinal aquele onde muito provàvelmente Álvaro Fernandes, um decénio atrás, fora ferido...
Estes simples factos vêm lançar a dúvida sobret odo o resto do relato da 2.ªNavegação, para sul do Cabo Roxo. Que razão temos nós - em face do que já se viu - para crer que íoi na expedição onde embarcou Cadarnosto que primeiro se deu o nome ao Cabo Roxo, ao Rio de Santa Ana e ao rio de S. Domingos? E mesmo que assim tivesse sido, constitui isso prova de que antes se não havia navegado nessa zona?

Já alguns investigadores têm afirmado que a segunda Navegação é toda inventada. É difícil prová-lo. A parte relativa ao Gâmbia deriva necessariamente da observação directa -embora pudesse, é certo, ser colhida apenas na primeira viagem. Do Gâmbia para sul, porém, o relato torna-se bastante lacónico. Comparado com o da viagem de Pedro de Cintra, ouvido de um escrivão, não é mais prolixo que este. Podia portanto Cadamosto ter-se aproveitado de parte dele para o incluir numa segunda Navegação, que prolongaria para além do Gâmbia.
Embora não seja impossível, não podemos contudo provar que tal se desse.
Um facto vem, porém, aumentar a dúvida sobre a veracidade de Cadamosto. É a denominação, que ele diz ter posto, dos Rios de Santa Ana e de S. Domingos.
O Rio de S. Domingos encontra-se com efeito nas primeiras cartas conhecidas hoje. Mas delas se vê também que corresponde ao actual Cacheu.
Aliás ainda nos nossos dias esse rio limita a sul a Circunscrição de S. Domingos, de que a sede é a povoação do mesmo nome, banhada por um pequeno rio de designação análoga que desemboca no Cacheu. Durante muito tempo mesmo este foi conhecido pelo primitivo nome - havendo na sua barra o Baixo de S. Domingos -, e só a importância passada da velha povoação fundada por Manuel Lopes Cardoso fez com que o nome actual se lhe sobrepuzesse.
No entanto Cadamosto diz ter denominado esse rio de Santa Ana e aplicou a outro mais a sul a designação de S. Domingos.
Esse segundo rio é indubitàvelmente o actual Canal de Jata, pois o veneziano indica que o viu antes de chegar ao Gêba.
Sucede, porém, que nas cartas antigas esse canal vem com o nome de Rio das Ancoras e não de S. Domingos. (117)
(117) No quadro de toponímia costeira antiga que foi apresentado no estudo da viagem de Nuno Tristão, no número 1 deste «Boletim», identificámos, por engano, o antigo Rio das Âncoras com o actual Mansoa. Na realidade este rio parece ter tido durante algum tempo tal designação - e os ilhéus da sua foz ainda se chamam das Ancoras - mas ela não deve ter sido a primitiva, tendo-se dado uma transposição de nomes, tão frequente nesta costa. O Mansoa talvez tivesse sido inicialmente o Esteiro da Catarina, que depois se deslocou para o Canal entre Jata e Pecixe. LOPES DE LIMA, B 30, Llv. I, Parle II, pág. 120, indica claramente que no seu tempo o Rio das Ancoras ficava entre Jata e Pecixe.
Acresce ainda que na região nunca aparece em tais cartas um Rio de Santa Ana. Só mais tarde surgirá, mas ao norte do Casamansa.
Conclui-se assim que:
1 - Ou Cadamosto - possivelmente por não ter estado na região - confundiu e transpõs as designações geográficas;
2 - Ou os nomes que Cadamosto teria aplicado não prevaleceram e foram transpostos e alterados.
Corre geralmente que o veneziano fez uma carta das regiões por onde andou, carta essa que teria dado a um célebre cartógrafo de Ancona, Benincasa, que a teria aproveitado para corrigir e aumentar os seus trabalhos.
Mas o exame a um atlas do artista anconitano existente na biblioteca do Vaticano e reproduzido por SANTARÉM, e que se diz de 1471,faz duvidar fortemente de tal afirmação.

Com efeito, se Cadamosto levantou uma carta, natural seria que nela pusesse os nomes que se lêem nas suas «Navegaçôes», os quais certamente Benincasa fielmente reproduziria.
Mas analisando o troço da referida carta compreendido entre o Cabo Verde e o Gêba verifica-se que tal não sucede. Há nomes que vêm  nas «Navegações» e faltam na carta, e há nomes que surgem nesta e não aparecem naquelas.
Na carta vem um Rio dos Çoreos (Rio dos Sereres) e, por duas vezes, a palavra Barbacis. Mas Cadamosto não fala em nenhum rio dos Sereres, apenas menciona este povo, juntamente eom Barbacins; além disso falta na carta o Rio dos Barbacins, que aquele diz ter assim denominado. Antes do Gãmbia tem Benincasa um Rio de Loco - que já se sabe ser o Salum; no entanto o veneziano não fala em tal nome, apesar de lá ter assistido à trucidação de um intérprete. A seguir ao Cabo Roxo menciona o anconitano Fallolu, que sabemos por DUARTE PACHECO ser lugar «muito abastecido de arroz e carnes», em terra de felupes; ainda hoje um banco em frente se denomina de Baixos de Falulo. No entanto Cadamosto é mudo a respeito de tal lugar. O cartógrafo escrcreveu o nome de um Rio de san domingo no fundo de uma grande enseada; não se percebe, porém, se se trata do Cacheu ou do Canal de Jata. Mas o Rio de Santa Ana, a que Cadamosto diz ter posto a designação, é que lá não está, o que é bem estranho.
No Geba aparecem na carta vários rios desembocando na margem norte, e contudo o veneziano não refere nenhum. Lá vem um Rio de Fancaso, por duas vezes a Terra Farsangalli, Bisano (Bissau), vários nomes no arquipélago dos Bijagós, a configuração aproximada do Canal do Geba até bastante a montante - e no entanto Cadamosto não cita qualquer desses nomes, pois o seu relato não passa da foz do rio.
No Gâmbia faltam ainda na carta a menção à Ilha de Santo André, ao Gnumimansa, ao Forosangoli e ao Batimansa.
Conclue-se assim que os trabalhos de Benincasa ilustram afinal muito mal as viagens de Cadamosto, ao contrário do que se tem afirmado.
Quanto ao célebre Rio de Santa Ana em vão se pode procurar ainda na carta portuguesa de Modena que se diz de cerca de 1471, na carta de Soligo (c. 1486) na portuguesa de Paris (c. 1500), na de La Cosa (1500), na portuguesa de Modena de 1502, na de Hamy (1502), na portuguesa anónima conhecida por Kunstmann III (post. 1506), na de Pilestrina (1511), na de Maggiolo (1511), nas de Diogo Ribeiro (1527e 1529), bem como em DUARTE PACHECO e VALENTIM FERNANDES. Pela primeira vez se encontra em Gaspar Viegas (1534) - mas não onde Cadamosto indica, pois vem lá entre o Gâmbia e o Casamansa.
Mas terá esse rio alguma relação com o do veneziano?
Diz ele que após a saída do Gâmbia chegaram ao terceiro dia a um rio de «razoavel grandeza», de «largura de mais de meia milha»; não lhe dá porém qualquer nome. Na tarde desse dia viram ainda «um pequeno golfo, que quase mostrava ser a modo de embocadura de rio»; não lhe dá também designação alguma. No outro dia chegaram ao Casamansa. A carta de Bnincasa está na realidade inteiramente de acordo com este relato, na zona em questão, pois menciona um «arboredo grande» que condiz com as «infinitas arvores verdes, belíssimas e muito grandes» que Cadamosto refere; e traz apenas a embocadura de um rio, sem nome, entre o Gâmbia e o Casamansa.
Na carta portuguesa anónima feita entre 1471e 1482 já vem, entre esses dois rios, o Cabo de Santa Maria, o Rio de Santa Clara e o Rio de S. Pedro. Soligo, em c. 1486, traz a mais, entre o segundo e o terceiro, o Rio das Serras, que deve ser deturpação do Rio das Ostras, que aparece nas cartas portuguesas anónimas de Paris (c. 1500) e Modena (1502) e muitas outras depois. Assim se chega a Gaspar Viegas, onde surge o rio de Santa Ana no lugar do Rio das Ostras, que lá falta. Por fim André Homem (1559) já traz os dois a par, o de Santa Ana ao norte e o das Ostras ao sul. Depois começa a reinar compacta confusão, trocando entre si de posição todos estes rios: numa carta de Pedro de Lemos (1594) a ordem é Santa Ana, S. Pedro e Ostras; noutra possivelmente do mesmo autor (1594?) já é porém S. Pedro, Santa e Ostras; em Luís Teixeira (c. 1600) S. Pedro e Ostras; Mortier (1700) traz um novo nome, rio de S. João, que LOPES DE LIMA considera um braço do Casamansa, sendo os rios de S. Pedro, Santa Ana e Ostras três bocas desse braço - já AZEVEDO COELHO o mencionara, dizendo que um feitor inglês do Gâmbia o quisera encarregar de o «descobrir», isto é, explorar comercialmente. E assim se chega aos nossos dias, em que às cartas inglesas registam ainda ao norte o Sam Pedro, ao sul o Oystere entre ambos, o Bliss e o Suta, de que um deles deve ser o antigo Santa Ana.
Verifica-se assim que este rio só começa a aparecer nas cartas em 1534 e que esteve sujeito a constantes deslocações e trocas, com os vizinhos. Contudo essas deambulações fiseram-se sempre na zona entre o Gâmbia e o Casamansa, nunca aparecendo ele mais ao sul.
