1620
Chegada dos primeiros escravos africanos às colónias continentais inglesas na América.
FRANCISCO DE TÁVORA Administrador de Cacheu, de 1620 de 1623 e, ao mesmo tempo, feitor do contratador ANTÓNIO FERNANDES DE ELVAS para a Guiné.
1621
Fundação da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais com monopólio comercial sobre a África Ocidental e a América.
«A fase do exclusivo ibérico do tráfico negreiro tinha, no entanto, os dias contados.
O primeiro sinal soou em 1621, com a fundação da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (em neerlandês, West-Indische Compagnie, correntemente dita WIC), cuja ação se vai inserir na guerra contra a Espanha, no âmbito da luta pela independência da Holanda. Face à união das Coroas ibéricas, atacar os territórios coloniais portugueses era uma forma de atingir os interesses espanhóis.
Em 1624, a WIC já tinha meios para fazer avançar para o Atlântico Sul uma poderosa esquadra de guerra que não teve muita dificuldade em conquistar a cidade de São Salvador da Baía, no Brasil, capital da colónia e um dos centros da produção açucareira. É certo que os portugueses retomaram a cidade logo no ano seguinte, mas, em 1630, os holandeses ocuparam Olinda e Recife, na capitania de Pernambuco, e por lá ficaram até 1654, tentando a expansão territorial e organizando a sua própria produção de açúcar. A cultura e a transformação industrial da cana exigiam mão de obra abundante e os holandeses passaram a frequentar a costa africana para obtenção de escravos, assaltando os navios portugueses do tráfico e esforçando-se por assumir a iniciativa do negócio. Nesse sentido, conquistam, em 1638, o forte de São Jorge da Mina e ocupam, entre 1641 e 1648, a ilha de São Tomé e o litoral do Congo e de Angola, incluindo os portos estratégicos de Mpinda e Luanda. Durante esses anos, são eles que controlam o comércio de escravos no Atlântico Sul.»
1621/03/23
Alvará determinando que pessoa alguma possa ter cativo mouro ou turco nos portos de mar de Portugal. 1621-03-23. Portugal, Torre do Tombo, Chancelaria régia, Núcleo Antigo 2Q, f. 116.
1623
De um parecer do juiz da Índia e Mina, acerca das queixas que lhe haviam chegado da capital das ilhas a este respeito, pode-se deduzir o que foi a prática dos governadores com relação ao tráfico de Guiné:
“E prova-se, [relatava o juiz, referindo-se ao inquérito realizado na sequência de uma carta da Câmara, escrita em 1623] que alguns Governadores tomam para si o trato, e comércio dos Rios de Guiné, do que os moradores da ilha se sentem e queixam muito, porque o remédio deles e da terra depende de negociarem para aqueles Rios, e que segundo são os Governadores assim sucede nesta matéria. Porque FRANCISCO MARTINS DE SIQUEIRA impedia aos moradores da Ilha o comércio para os Rios, e NICOLAU DE CASTILHO também era rigoroso com lhes dar licença; e que DOM FRANCISCO DE MOURA, procedeu honradamente neste particular, e de maneira que não houve queixas dele. E que D. FRANCISCO ROLIM começou seu governo de sorte que se queixavam os moradores dele neste particular. Porém faleceu brevemente. E prova-se que aquela ilha está muito pobre. E que o estará mais se os Governadores não deixarem negociar os moradores, e embarcar suas fazendas para os Rios”(1).
Jorge de Mesquita de Castelo Branco teria levado ao extremo a prática de monopolizar o comércio realizado nas ilhas mas muitos dos seus antecessores já haviam tido a mesma experiência, segundo, aliás, o conteúdo da carta da Câmara da Ribeira Grande atrás referida. Um dos governadores mencionados no documento foi FRANCISCO MARTINS DE SIQUEIRA (1610-1614) de quem também ficou provado que “tomava por força contra vontade dos moradores desta ilha os panos que tinham para levar ao resgate de Guiné [...] E lhos pagava por menos do que valiam”. E assim mesmo fazia com algumas pessoas que traziam os seus escravos de Guiné, comprando a vinte e cinco mil réis as que valiam trinta e a trinta as que valiam quarenta (2). Menos absoluto do que seria, posteriormente Jorge de Mesquita, Francisco Martins não chegava propriamente a impedir que os moradores da ilha fossem ou mandassem as suas fazendas à Guiné. Somente “dilatava a licença” requerida por alguns deles de modo a poder colocar nas armações feitas em Santiago, antes de qualquer pessoa, o carregamento que lhes impingia “de seus mantimentos, algodões e roupas”.
De comum ainda com Jorge de Mesquita, era o facto de Francisco Martins de Siqueira fazer com que fosse arrematado para si próprio e a um valor inferior ao maior lanço dado, o produto dos impostos que ia, por sua ordem, a pregão - pipas de vinho, por exemplo, ou peles de gado cabrum originárias das ilhas de Barlavento e do Maio. A diferença entre os dois é que no caso de Francisco Martins, talvez pelo facto de ser ele o Provedor da Fazenda, ao invés de aparecer como interessado na arrematação, mandava “lançar nelas por terceiro”(3).