Conclui-se que o nome que Cadamosto diz ter aposto se sumiu das cartas durante muitas dezenas de anos - quase um século - e voltou a reaparecer, mas aplicado a um rio muito mais para o norte. É de crer portanto que nada tenham que ver um com o outro. O nome de Santa Ana surge constantemente aplicado a rios, cabos, ilhas, etc.; nesta zona de África, por exemplo, há, pouco ao sul da Serra Leoa, um cabo de Santa Ana que foi baptisado por Pedro de Cintra, e entre Arguim e o Senegal também os primeiros capitães henriquinos deram igual designação a outro cabo.
É sabido que os antigos navegadores tinham o costume de baptisar os acidentes costeiros consoante os nomes dos santos dos dias em que os viam. Verifica-se neste caso que Santa Ana se celebra a 26 de Julho e S. Domingos a 4 de Agosto. Sucede porém que do Cacheu ao Canal de Jata medeiam urnas escassas 15 milhas actuais, o que pressupõe que os dois cursos de água seriam avistados, quando muito, em dois dias contíguos. No entanto contam-se nove entre as datas referidas atrás como sendo aquelas da consagração de Santa Ana e S. Domingos.
Quer isto dizer que o recurso à agiologia também não consegue explicar a razão das designações que Cadamosto indica. Resta a suposição de que o Santo ou a Santa seria de particular devoção de um dos capitães dos navios, que assim o aplicaria a um dos rios, ou ainda de que alguma das caravelas se chamava S. Domingos ou Santa Ana.
Depois deste longo arrazoado continua indecifrável o mistério do Rio de Santa Ana. E a dúvida se Cadamosto esteve ou não a sul do Cabo Roxo continua a persistir.
Ele preenche apenas dois escassos capítulos em descrever a viagem entre tal cabo e o Geba, quando até aí havia sido tão prolixo. Os pormenores que dá não são mais abundantes que os que escreveu a propósito da viagem de Pedro de Cintra, cujo relato ouviu de um escrivão. E a suspeita de que ele se apropriou para a sua Segunda Navegação de uma parte daquele relato não é completamente descabida, embora não possa ser confirmada.
Tem-se afirmado que ele refere o macaréu no Geba.Tal não tem fundamento, pois ele limita-se a acentuar que as correntes de maré são muito fortes - como na realidade sucede - o que de modo nenhum pemite concluir que se trata do macaréu. Nem ele o poderia notar na foz do Geba, porquanto só no fundo do estuário, por alturas da bifurcação Geba-Corubal, o fenómeno se começa a fazer sentir. O primeiro a referi-lo foi Diogo Gomes, que nesse mesmo ano o viu porque subiu o rio.
No que respeita à afirmação de que ele levantou uma carta das zonas que visitou, carta que serviria a Benincasa, já se viu a sua falta de fundamento. Apenas no intervalo entre o Gâmbia e o Cabo Roxo há concordância entre os dois, e os trabalhos de Benincasa revelam muitos pormenores que não dizem respeito à viagem do veneziano. Este limitou-se a copiar as cartas dos marinheiros portugueses, e seria tal cópia que entregaria ao anconitano.
Creio que depois de todas estas pequenas conclusões que se estabeleceram já não há lugar para continuar a afirmar, como temos lido, que «Cadamosto foi o descobridor do Geba e dos Bijagós».
Já se viu que, para sul do Gâmbia, a costa alé ao Cabo Roxo já fora percorrida em 1446 por Álvaro Fernandes. Já se viu que posteriormente a 1448 estamos muito mal inforrnados dos limites meridionais atingidos por numerosas expedições que navegaram nos mares da Guiné. Já se viu que Cadamosto tendenciosamente escreveu as suas Navegações de modo a apresentar-se como o descobridor de toda a costa ao sul do Cabo Verde.
E ainda que antes de 1456 nenhum navio tivesse passado para além do de Álvaro Fernandes, não se podia afimar que tivesse sido o de Cadamosto o primeiro a fazê-lo. Com efeito, nesse mesmo ano de 1456, três caravelas, capitaneadas por Diogo Comes, subiram o Ceba. E ainda ninguém provou que a expedição onde embarcou o venezianmo esteve nesse rio antes da comandada pelo capitão henriquino.
☻ Em 1456, Diogo Gomes, comandando uma frota de apenas 3 caravelas, chega ao estuário do rio Geba e a algumas ilhas Bijagós; a Bula «Inter Caetara» de Calisto III, de 13 de Março daquele ano, confirma a concessão à Ordem de Cristo de todos os poderes espirituais sobre as «ilhas», vilas, portos, terras e lugares adquiridos e a adquirir desde o cabo Bojador e o cabo Não, decorrendo por toda a Guiné e por toda a plaga meridional até aos Indos”.
Viagem de Diogo Gomes (1456)
Conhecem-se de Diogo Gomes três viagens à Guiné.
A primeira parece ter sido na frota de Lançarote, em 1443, gabando-se ele de, à sua conta, ter capturado 22 azenegues, numa das ilhas de Arguim. Não interessa aqui.
A terceira (1458, 1460 ou 1462), à terra dos Barbacins, já foi referida também. Tem principalmente importância para o estudo da descoberta do arquipélago de Cabo Verde. A segunda (1456) foi incontestàvelmente a mais notável de todas. Dela nos vamos ocupar.
NO GÊBA
Na sua «Relação», de que tão frequentemente nos vimos utilizando, refere Diogo Gomes, após a descrição da viagem de Valarte, que «algum tempo depois o senhor infante armou uma caravela de Lagos chamada Piconso, e fez Diogo Gomes capitão dela». Não indica portanto qual a data da partida, mas como, mais adiante, diz que «nos dois anos próximos ninguém foi à Guiné, porque o rei Afonso, com 352 velas, passou à Afrita e tomou a poderosíssima cidacle de Acácer dalquivir», deduz-se que a viagem se realizou em 1456.
A Piconso juntou o Infante mais duas caravelas, comandadas por João Gonçalves Ribeiro e Nuno Fernandes de Baía; Diogo Gomes era o capitão-mor da frota, com a ordem de «que íôssem avante quanto pudessem».
MARTINHO DA BOÉMIA escreve então:
«Et sic transiuímus flumen Sancti Domíníci et alíum fluuium magnum vocatur Fancaso vtra Ryo grande, et habuimus illic rnagnas currentes maris, et crescente marefecit ibi magnum impetum, qui vocatur macareo, quia tune non est ancora, quae post tenere». (leitura de ANTÓNIO BAIÃO).
O que GABRIEL PEREIRA traduziu por:
«E assim passamos o Rio de S. Domingos e outro rio grande que se chama Fancaso, para lá do Rio Grande, e tivemos ali grandes correntesdo mar, e na enchente faz grande ímpeto,o que chamam macareo, porque não há ancora que possa aguentar».
Esta passagem, que indica o términus da viagem, tem sido motivo de grande discussão. À primeira vista parece estar-se em face de três rios diferentes: o S. Domingos, o Grande e o Fancasso. ERNESTO DE VASCONCELOS, pensando assim, identificou o Rio Grande com o Casamansa, e o Fancaso com o Geba, por entender que o macaréo referido em tal passagem era relativo ao Fancaso (119).
ARMANDO CORTESÃO com razão contestou este ponto de vista (120). Com abundantes exemplos mostrou que o Rio Grande sempre foi o Canal do Geba, o que o leva a concluir que: o Fancaso é outro rio a sul daquele, o actual Rio Grande de Buba. No entanto reconhece que «quem não profunde o assunto pode depreender daqui (da tradução de GABRIELPEREIRA) que se descreve o macaréu (fenómeno que na Guiné é exclusivo do Rio Geba ou antigo Rio Grande) como dando-se no Rio Fancaso». Conclui porém que «há apenas falta de clareza de Valentim Fernandes ao escrever a narração de Diogo Gomes» e que as palavras illice ibi do original latino se referem no Rio Grande e não ao Fancaso.
DAMIÃO PERES (121) segue a opinião de CORTESÃO, salientando ainda que na carta portuguesa anónima de Modena a que se a tribui a data de c. 1471 se verifica coincidir o Rio Grande com o Geba, o mesmo sucedendo no Globo de MARTINHO DA BOÉMIA (1492) - que foi quem redigiu o relato de Diogo Gomes. Traz ainda DAMIÃO PERES outra dúvida para a discussão, quando diz que «ocorreria citar, em contrário, que consta de certas cartas dos fins do terceiro quartel do século XV, como algumas das de Beníncasa e da sua escola, onde a palavra Fancaso aparece na entrada do referido estuário». É porém da opinião de que se trata de «documentos cartográficos um tanto imperfeitos, sendo crível que haja apenas deslocação daquele nome», concluindo dever «crer-se que Diogo Gomes denominou Fancaso o actual Rio de Buba».
(119) «Colónias Portuguesas», Vol. lI. Pág. 4, apud CORTESÃO (Armando), B 16, pág. 22, nota 2: «Como a maré depois enchesse de novo, o macaréu outra vez os assaltou, julgando eles mais prudente retirarem-se. Por esta descrição vemos que o rio a que eles chamavam Fancasso e que, diz Diogo Gomes na sua narrativa, era paru ládo Rio Grande, deve corresponder ao Rio Geba, em cujo estuário se dá o fenómeno do macaréu. É por isso natural que o Rio Grandedas crónicas seja antes o Casamança do que o rio que hoje toma aquele nome…»
(120) Ibidem.
(121) PERES,B 36, págs. 104-107.
Há porém uma terceira bipótese, que ainda não foi tomada em consideração, e que se afigura ser a mais simples e a mais lógica.
Não pode haver evidentemente dúvida de que o Rio Grande de Diogo Gomes e do seu tempo é o actual Canal do Gêba. Mas este e o Fancaso são afinal urn e o mesmo curso de água, como está apontado nas cartas de Benincasa.
Trata-se de uma confusão de MARTINHO DA BOÉMIA, que escreveu Fancaso além do Ryo grande em vez de Fancaso ou Ryo grande.
Uma nota de CRONE em edição inglesa das «Navegações» de CADAMOSTO (a que juntou outros relatos) chamara-nos a atenção para o termo Fancaso. CRONE cita um trecho do «Golden Trade» do antigo explorador JOBSON (1623) e cujo conteúdo é o seguinte: «...the sea, where of they are al together ignorant, onely by the name, or word Fancassa whlch signifie the great watcrs... » (Golden Trade,pag. 93, apud CRONE, B 17, pag. 91).
Ouvida a opinião de um conhecedor das línguas indígenas, soubemos que existe no idioma dos soninkés e mandingas o termo Fancasso, actualmente designando as conchas dos animais aquáticos. Mandingas e soninkés, povos do interior do continente, não estavam habituados a ver grandes extensões de água. «Quando chegaram ao litoral conheceram as conchas características da água salgada e que nunca haviam divisado nos rios dágua doce. A estranheza pela imensidade das águas e pelas conchas fê-los designar as grandes extensões de água por Fancasso, nome por que ainda hoje conhecem as conchinhas (as de que as senhoras fazem colares, actualmente de tanta procura)» (122). Já atrás se viu - a propósito da viagem de Nuno Tristão - como noutro ponto onde os mandingns atingiram a região costeira lhe aplicaram um nome revelador da impressão que lhes causava a vista de grandes extensôes de água - Niumi, o litoral.
(122) lnfomação amavelmente prestada pelo Administrador António Carreira.
Nessas mesmas cartas de Benincasa, exactamente junto da designação «Rio de Fancaso» vem, na margem norte do Canal do Geba, a de «Terra Farsangolli» (cf. o termo referido por CADAMOSTO no Gâmbia - Forosongoli), repetida novamente no fundo do canal. Adiante se verá tratar-se da Terra de Faran San Coli, chefe mandinga que então dominava na região ainda hoje conhecida por Goli. Esta simples associação mostra que Fancasso era a designação que os mandingas da margem norte aplicavam ao Canal do Gêba, impressionados, e justamente, pela sua enorme vastidão.
Aliás esta mesma conclusão se tira lendo com atenção o relato de Diogo Gomes. Em continuação do trecho já transcrito vem que
«Por êste motivo (os) outros capitães e (os) homens dêles temiam, julgando que em assim todo o mar além, e me rogavam que voltasse».
o que continua a ser referência evidente ao Rio Grande e ao macaréu.
«E a meio da rnaré ficou o mar bastante manso, e vieram os Mouros da terra nas suas almadias, e nos trouxeram as suas mercadorias, a saber: panos de sêda ou algodão, dentes de elefante, e uma quarta de malagueta em grão e nas suas casas tal qual cresce, com o que muito me alegrei».
o que mostra que os indígenas em questão, «Mouros>, eram habitantes da região de Goli, mandingas e biafadas mandinguisados, como antigos textos o fazem saber. Aliás entre os seus produtos de troca figuram os panos de algodão o que revela tratar-se de povo que já atingira notável grau de civilização - o que exclui a hipótese de serem outros habitantes das margens do Rio Grande, manjacos, papeis, balantas e bijagós, muito mais atrazados e ignorando a indústria algodoeira.
«E parámos aí, nem passámos além por causa das correntes do mar.E quando veio a maré cheia aconteceu-nos a nós como antes e assim nos voltamos adonde nos saímos».
o que mostra com clareza que novamenle sentiram o macaréu (quando veio a maré cheia aconteceu-nos a nós como antes) e que retrocederam para juzante, onde já o fenómeno não ocorria.
Vê-se portanto que tudo o que Diogo Gomes refere é relativo ao Rio Grande, e que expressamente se indica que não passaram para além do curso de água onde notaram o macaréu - o qual era afinal esse mesmo Rio Grande que os indígenas mandingas apelidavam de Fancasso, termo aliás que traduz a mesma ideia que a designação portuguesa.
Em Diogo Gomes a referência ao macaréu é inequívoca. Ele refere, como Cadamosto, «grandes correntes do mar» mas diz mais que «na enchente faz grande ímpeto, a que chamam macareo porque então não há âncora que possa aguentar» (123). E acrescenta - o que é verdade - «que a meio da maré ficou o mar bastante manso». Não há ainda referência à onda característica, mas os outros detalhes são exactos. É possível que Diogo Gomes não a tivesse indicado por estar um pouco a juzante do local onde ela se forma, embora já suficientemente próximo para sentir efeitos.
Este pormenor revela que Diogo Gomes esteve no fundo do Canal do Geba, perto da bifurcação Geba-Corubal, a cerca de 150 quilómetros para montarrle do local onde Cadamosto chegou nésse mesmo ano de 1456. Já é tempo de se começar a apreciar a distância que medeia entre o explorador Diogo Gomes - de quem se diz que «parece ter o defeito de se gabar» (124) - e o mercador Cadamosto - que corre como navegador portentoso.
Os mareantes desembarcaram ainda em terra, tendo avistado um numeroso rebanho de miongas, alguns elefantes e tocas de crocodilos.
(123) ÁLVARES D’ALMADA, B 32, pags. 52, confirma este facto e diz como «e defendiam dele: «algumas caravellas nossas de até sessenta moios que algumas vezes lá vão no passar, quando dá a agoa do Macareo, usão desta maneira. Tem algumas sonderiças e amarras ostadas humas nas outros, e estão prestes com ellas, e o navio surto e a amarra na mão. Tanto que dão aquelles mares [a onda) a vão largando e vão sobre elles aleiando muito depressa as amarras, e desta maneira passão sem perigo. porque se estivessem com a amarra abitada não deixarião de soçobrarem e passarem trabalhos».
 (124) MAGALHÃES GODINHO, B 32, pág. 108.
NO GÂMBIA
Tendo descido o Canal do Geba as três caravelas não prosseguiram para sul, antes rumaram para o norte. «E vimos a grande foz de um rio que tem três leguas de largura, onde entramos, e pela grandeza logo pensamos que aquele rio era o Gâmbia, e assim era».
Entrada a barra, chegaram a uma pequena ilha (devia ser a Ilha de Santo André de CADAMOSTO, a actual Dog lsland), junto da qual passaram a noite.
No outro dia continuaram a subir o rio, avistando «muitas almadias tripuladas, que assim que nos viram fugiram, porque eram os que assassinaram os supra ditos cristãos com o seu capitão». Deviam ser os atacantes de Nuno Tristão e Estêvão Afonso, os Niuminkas.
1 - FRANGAZICK e FARISANGUL - «Porém no outro dia, atém da cabeça do rio, vimos gentes à parte direita e chegámos até próximo, e fizemos pazes com êles; o senhor dêles se chama Frangasick, sobrinho de Farisangul, grande príncipe dos pretos. E aí recebi deles 180 arrateis de ouro em troca das nossas mercadorias, a saber, pano, manilhas, etc. E ali nos disseram porque os pretos do lado esquerdo dorio nos não quizeram falar e porque mataram os cristãos».
Diogo Gomes iniciava no Gâmbia a sua acção de paz, estabelecendo relações com um chefe do lado sul do rio, próximo da foz. Adesignação que MARTINHODA BOÈMIA ouviu do navegador e escreveu - como lhe soava - sob a fonrma de Frangazick, fàcilmente se identifica com aexpressão mandinga Faran Cassiqué, nome próprio aplicado a indivíduos nascidos de união entre homem são e mulher a que o vulgo atribui entendimentos com o diabo (125).
Como a região ficava próximo da foz do rio e na margem sul, o Faran Cassiqué era possivelmente o chefe do Combo, ou o Combomansa, que ALVARES D’ALMADA já refere (Cap. VII). AZEVEDO COELHO ( fls. lI) também cita o Combo, que ainda hoje figura nas cartas inglesase francesas como Kombo (126).
Diz Diogo Gomes que o Faran Cassiqué era sobrinho de Farisangul, grande príncipe dos negros. Mais adiante, no relato das informações colhidas em Cantor, novamente fala no Forisongul, súbdito de Mormeli (Bormeli), senhor da parte direita (margern sul) do Gâmbia.
Já afrás se viu como CADAMOSTO soube de um indígena que o principal senhor do país de Gâmbia em Forosangoli, dependente do Imperadorde Melli, e residindo numa região afastada do rio «pela terra dentro entre sul e sueste, de nove a dez jornadas».
Igualmentc se notou também que as cartas do Benincasa trazem na margem norte do Canal do Geba, por duas vezes, a Tero Forsongalli.
(125) António Carreira
(126) Trata-se de Cômbó mandinga, que signi!ica cacimbo ou nevoeiro. Adesignação Cômbomansa derivou do facto do primeiro régulo ter sido entronizado em dia encoberto e do seu reinado ter decorrido cheio de acidentes e mal-estargeral (António Carreira).