Os métodos de ambos também se mostram semelhantes com relação à extorção praticada com os navios de origem estrangeira, que no caso de Francisco Martins se viam detidos no porto da cidade “sem causa justa” a fim de se verem obrigados a “tornarem a vender o que tinham comprado” para refazerem suas matalotagens que, entretanto, haviam consumido.
Num acto, em particular, FRANCISCO MARTINS DE SIQUEIRA parece ter ido mais longe do que JORGE DE MESQUITA: armou para Guiné com mercadorias defesas, nomeadamente ferro, espadas e fazendas da Índia, o que teria feito mediante “licença” (!) de JOÃO SOEIRO, contratador, e do seu respectivo feitor.
(1) - AHU, Cabo Verde, cx. 2, doc. 20, 23-Jan-1624.
(2) - AHU, Cabo Verde, cx. 1, doc. 35, 04-Jul-1614. 643 - Ibidem.
(3) - Ibidem
1623/06/27
CONSULTA DA JUNTA SOBRE O BAPTISMO DOS NEGROS ADULTOS
(27 ... 6-1623)
SUMÁRIO ---Rebaptização dos negros sob condição - Que fossem baptizados em Santiago de Cabo Verde antes do embarque para as Índias de Castela - Residência de jesuítas em Cacheu e Colégio em Cabo Verde - lnquisidor na Costa de África - Assunto a propor ao Inquisidor Geral.
Per carta de 10 de mayo do anno passado de 1622, em re[s]posta de huã consulta da Mesa da Conciencia sobre os Baptismos dos negros adultos que das Costas de Guiné e porto de Cacheu se leuaõ a Indias, foy V. Magestade seruido mandar que se juntassem Luis da Silua, Vedor da Fazenda ele V. Magestade e o Doctor Simaõ Soarez, do Conselho della, e o Doctor Antaõ de Mesquita, deputado da Mesa da Conciencia e Ordens, e os padres Francisco ele Gouuea e Antonio Mascarenhas da Companhia de Jesus e vendo a consulta da Mesa da Conciencia que com a djta Carta uinha e o que no dito negocio se pode e deve fazer, consultassem a V. Magestade o que parecesse, por ser a matteria taõ graue que obriga a se tratar della com muita prudençía.
E per carta de 24 de mayo deste anno e per outras ordenou V. Magestade se satisfizesse ao que pella acima referida tinha mandado, pera cessar o escrupulo que se offerecia em se di!atar tanto este negocio.
Em cumprimento do que se ajuntaraõ as pessoas nomeadas por V. Magestade na carta acima e se uio a copia da consulta que pella Mesa da Conciencia se fez a V. Magestade em 2 3 de pagarem os ordenados e ordinarias dos menistros dessa e se deuiaõ os do dito Bispo e Clero. / /
E NICOLAO DE CASTILHO acrecenta alem do referldo, com que se conforma, que acodem tantos rnercadores aos Rios de Guiné, e com tantas fazendas e nauios adonde os negros naturaes da terra ouueraõ de uender e resgatar a troco de escrauos, naõ uendern mais que tres, porque o que se lhes dá por elles hé tanto que supre bem a necessidade que elles da dita fazenda podem ter. Com o que todos os resgates estaõ leuantados e perdidos e os que os administraõ naõ fazem mais que auenças e jnuiar naos e nauios que nandaõ pera seus intentos e proueitos. / /
Com as quais jnformaçoés e pareceres se conformou a Mesa da Conciencia e os Gouernadores deste Reino, acreçentando que conuem muito á conciencia de V. Magestade fazerse o referido nos ditos pareceres, de que resultaria muito beneficio á fazenda real; e que isto inesmo se deue introduzir nas Conquistas de S. Thomé e Angola, leuandosse todos os negros que ouuerem de hir pera fora ás Cabeças das Conquistas, a qual consulta uaj com esta com as jnformaçoens a ella inclusas.
E vistas as ditas consultas e jnformaçoens em junta, e considerada a matteria como a jm:portancia della requerre.
Pareceo que os negros adultos que em Cacheu e Rios de Guiné se resgataô e nauegaõ pera Jndias e outras partes, se naõ baptizaõ na forma do Direito, por naõ serem primeiro cathequizados e instruidos como hé necessario. E pello perigo que corre a saluaçaõ de suas almas, pello dito respeito deue V. Magestade ordenar que primeiro que se baptizem sejaõ bem instruídos e doctrinados na nossa santa fé e tenhaõ
uerdadeiro conhecimento do sacramento do Baptismo que vaõ de receber.
1623/08/04
CARTA RÉGIA SOBRE A MISSÃO DA GUINÉ (4-8-1623)
SUMÁRIO - Manda que em todos os navios vão clérigos para a assistência espiritual a bordo e se trate da residência dos Padres da Companhia de Jesus em Cacheu. - Inquisição.