Numa carta de Nicolas de Nicolay (1560) vem, no mesmo local, Ugoli; noutra de Ferando Bertelli (c. 1560) igualmente Vgoli. Mortier, na edição das cartas- padrões da Casa da Mina (1700, mas as cartas são de meados de seiscentos) traz também Agula.
Por outro lado, na carta portuguesa anónima de Modena (c. 1471), a Terra Farsangalli desaparece, surgindo em seu lugar Gormanssa, o que se  verifica também em Soligo - c. 1486 (Gormanso), Cantino -1502 (Gormansso), Hamy - c. 1502 {Gromansa), Vesconte de Maggiollo-1511 (villa Gromansa), Diogo Ribeiro - 1527 e 1529 (Gorrnanso), João Freire - 1546 (Gormaso), Pierre Descelliers -1546 (Gormasa).
VALENTIM FERNANDES (pág. 86-7) escreve:
«Neste ryo Grande ha ouro mas pouco e aquelle oro ¨q tem trazëno do sertaõ da terra de mãdimãsa onde esta o ëmperador de todos estes reys e lhe seruë muy prosperadamëte.
Os negros desta costa leuã pera la salcõ q resgatã ho dito oroe  escrauvos e arroz porq. na costa do mar nõ tê oro.
Ha neste ryo cinco ou seys reys que todos resgatã cõ christãos e mercã cauallos e outras cousas. Huu rey chamã gromãsa outro carbali».
No «Livro de rotear» final Gromansa é localizado (pág. 217):
«N'anjo q esteuer pousado na ylha Fremosa e quiser hyr pera Gromãsa vaa ao nordeste. E ha na trauessa X legoas».
Segundo esta indicação verifica-se que o Gormansa tinha assento na região que hoje constitui o posto administrativo de Enchalé, o que condiz também com a localização deduzida do nome mais a oriente da carta de Benincasa.
ALVARES D’ALMADA fala-nos da Terra de Degola:
«Vai êsterio Grande ter a Degola que he terra dos Mandingas, que vão por cima cingindo muitas nações, e vem dar neste rio, e tem commercio por elle e grande trato com os Beafares, e estão misturados nesta terra os Mandingas e Beafares. E entra de Gâmbia, que he terra dos mesmos Mandingas, muita roupa d'algodão preta e branca, e escravos. E a principal mercadoria que aqui corre são colas, nomeadas já algumas vezes, fructo que vem da Serra Leoa ao Rio Grande, e delle o trazem a este. Levão a este trato tudo o que levão a Gâmbia» (Cap. IX).
AZEVEDO COELHOd iz que do lado norte do Canal do Geba, acabando os balantas, «se dá logo no Reyno de Gole, de Beafadas, seguindo-se, para montante e ao longo da margem norte, os Reinos de Ainchomene (Beafadas), Geba (pertencente ao Farim do Braço) e da Degola (confinando, pelo rio, com o Farim do Cabo).
CASTILHO, na segunda metade do século passado já, referia ainda o Reino de Goule (1.171), bem como LOPES DE LIMA (que diz ser de balantas, o que não é de estranhar, porquanto os mandingas estavam já em franca decadência - Liv. 1. Par!e II, pág. 107).
Em face dos elementos assim apresentados parece licito concluir que o Forosangali de CADAMOSTO e o Farisangul de DIOGO GOMES equivale ao Farsangalli e Gormansa das cartas antigas e dizem respeito a um chefe mandinga da região de Goli, na margem norte do Canal do Ceba, perto da confluência Geba-Corubal.
Forosangoli, Forisangul e Farsangallié ainda o mesmo que Faran San Coli ou Faran Sanculé (este termo corrupção daquele).
Faran é nome soninké ou mandinga, comum a fulas quando vivam em regiões vizinhas daqueles. Significa chefe, e segundo DELAFOSSE tem origem no idioma Songai, que fomeceu muitas palavras ao mandinga.(127)
(127) António Carreira.
Já VALENTIM FERNANDES o indica:
«Per toda a terra de Mandinga ha húus senhores grãdes q chamã feroes q he huu officio ou dignidade amtre eles,como a ca corregedor ou gouernador del reye este tal he muy acatado antre elles». (Pág. 77).
E no fim do século XVI também ALVARES D'ALMADA fala neles:
«Este rio de Gambia he todo povoado de negros mandingas de huma banda e outra, e em cada espaço de vinte legoas ha um Rei deles sujeito a outros que se chamão Forões que he titulo entre elles, de maior dignidade que rei; e assim vai todo este rio povoado de muitos negros e muitos reis». (Cap. V).
Noutros lugares refere-se por várias vezes a eles. No «tôpo» do Gâmbia indica dois Farins (Cap. VI); prerto da barra o Farim Jaroale (Cap. VI); do Casamansa diz que «sem embargo deste rei ser poderoso dá obediencia a um Farim, que entre elles he como Imperador, e este adá a outro que fica sobre elle, e desta maneira vão dando obediencia huns aos outros até irem dar ao Farim do Mandimança, que he Imperador dos Negros», (Cap. VIiii); no cap. XI diz que «sobre os Beafares fica hum Farim que he como lmperador entre clles, a quem todos os reis dos Beafares dão a obediencia, chamado Farim Cabo, a quem tambem a dão os Mandingas do Rio Gambia da banda do sul delle».
AZEVEDO COELHO (fls. 41) também fala dos Farins, principalmente do Farim Cabo, Farim Braço, Farim Cocolim e Farim Landima.
Os outros dois termos que figuram na designação Farisangul de Diogo Gomes também tem fácil explicação.
Escreve ANTÓNlO CARREIRA que
«Com probabilidades de acertar, fixam-se estas datas (1530-1550) como a época provável o êxodo de Mandingase Soninkés para regiões do Baixo Gâmbia, alto e baixo Casamansa até à Guiné Portuguesa, êxodo que, como se vê, teve a sua o rigem nos vários factores politico-moral e económico, absolutamentc palpáveis.
A tradição oral vinda até nós, diz que à frente dos grupos que penetraram nos territórios da actual Guiné, Firdú, etc., vinham dois chefes importantes: COLI MANÉ e IRA SANI, troncos dos ramos dinásticos que imperaram em regiões que nos vieram a pertencer. A fuga obedeceu a um plano preconcebido e uma orientação baseada em ideia religiosa-superstíciosa; os pontos cardiais Gâmbia (Norte), Kakand e(Sul), Tilibó (Nascente), Tilidji (Poente) e a selecção dos grupos fugitivos pela eliminação dos responsáveis nos fracassos.
Os cargos de régulo e chefe de tabanca eram hereditários e essa hereditaríedade nos primeiros constituiu durante anos quase um privilégio de duas familias: MANÉ e SANI. Sobre os descendentes varões destas familias recaiu sempre a investidura nos cargos de régulos nos territórios onde predominavam, seguindo-se a ordem na maioridade». (128).
(128) De um trabalho inédito sobre os Mandingas.
Ainda hoje entre os mandingas, na classe dos nobres (que outrora formava o ramo dinástico), são frequentes os apelidos Sani e Mané.
Conclue-se assim que o Forosangoli, Farisangul ou Farsangalli é o mesmo que Faran Sani Coli, chefe indígena dos troncos dinásticos Sanie Coli.(129) E verifica-se também que, como era de esperar, o Faran Cassique (Frangazick) era dessas famílias, pois Diogo Gomes indica ser ele sobrinho do Farisangul.
Diz CADAMOSTO que este último residia no interior a nove ou dez jomadas entre sul e sueste. Da foz do Gâmbia, do Combo, até ao fundo do Canal do Geba, no posto do Enchalé, vão 220 quilómetros (em linha recta), exactamente ao rumo sueste. Dando o desconto para os desvios no caminho, obtem-se uma jornada média de 30 quilómetros para uma duração de percurso de 10 dias, o que é perfeitamente aceitável.
Significa isto que a localitação da Terra Farsangalli de Benincasa está inteiramente de acordo com os informes de CADAMOSTO.
E como depois do anconitano as cartas mais antigas hoje conhecidas e os roteiristas passaram a aplicar à mesma região o nome de Gormansa, verifica-se que se trata de expressões equivalentes. Com efeito, Gormansa deve ser deturpação, por abrandamento, de Colimansa, visto não se conhecer outra palavra mandinga que lhe seja mais próxima. E Colimansa (régulo Coli ou régulo de Cóli) significa pràticamente o mesmo que Faran Sani Coli (régulo Sani Coli ou régulo de Sani Coli).
Ainda hoje na vasta região entre o Gãmbia e o Geba existem povoações ou simples locais conhecidos por Foran San Culé ou Faran San Coli. Mas a referência de CADAMOSTO prova que no nosso caso se trata de local do Canal do Geba.
Aliás ainda hoje há na área do Posto de Enchalé a povoação de Colicunda (de Coli+ cunda, povoação fundada por Coli), que a tradição diz ser antiquíssima, e à qual os balantas reportam a sua origem (Coli para eles seria porérn um fula e não um mandinga). E perto fica o porto de Goli ou Porto de Coli, em tempos não muito recuados bastante povoado de mandingas e fulas.
Tais são os vestígios que ficaram do importantc reino de Coli. (129) «O apelido mandinga SANI é traduzido como Alma de cobra, isto aludindo à formidável vitalidade deste régulo, mesmo depois de lhe ser decepada a cabeça. SAH, cobra; NI ou NIHÓ, alma. Traduzindo, temos alma de cobra.
«O nome COLI - que é Soninké - significa costas rapadas (rapado no sentido de limpo): pessoa de carácter e de grande sinceridade. CÕH, costas, LIHou LIHÔ, rapar» (António Carreira).
Goule, Ugoli ou Agiula, onde ao tempo de Diogo Gomes dominava o Faran Coli (130). Foram os súbditos deste que o navegador muito provavelmente encontrou quando esteve no fundo do Canal do Geba, e foi um sobrinho seu um dos régulos da foz do Gâmbia com quem assentou pazes.
Esta constatação assume particular importância para o estudo etnológico das populações da Colónia. Com efeito, verifica-se que, já nos meados do século XV, as massas invasoras de mandingas e soninkés se haviam espraiado por todo o alto e baixo Gâmbia, pelo Casamansa e pelo Geba, através de territórios que em parte constituem a metade oriental da actual Guiné Portuguesa. Um colar enorme, desde a foz do Gâmbia ao Canal do Geba, apertava assim de encontro ao litoral um núcleo de populações mais atrazadas, constituído pelos grupamentos tribuais de arriatas, felupes, banhuns, cassangas, jabundos, brames, manjacos, papéis, balantas, etc.
(130) Atestando a existência dos mandingas na região nesses tempos, encontra-s nalgumas cartas antigas, junto de Gormansa, ou isolado mas na mesma região, o termo Monpagam (Soligo, c. 1486), Mopacham (Anntino, 1502; Kunstman III, post 1506; Luís Teixeira, c. 1600), Mopache (Lopo Homem, 1554). Trata-se do termo mandinga Mampassan que eles aplicam às lagoas situadas em plena floresta. Na região em questão verifica-se de facto a existência de grandes lagoas. (António Carreira).
2 - SUBIDA DO GÂMBIA. ULIMAIS E ANIMAlS – Continuandona sua narrativa diz Diogo Gomes:
«Porém o senhor daquela terra tinha um preto chamado Bucker (131) que conhecia toda a terra dos negros, e eu achei que em tudo dizia verdade, e roguei-lhe que fosse comigo a Canlor, e eu lhe quis dar mantéu, camisas e todo o preciso, e assim também prometi ao seu senhor, e assim fiz.
(131) Trata-se evidentemente do termo Burar ou Bocar, nome próprio comum a fulas e mandingas (António Carreira).
E subimos o rio e mandei urn capitão com a sua caravela para um certo porto chamado Ulimais, e outro ficou em Animais...»
Diogo Gomes prosseguiu com asua caravela até Cantor. Aí estabeleceu relações pacíficas e colheu informes ao que adiante se voltará. Sucedeu porém que
«os meus homens se fatigavam com o calor e assim voltamos para procurar as outras duas caravelas E achei na caravela que ficou em Olimansa 9 homens mortos, e capitão Gonçalo Afonso bastante enfrermo e outros seus homens tambem enfermos, e tão somente três sãos. E achei outra caravela mais abaixo contra o oceano cincoenta léguas na qual estavam mortos cinco homens. E logo voltamos, e viemos para o mar,e vim ao lugar onde encontrara aquele viajante negro e dei-lhe o que lhe prometera».
Além de Cantor, refere Diogo Gomes dois locais na sua subida do Gâmbia: Animais e Ulimais ou Olimansa. A sua identificação é fácil.
BARROS (I.ª, III, XII) refere um chefe indígena, Uli Mansa, como um dos amigos e servidores de D. João II.
AZEVEDO COELHO (fls. 17), na descrição do Gâmbia, cita o reino Nhanimança, tendo defronte o porto de Nhamena, e o Reino de Ulimança, de que o primeiro porto para juzante, é Fatatenda.
DAFPER (B 18, págs. 238) fala igualmente no reino de Wally.
No «Petit Atlas Maritime» de BELIN (1764·t 111 n.º 98 e 102) vêm, em cartas de origem inglesa, ao longo da margem norte do Gâmbia, os seguintes nomes: Nani-jar, Yamina, Bas Yani, Haut Yani e Woolli.
Finalmente, as cartas francesas de hoje trazem nos mesmos lugares: Iani ouNioni, Niamena, Ouli e Fattatenda; as inglesas Niani, Niamina, Wuli e Fatotenda.
Verifica-se assim que os lugares referidos por Diogo Gomes (os termos que ele indica, são, na realidade, os nomes dos chefes – mansas - das regiões) se identificam facilmeme, por virtude de a toponímia te rperdurado, com o Niani ou Iani - Ani(mansa) - e com o 0uli ou Wuli- Vli (mansa), Olli (mansa). (132).
(132) Respectivamcnlc Animais, Vlimais e Olimansa, na leilura de ANTÓNIO BAIÃO.
Não diz o navegador qual a distância à foz dos lugares onde deixou as duas caravelas.
Afirma no entanto que de Animais a Ollimansa medeiam 50 léguas, o que confirma a identificação já deduzida, porquanto de Niani a Uli vão aproximadamente 40 léguas, havendo assim da sua parte um pequeno erro, perfeitamente aceitável.
Começa portanto a verificar-se que Diogo Gomes penetrou profundamente pelo Gâmbia acima, pois o Niani fica a cerca de 180 quilómetros da foz e o Uli a cerca de 350 (133).
(133) Iani ou Niani (N’ani) é derivado do NIHÓ ou NIH, alma, em mandinga e significa «alma padecedora» «padecedor»; Uli deve ser o UlLI, levantar, erguer. (António Carreira).
3 – CANTOR - Depois de deixar para trás duas caravelas, em Niani e Uli, Diogo Gomes prosseguiu:
«E aí subi o rio quanto pude, e achei Cantor, que é uma grande habitação junto daquele rio. E por causa da espessura dos arvoredos que estão de uma à outra parte do rio as velas não poderam seguir. E eu mandei sair o preto, que levámos comnosoo, para que manifestasse aos homens daquela terra o modo e fim por que ali viera tratar de comércio.E assim, em grande multidão, os pretos se aproximaram.
Feita a paz com ele logo soou a fama por todo o paiz que estavam os cristãos em Cantor, e correram de toda a parte para aí...»
Diogo Gomes espraia-se então em referências a numerosos lugares do interior e a factos de relações entre os vários povos. A um bom conhecedor da geografia física e humana do Sudão e regiões vizinhas deve ser fácil a identificação de quase todos os lugares que menciona. À primeira vista deduz-se logo que Tambuctu é Tombuctu, Serra Geleyé o Futa. Djalon, Emiu é o Niger, Cereculle diz respeito aosSaracolés, etc.
Especial cuidado lhe mereceram as informações respeitantes à origem do ouro e ao comércio aurífero, de que Cantor era importante centro.
A identificação desta última região não oferece quaisquer dificuldades, porquanto o nome ainda perdura e pode-se seguir através dos cinco séculos que já correram até agora.
DUARTE PACHECO (I, 29) já diz, referindo-se ao Gâmbia, que «ela sua bõca ha cento &cincoenta lcguoas esta a huma comarca de terra que se chama cantor», acrescentando que quando lá não há guerras «sempre se daly trazem a estes reinos sinco: e seis mil dobras de boo ouro».
Trata-se evidentemente do mesmo local onde esteve Diogo Gomes, embora o roteirista exagere a distância, que não passa na realidade das100 léguas.
A importância do comércio aurífero fez com que o Gâmbia tomasse também o nome de Rio de Cantor. Já VALENTIM FERNANDES (págs. 65e 75) o indica:
«...o ryo Gãbia q se chama lambem Cãtor...»
«...Gâmbia ryo ou pe outro nome chamado ryo de Cantor...»
O que ALVARES D'ALMADA (Cap. V) também já diz do Reino:
«...Reino de Gambia, chamado por outro nome o de Cantor
AZEVEDO COELHO (fls. 22 e 28) fala do seu grande comércio, indica o seu porto de Baracunda como o derradeiro do rio e o de Bunhacó como sendo do Reino de Farim cabo, «que he terra de Cantor». Noutro lugar descrevendo a região próxima de Geba, menciona que daí por terras de Farim Cabo vão seis dias de jornada até Cantor.
DAPPER (pág.239) igualmente refere Cantor.
As já mencionadas cartas do Atlas de BELIN também trazem, do outro lado do rio e a seguir a Woolli, a região de Kantor, com o Barrakunda Salt.
Finalmente, nas cartas francesas dos nossos dias, lá continua a figurar Kantor ou Kantora e nas inglesas Kantora (134), com os Barrakunda Rapids.
Verifica-se que Diogo Gomes esteve portanto na região de Cantôrá, a cerca de 400 quilómetros da barra do Gâmbia {135). E com razão diz que
 subiu o rio «quanto poude», pois na realidade os Rápidos de Barracunda, que ai existem, impedem a passagem de navios.
(134) Cantor ou Cantora, região de tradicionais lutas entre os Mandingas e os Soninkés, de um lado, e fulas do outro, deve o seu nome muito provavelmente ao facto de estes haverem causado grandes baixas àqueles. O significado da palavra é «molestou-nos», Composta de «CAN» (fez-nos isto) e «TORA» (molestar). (António Carreira).
(135) No número 1 deste Boletim, no estudo da viagem de Nuno Tristão, ao referir o valor do relato de Diogo Gomes (nas conclusões), Indicou-se por lapso a distância de 500 quilómetros, quando na realidade são 400.
Teve Cantôrá grandes relaçõescom outra região que actualmente está incluída na parte leste da Guiné Portuguesa- o Cabo - bem como com outra também contígua - o Brasso.Toda a zona entre o médio Gâmbia e o médio Geba era nessa altura assento de fortes núcleos mandingas, que mantinham um activo comércio, por terra, entre os dois rios,como aliás já foi referido atrás quando se transcreveu, de ÁLVARES D'ALMADA, a descrição do Reino de Degola.
Ao falar do rio Cacheu escreve AZEVEDO COELHO (fls. 41):
«Diante de todos estes Rios, e portos fica a povoação de Tubabodaga, que na lingua de Mandinga quer dizer aldêa de branco, a qualpor outro nome chamam Farim, e he porque he na terra de Farim de braço, e este cognome de Farim só quatro Reinos o tem, e he como dlzer Emperador, que são Farim cabo, Farim Braço, Farim Cocolime Farim Landima…»
Além de nos referir a explicação do nome da velha povoação de Farim ou Tubabodaga, no limite navegável do Cacheu, cita ainda AZEVEDO COELHO os dois Farins, Cabo e Braço, que mais adiante indica terem ambos Reinos tributários.
Já atrás, na análise de viagem de Valarte, se viu como VALENT!M FERNADES também fala do Farinbraço. E já no tempo de ALVARES D'ALMADA o Rio S. Domingos (Cacheu) também tinha o nome de Farim. (Cap. IX).
Diz AZEVEDO COELHO (fls. 66) que o Reino de Geba era um dos que pertencia ao Farim de Braço, indicando mais adiante (fIs. 68) «a terra de Braço, que he a que fica neste meyo de Jeba e Farim».
Depois o termo foi rareando. Numa carta inglesa do século passad ojá só vem o Brassu entre o alto Casamansa e o alto Cacheu, nas cartas francesas acabou por se circunscrever numa restrita zona ao sul de Selho, e nos nossos mapas de hoje já está banido.
O Braço ou Brossu (136) era indubitàvelmente a região que actualmente constitui a maior parle dos territórios da Circunscrição de Farim. Verifica-se assim que o verdadeiro nome se sumiu, substituido afinal pelo termo genérico que usavam os seus antigos senhores...Quanto ao Cabo jã ALVARES D'ALMADA (Cap. XI) o refere também:
«Sobre os Beafares fica hum Farim que he como Emperador entre êles, a quem todos os reis dos Beafares dão obediência, chamado Farim-Cabo, a quem também a dão os Mandingas do Rio Gâmbia da banda do Sul delle...»
(136) Sobre o significado do termo Braço, não foi possivel tirar conclusões seguras, porque os indígenas dão expticações confusas a esse respeito. Os indígenas do Oio ainda hoje designam a região a norte de Farim por Braço. (António Carreira).
DUARTE PACHECO (I, 29, 10) fora mais longe, afirmando que o Reino de Gambea «também na língua dos mandingas ha nome guabuu...»
Tão grande potentado como o Farim Cabo não entrava no exercício da sua autoridade sem a confirmação dos governadores portugueses de
 Bissau, por volta de 1755, sucedendo mesmo frequentemente ser de nomeação portuguesa.Os nossos chamavam-lhe Capitão-Cabo, o que não deixava de corresponder à verdade (Farim Capitão), ao mesmo tempo que se fazia um trocadilho... (137).
Quem diria que um século depois os Governadores de Bissau não teriam já qualquer poder na região? A palavra Cabo, que é Soninké, parece provir do nome de um fidalgo dessa raça, que, procedente de Mandem, o aplicou à região onde se estabeleceu, mercê da falta de sal também ali sentida. O termo significa região que não tem determinado produto necessário à vida dos povos e que tem de ser procurado noutras partes (138).
(137) Bernardino Antonio ALVAREZ D'ANDRADE, «Planta da Praça de Bissau, etc., 1796, mss, da Biblioteca Pública do Porto. Apud KOPKE, n 26, págs. 104e 107.
(138) António Carreira. Referências do século findo indicam que o comércio de Bissau com Geba, que servia o sertão para o interior, se fazia à base do sal. Esta povoção tinha, por este facto, uma considerável importância para os mandingas (recorde-se as antiquíssimas noticias, do periodo romano e Idade Média, sobre o estranho comércio sal-ouro).
Numa carta inglesa do século passado o nome ainda lá apareec – Khabu - já um pouco deslocado e reduzido.
É que na região se operara uma grande reviravolta. Os orgulhosos Mandingas e Soninkés haviam passado de senhores a escravos. Os velhos rivais, os fulas - até aí dóceis e prestando-se aos seus desejos- sacudiram o jugo, massacraram grandes núcleos e transformaram-se em dominadores. Escorraçados e reduzidos, os mandingas desceram a inferioridade numérica e política.
E o remoto Cabo transformou-se no Gabu. As vicissitudes da toponímia seguiram de perto as da guerra. O Cabo mandinga, velho de séculos, deu afinal, por estranha singularidade, o Gabu fula (N'GABU - hipopótamo) que designa a mais vasta circunscrição da Colónia. A semelhança sónica mascara porém um significado completamente divergente, e parece-nos de justiça que de novo volte a correr o antigo vocábulo mandinga, em homenagem a uma raça de tão brilhantes tradições.
Terminado este longo arrazoado - não tão despropositado como poderá parecer - chegou a altura de apresentar a condusão que se pretende.
Diogo Gornes esteve a princípio no fundo do Canal do Geba, onde os indígenas lhe apresentaram vários produtos. Desceu o Canal, correu ao longo da costa até à foz do Gâmbia, entrou por ele, subiu-o por 400 quilómetros e chegou a Cantôrá. Aí encontrou ouro - mas chegava afinal à região donde, através do Cabo, se esgotava esse ouro e outros produtos para o fundo do Geba, donde ele viera... Completava assim, depois de uma enorme volta, por via marítima e fluvial, a ligação entre dois extremos que os mandingas, pela via mais curta, terrestre, já fechavam.
4 – BATIMANSA, ALCUZET- Uma vez estabelecidas relações amistosas em Cantôrá, Diogo Gomes desceu o rio, juntando-se às caravelas que haviam ficado em Ulielani:
«E logo voltamos e viemos para o mar, e vim ao lugar onde encontrara aquele viajante negro e dei- lhe o que lhe prometera.
E então me disseram que da outra parte, isto é, à esquerda do rio, era um certo grande Senhor, ao Sul, que era chamado Batimansa, e eu desejava fazer paz com ele, e mandei-lhe aquele preto que estivera comigo
 em Cantor. Porém o senhor daquela terra, desejando falar comigo na margem do rio, em uma grande selva de arvores, trazia consigo gente infinita armada com setas venenosas e zagais e espadas e adagas.
E eu caminhei para ele levando-lhe eu mlnhas ofertas e biscoito e vinho nosso, porque não tem vinho senão de palmeira, isto é, das arvores das tâmaras. E ele deu-me três negros, duas mulheres e um homem. E ficou muito contente e muito agradecido, folgando comigo e jurando-me por Deus vivo e uno que não faria guerra aos cristãos e que seguros podiam ir pela sua terra tratando de sua mercadoria.
O que eu quiz experimentar mandando Jacob, indio que o senhor Infante connosco mandou, para que se chegássemo sà India nos servisse de língua, em terra, e mandei-lhe que fosse ao lugar que se chama Alcuzet com o senhor daquele paiz, onde de outra vez estivera com um cavaleiro pela terra de Gelofa para encontrar a terra de Gelaa e Tambucotu.
O qual Jacob indio me contou que Alcuzet é terra muito viçosa, tendo um rio de agua doce e muitos limões que ele me trazia.
E o senhor daquele paiz me mandou dentes de elefante, um deveras grande, e quatro pretos, que levaram o dito dente ao navio e assim vieram em paz até aos nossos barcos, e assim fiquei assegurado por eles. E depois disto fui à sua residência, onde estavam habitações de muitos pretos. As suas casas são feitas de canas rnarinhas cobertas de côlmo, e fiquei com ele por tres dias. Aqui ha muitos papagaios e muitas onças, e êle mesmo me deu seis peles de onças e mandou matar o elefante e levar a carne às caravelas.»
Refere igualmente CADAMOSTO o Battimansa ou Butimensa, com quem estabeleceu relações amistosas e traficou. Indica o veneziano que ele se encontrava a 60 milhas (italianas) da foz do rio, ou seja a 15 léguas (uns 90 quilómetros).
Depois só voltámos a encontrar a designação na carta de MERCATOR de 1569 (é sabido que o flamengo se utilizou aliás de CADAMOSTO), perdendo-lhe em seguida o rasto.
Nem ALVARES D'ALMADA nem AZEVEDO COELHO falam dele. Este último cita porém nessa zona do Gâmbia - do lado norte contudo – o Reino de Badibu, que ainda hoje figura nas cartas inglesas e francesas (Boddibu, Baddibou) a seguir ao Níumi. Um nome errado numa carta de BELIN (Badibour) levaria a supor que se tratava do Batimansa, mas afinal a suspeita não tem fundamento. O nome parece ter desaparecido na realidade das cartas, mas os informes de CADAMOSTO e DIOGO GOMES permitem localizar o Bati na região actualmente conhecida por Vintang ou Bintam, onde corre o rio do mesmo nome, que os ingleses também apelidaram de Jeredja, deturpação da primitiva designação de Rio dos Herejes aplicada pelos portugueses.
No Bati enviou Diogo Gomes a terra um «Jacob, índio que o senhor Infante comnosco mandou, para que se chegássemos à India nos servisse de língua». Esta passagem tem sido motivo de farta controvérsia entre os historiadores, vendo uns no índio Jacob urn indú asiático (o objectivo do lnfante seria portanto a lndia no verdadeiro termo, a península do Industão na Asia), afirmando outros tratar-se de um abexim da Etiópia ou da Abissínia (o objectivo seria assim africano).
Parece-nos que os últimos estão na razão em parte. O próprio nome de Jacob faz supor tratar-se de um abexim. E já atrás se referiu como Usodimare, na foz do Gâmbia, se julgava a trezentas léguas do Prestes João, que assim não podia deixar de ser africano. Esta suposição, que afinal era a verdadeira, encontra ainda confirmação no facto de D. João lI (e no seu tempo já os conhedmentos do interior de Africa eram mais perfeitos) ver num «Rei dos Moses», vizinho do Mandimança, um vassalo ou vizinho do famoso Príncipe Cristão (l:ª. III, XII).
Parece assim bastante mais lógico que o «índio» que Diogo Gomes levou era um abexim. Mas o facto de D. Henrique procurar na África o príncipe cristão com que contava para a guerra contra os mouros não exclui por si só a ideia de que ele visava também a lndia verdadeira e os mares do Oriente.
O problema é demasiado complexo, e por isso, cingindo-nos apenas ao que aqui interessa, nos limitamos a estes ligeiros apontamentos.
Diz Diogo Gomes queJacob ia com o encargo de chegar a Alcuzet, onde aliás já antes havia estado com um cavaleiro atravessando a terra de Jelofa (Império dos Jalofos) para demandar a terra de Gela (Futa Djalon} e Tambucotu.
Jacob atingiu Alcuzet, trazendo de lá presentes do senhor da terra para Diogo Gomes. Este também lá foi, estabelecendo-se entre os portugueses e os indígenas relações pacíficas.
Não conseguimos identificar o local, mas depreende-se ficar próximo das margens do Gâmbia, talvez entre este e o Casamansa. (142).
(142) Alcuzet deve ser Ali Cussete. O nome AIi, de origem árabe e usado por mandingas e fulas, presta-se, pelo aspirado que lhe dão, àquele modo de escrever (António Carreira).
5 - O NlUMIMANSA - Prosseguíndo na sua arrativa diz Diogo Gomes:
«E aí soube eu a verdade, que todo o dano feito aos cristãos o fizera um certo rei, chamado Nomymansa, que possui a terra que jaz neste promontório. Como qual muito trabalhei em fazer paz e mandei-lhe muitos presentes pelos seus homens em almadias suas, que iam buscar sal ao seu paiz; o sol abunda ali e é de côr vermelha.
E muito receava dos cristãos por causa do dano que lhes fizera e as caravelas já nomeadas. E fui pelo rio contra o oceano até ao pôrto que está cerca da foz do rio. E ele mandou-me grande número de homens e mulheres para me experimentar se por acaso eu lhes faria algum mal; o que eu fiz pelo contrârio recebendo-os com afabilidade.
Depois que o rei ouviu isto veio à margem do rio com grande poder e ausentando-se na praia mandou que me aproximasse o que eu fiz com as minhas cerimónias, do melhor modo que pude. Estava aí um certo Bispo da sua egreja que me interrogou a respeito do Deus dos crlstãos. E eu respondi-lhe conforme a inteligência que Deus medeu. E por ultimo eu mesmo o interroguei a respeito de Mafomete, no qual êlles acreditam. As quais palavras agradaram àquele senhor rei, que tal sorte que mandou ao Bispo que em três dias saísse do seu reino.
E erguendo-se em pé disse que sob pena de morte ninguem mais ousasse nomear Mafomete, porque só cria no Deus vivo e uno, e que não acreditava que outro Deus existisse senão aquele em que o Infante Henrique, seu irmão, dizia que acreditava, chamando ao senhor Infante seu irmão, desejando que eu o baptizasse,o que todos os senhores da sua casa e semelhantemente as mulheres dele disseram tambem.
E o proprio rei dizia que ele não tinha outro nome senão Henrique. E os senhores dele recebiam os nossos nomes, como Diogo, Nuno, e outros nomes de cristãos.
E fiquei aquela noite em terra com o rei e seus cortesãos, e não ousava baptisá·los porque era leigo. No outro dia roguei para que o rei com os doze cortesãos mais velhos e oito mulheres fõssem comigo à caravela comer, o que todos fizeram sem armas. E dei-lhes galinhas e carnes preparadas ao nosso uso e vinho branco e tinto quanto quiseram beber e êles diziam e repetiam que nenhuma outra gente era melhor que a dos cristãos.
Depois, porém, em terra quiz que eu o baptizasse. Respondi-lhe que não tinha poderes para isso concedidos pelo sumo pontífice. Mas se êle assim desejava eu o diria ao senhor Infante que lhe enviasse um sacerdote que os viesse baptizar.
E ele quiz logo escrever ao senhor Infante para que lhe mandasse o sacerdote e um fidalgo que o instruisse na fé, e que lhe mandasse um açor, ave de caça, porque se admirou quando lhe disse que os cristãos traziam na mão uma ave que apanhava as outras aves; e que lhe mandasse mais dois carneiros e ovelhas e patos, machos e femeas, e um porco; e além disso que lhe mandasse dois homens que soubessem fazer casas e cercar a sua cidade de taipa. O que tudo Ihe prometi que o senhor Infante tudo satisfaria. E quando parti êle chorava com todos os seus por causa da muita amizade que se firmára entre mim e ele
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Depois da chegada do senhor Infante, na armada com o rei Afonso, recordei ao senhor Infante o que me dissera o rei Nomimansa que lhe mandasse tudo o que ele pedira. O infante tudo fez e mandou para ali o sacerdote parente consanguíneo do cardeal, albade Sôto da Casa para que ficasse com aquele rei e o instruísse na fé. E com êle foi um moço da camara chamado João Delgado, e isto foi no ano de 1458».
Diogo Gomes completava assim no Gâmbia a sua vastíssima acção, trazendo para a nossa amizade o terrível Niumimansa, que tanto estrago fizera nas expedições de Nuno Tristão e Estêvão Cardoso.
A sua descrição fornece-nos um quadro típico de acção civilizadora dos portugueses na Guiné. Lá não falta o velho conflito religioso com os mussulmanos, exemplificado na discussão do navegador com um bixerime na conversão do régulo; a norma das relações pacíficas como gentio, tratando-o com humanidade e generosidade; e um esforço de educação civilizadora, pelo envio de sacerdotes, técnicos construtores e animais doméstioos.
O regresso. O Bezeguiche
Saída a barra do Gâmbia, Diogo Gomes enviou à frente uma caravela, encarregada de demandar directamente Portugal, se os ventos fossem favoráveis. Ele foi pelo Cabo Verde, acompanhado de outro navio. Ai o navegador encontrou de surpresa o Bezeguichi, maldoso senhor que anteriormente havia maltratado os Portugueses. Fingindo ignorar a sua identidade fez com que ele subisse a bordo, cumulou-o de comidas, bebidas e presentes, e deu-lhe uma lição de moral:
«...disse-lhe, como se não soubesse que o senhor dêles estava ali, para o experimentar: esta terra é de Beseguichi? E êle mesmo disse: assim é.
E eu disse-lhe: Porque é êle tão mau para os cristãos? Era melhor para ele fazer pazes com os cristãos, e que uns e outros trocassem suas mercadorias, e teria cavalos, etc.; como faz Burbruck e Budumele outros senhores dos negros. E digam-lhe lá que eu vos tomei neste mar, e que por mor delevos deixo ir livres para terra.
Ficaram muito contentes, e disse-lhes que entrassem nas suas almadias; e entraram. E depois de todos estarem nas suas almadias disse então ao senhor: Beseguichi, Beseguichi, não julgues que te não coheci; certamente eu poderia fazer de ti o que quizesse. E visto que te fiz bem, tu agora faz eso mesmo aos cristãos. E assim cada um de nós seguiu o seu caminho».
Mais uma vez se revela a inconfundível característica da acção de Diogo Gomes, preocupado em por toda a parte assentar a paz entre portugueses e indígenas. O navegador apresenta-se assim como um dos mais inteligentes e activos capitães henriquinos, e a orientação pacífica e civilizadora do Infante só não salta aos olhos de quem a não quiser ver.
H- CONCLUSOES FINAIS
Ao finalisar este estudo, tentativa para uma mais perfeita interpretaçãodas viagens do último período henriquino, cremos que alguma coisa se avançou no seu conhecimento e que algumas conclusões seguras e fundamentadas se puderam tirar.
Para isso nos socorremos de um processo, que, não sendo novo, tem geralmente sido muito pouco utilisado pelos investigadores: o estudo e conhecimento prévio da geografia e etnografia, e correlativamente da toponímia e antroponímia, das regiões onde se desenrolaram os acontecimentos a analisar. É nossa convicção arreigada de que só este processo permitirá avançar algurna coisa nos intrincados meandros da História dos Descobrimentos, e que só assim se corrigirão muitíssimos erros grosseiros que hoje correm comummente.
Em virtude da extensão que este trabalho tomou - e que foi muito além do que inicialmente poderíamos supor - impõe-se resumir o que ficou apurado. É o que se passa a fazer.
1)-Em 1446, Nuno Tristão, na viagem em que encontrou a morte, não chegou a atingir os territórios que hoje constituem a Guiné Portuguesa. O ataque de que foi vítima deu-se no Niumi, região entre o Gâmbia e o Jumbas, tudo levando a crer ter tido lugar num dos braços do estuário Salum-Jumbas, mais provàvelmente no que é hoje denominadoJ umbas (Rio de Lago). O rio Nuno actual nada tem que ver corn este navegador; o rio de Nuno Tristão inicial deve ter sido o que depois foi denominado Rio dos Barbacins (actual Salum).
Nuno Tristão foi, porém, indubitàvelmente o primeiro a estabelecer contacto com um dos agrupamentos étnicos que têm assento no presente domínio português. Era o primeiro choque com os mandingas do Baixo Gâmbia, que mantinham estreitas relações com outros núcleos populacionais afins instalados em regiões geogràficarnente localizadas dentro das fronteiras portuguesas de hoje.
O infeliz navegador descobria assim o então mais poderoso povo da Guiné e do Sudão. O Império Mandinga tinha ainda nessa altura em seu poder as regiões auríferas do Bambouk e do Bouré. O achado revestia-se por isso de um especial significado - Portugal entrava em contacto directo com os detcntores do ouro. Havia milhares de anos que o precioso metal se esgotava para a Europa através das caravanas do Saará e por meio de numerosos agentes. O mar tomaria agora o lugar das vastidões arenosas do deserto, e o europeu, libertando-se, dispensaria o intermediário mussulmano. A barreira que este estendera ao longo de todo o sul da  Europa era assim contornada, e o rendoso comercio deixaria de ser seu exclusivo.
2) - Em 1446 ainda, Álvaro Fernandes passava além de Nuno Tristão. É difícil saber onde chegou, mas de modo algum se pode afirmar que tivesse estado nas proximidades da Serra Leoa. Parece aceitável supor que atingisse a enseada de Varela, nas imediações do Cabo Roxo, ponto limite setentrional do domínio português, depois de ter descoberto o rio Casamansa. Álvaro Fernandes deve ter ainda encontrado outro novo agrupamento tribual boje parcialmente incluído em território nacional - osFelupes.
3) - Em 1446 também, uma frota de oito caravelas, em que iam Estêvão Afonso, Fernão Vilarinho, Lourenço Dias, Lourenço de Elvas e João Bernaldez, passou um pouco além do local onde Nuno Tristão fora atacado, chegando ao rio Gâmbia, na barra do qual encalhou um dos navios. Alguns homens desembarcaram em terra, travando-se luta com os indígenas, que deviam ser ainda do mesmo agrupamento que os que mataram Nuno Tristão. Era o primeiro desembarque no Niumi e o segundo contacto com os Niuminkas. Tratava-se da primeira acção portuguesa no Rio Gâmbia.
4) - Em 1447 Valarte e Fernando Afonso foram à Guiné com o objectivo de assentar as pazes com um dos chefes indígenas das imediaçõesde Cabo Verde. Ficaram assim um pouco aquém dos lugares atingidos pelas expedicões de 1446, estabelecendo muito provavelmente contacto com indígenas do Bor-Ba-Sine ou do Bor-Salum, jalofos, sereres ou barbacins. O objeclivo da expedição não foi, porém, conseguido, tendo ficado em terra, mortos ou cativos, Valarte e alguns portugueses.
5) - Segue-se um período confuso, de que só nos resta documentação insuficiente. Iniciou-se ou acentuou-se então o critério de procurar estabelecer relações pacíficas com os indígenas, evitando todas as acções hostis. Nota-se ainda o incremento da preocupação comercial.
Contràriamente ao que se tem afirmado, esta nova orientação nasceu mais das condições em que se haviam dado até aí os contactos com os indígenas para sul do Cabo Verde, do que própriamente de uma oposição de critérios personificada nos infantes D. Pedro e D. Henrique. As expediçõesde 1446 e 1447 à Terra dos Negros, e já mesmo as anteriores de 1444 e 1445, foram verdadeiros desastres no ponto de vista político e comercial, além de terem custado numerosas vidas. Os indígenas mostravam-se aguerridos e dispunham de uma arma que provocara surpresa e lançara o receio entre as tripulações dos navios - as flechas envenenadas. A nova orientação era assim um imperativo evidente, e não é necessário procurá-la em antagonismos de dirigentes, que aliás outros factos contrariam.
Entre 1448 e 1456 parecem ter-se realisado numerosas viagens de que apenas ficaram escassos vestígios. É natural que algumas delas tivessem ultrapassado o local onde em 1446 chegou Álvaro Fernandes.
6) - Em 1456 esteve na Guiné pela segunda vez o veneziano Cadamosto, cujos méritos são mais de esperto traficante e hábil narrador e observador, do que de navegador e descobridor. É ele o primeiro a descrever as regiões entre o Gâmbia e o Geba, mas carece de fundamento a afirmação corrente de ter sido o primeiro a chegar a este rio e ao arquipélago dos Bijagós. No Gámbia percorreu 90 quilómetros para montante da barra, mas no Geba não passou da foz, se é que lá esteve, pois há razões para disso ter uma certa dúvida.
Ele não fala da viagem de Diogo Gomes no mesmo ano - o que aliás este também faz em relação ao veneziano. E o facto de este ter tratado pacificamentc com o Niumimansa e com o Batimansa leva a crer que esteve no Gâmbia após Diogo Gomes, que parece ter sido o primeiro a assentar as pazes com tais chefes.
7) - Em 1456 Diogo Gomes esteve no Gâmbia e no Geba, muito provàvelmente antes de Cadamosto, pelas razões já apontadas.
A sua viagem foi incontestàvehnenté uma das mais notáveis do período henriquino, e o navegador - que tem sido alvo de muitas críticas injustas e mal fundadas - tem evidente direito a ser incluído entre os maiores do seu tempo.
A expedição que ele comandou levava importantes objectivos, que têm passado despercebidos dos historiadores. A forma como a viagem decorreu e a ida a bordo do abexim Jacob provam iniludivelmente que um deles era a demanda do Prestes João, considerado africano e vizinho do Mandimansa.
Diogo Gomes não se preocupou em descobrir maiores extensões de costa. Ele foi directo ao Rio Grande, o mais largo rio encontrado até aí, subindo-o pràticamente até ao limite navegável. O macaréu e a escassez de altura de âgua dai para cima impediram-no de prosseguir. Foi o primeiro a observar o fenómeno, tendo passado 150 quilómetros para cima do local onde Cadamosto, no mesmo ano, afirma ter chegado. Atravessou assim toda a massa dos povos atrazados do litoral e chegou à região dos mandingas e beafadas, islamisados .e mais civilizados.
Depois disto foi directo ao Gâmbia, o mais largo rio, a seguir ao Rio Grande, até aí descoberto, e navegou por ele acima pràlicamcnte até onde os navios podem ir, pois chegou à região de Cantôrá, onde ficamo s rápidos de Barracunda; a 400 quilómetros da foz.
Verifica-se assim a existência de um objectivo definido e suficientemente claro: a penetração fluvial, até aos mais remotos pontos navegáveis através dos rios mais largos até aí descobertos, e que por isso se julgariam os mais extensamente navegáveis. E a ida do abexim Jacob, «para que se chegássemos à índia nos servisse de língua», revela que um dos objectivos dessa penetração era o Prestes João. Iam começar os preparativos para a conquista de Alcácer, e o achado do misterioso príncipe cristão talvez se revelasse de grande utilidade numa possível ajuda contra os mussulmanos.
Mas este objctivo político-militar não era o único. Todo o relato de Diogo Gomes está imbuído da preocupação pacífica. E neste aspecto a sua viagem constituíu um sucesso completo. No Rio Grande travou logo relações amistosas com os mandingas e beafadas de Coli. No Gâmbia estabeleceu as pazes com nurmerosos chefes das duas margens até à região onde chegou. A lista compõe-se dos régulos Faran Cassique (provavelmente do Combo) e dos de Iani, Uli, Cantôrá, Bati, Alcuzet e Niumi (este último até aí inimigo aguerrido dos portugueses). No Cabo Verde submeteu o Bezegiche, outro inimigo tradicional, por um método humano e generoso.
Diogo Gomes completou ainda a sua acção colhendo valiosos informes de carácter comercial. Por toda a parte procurou inquirir e conhecer os produtos da região, em Coli e no Gâmbia. Mas foi sobretudo o ouro, o precioso metal que D. Henrique tanto procurava, que prendeu mais as suas atenções. Ainda neste ponto a sua viagem era um sucesso, pois ele atingira o importante mercado aurífero de Cãntorá, onde obteve minuciosos conhecimentos da mecânica geográfico-comercial que espalhava o ouro do interior por vastas regiões.
Cãntorá seria daí em diante, com Arguim, e mais tarde a Mina, um dos centros fundamentais para os portugueses no tráfego do ouro.
Diogo Gomes merece, por todas eslas razôes, ser apontado como um dos mais inteligentes e activos obreiros do Infante D. Henrique e como um dos maiores navegadores e exploradores da sua época. É de toda a justiça que ele e João Fernandes sejam considerados os dois primeiros pioneiros da exploração dos sertões Oeste-Africanos a partir da costa.

Avelino Teixeira da Mota, 2º Tenente, in “A descoberta da Guiné", Boletim cultural da Guiné Portuguesa, Vol. 1 (1),p. 11-68, (2), p. 273-326; (3), p. 457-509.

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