Em Carta Regia de 4 de Agosto de 1623
Com carta uossa de 15 do mes passado enuiastes huã consulta da Junta, em que se acharaõ Luis da Silua, Simaõ Soarez, Antaõ de Mesquita, Antonio Mascarenhas e Francisco de Gouuea, e outra da Mesa da Conçiençia, sobre os bautismos dos negros adultos de Guiné, Angola, Cabo uerde e Sam Thomé. E auendoas uisto, hej por bem de approuar o que se propoem na consulta da Junta, e que pera se acudir com breuidade a materia de tanta importançia, se procure logo effectuar o que toca á residencia dos Relegiosos da Companhia em Cacheo, e que em todos os nauios em que se nauegarem pessas, vão (sendo possivel) Clerigos que se ocupem na doutrina e benefiçio das almas daquella gente e dos mais passageiros. / /
E acerca de se dar comissaõ a quem nos Rios de Guiné entenda nas materias do Santo Offiçio, e castigue os comprehendidos nellas, me pareceo mandar escreuer ao Bispo Inquisidor Geral uma carta da substançia que entendereis pella copia que se uos enuia.
Christouaõ Soarez.
AAT, Mesa da Consciência e Ordens, liv. 26, fl. 130. -AHU., Cód. 35, fl. 120 v.
1626/11/00
«No decurso do arrendamento de André da Fonseca (1627 -1632) dois mercadores de Lisboa concertaram-se estabelecendo entre si uma companhia comercial. Este era um dos expedientes a que habitualmente recorriam os homens de negócios do Reino como forma de participarem no trato ultramarino. Visto que desconhecemos os termos da constituição deste acordo comercial, bem como o montante investido na empresa, podemos apenas colocar a hipótese de que se tratou de uma associação entre ANTÓNIO FERNANDES LANDIM e FRANCISCO DIAS MENDES DE BRITO que seguia os princípios gerais destas ligações: ambos entravam com um determinado capital, que tanto poderia ser de igual montante como não 10, um dos sócios permanecia em Lisboa – neste caso Mendes de Brito- e o outro efectuava a viagem gerindo a empresa – a situação de António Fernandes Landim - , partilhando os riscos e eventuais lucros ou percas: uma vez concluído o circuito mercantil, terminado o negócio, fechavam-se as contas e desfazia-se a companhia (1).
Importa agora esclarecer quem eram estes dois mercadores seiscentistas.
ANTÓNIO FERNANDES LANDIM, natural de Famalicão, residia desde novo em Lisboa, junto aos Remolares, freguesia da igreja de São Paulo. Filho de Gonçalo Eanes e de Maria Pires, nunca casou nem teve filhos legítimos nem naturais. Aparentemente também não tinha irmãos nem parentes próximos com quem privasse dado que nomeia como seus testamenteiros dois amigos, João Lopes, morador em Lisboa junto à Sé, e Cosmo Vieira, solicitador do Físico Real, morador nos arrabaldes da mesma cidade, deixando bem claro no seu testamento que "dezerdo todos( ... ) quaysquer meus paremtes e quero que nhenu suseda nem erde couza alguma mynha".
Mercador de recursos medianos, dispunha na altura em que mandou lavrar o seu testamento dos seguintes bens: um navio pequeno o Santo António, dois contos de réis empregues em fazendas que pretendia levar para os resgates na Guiné, 200.000 réis em dinheiro, uma escrava doméstica de nome Graça, 45 peças de escravos em Cacheu em poder do escrivão da capitania, Fernão Lopes de Mesquita, e mais 5 ou 6 negros procedentes de dívidas também naquele porto da Guiné. Tais bens deveriam provir dos negócios do trato de escravos de que António Fernandes Landim era um activo participante. Efectuava ligações regulares entre Lisboa- Rios da Guiné-Cartagena-Sevilha-Lisboa. Para além da viagem comercial que pretendemos analisar, e que decorreu aproximadamente entre 1628 e 1630, Landim já havia realizado outras deslocações (2) - uma certamente pelos anos de 1623/4 (3) -, preparando-se, em 1632, para iniciar uma nova aventura em terras afro-americanas. De facto, quando em 21 de Novembro de 1632, Landim mandou lavrar o seu testamento afirma o seguinte: "[ ... ] estamdo eu ao prezemte san e em todo o meu prefeytto yuizo emtemdimemento que Deos me deu e prestes pera me embarquar pera os Reinos de Gyne pera dahy segyr mynha vyagem a Ymdias de Castela" (4). Embora com tudo preparado para partir navio armado, 4 000 cruzados (ou seja, c. de 1 conto e 600 mil réis) em fazendas compradas para resgatar na Guiné, mais 1000 cruzados (ou seja, c. de 400 mil réis) procurações para receber em Cacheu fazendas de terceiros (5) - não sabemos se esta viagem se chegou a concretizar.
(1) As companhias comerciais tinham um carácter temporalmente limitado. Sendo firmadas para a execução de um negócio concreto.
(2) Daí que para além dos escravos da armação que transportou na nau Santiago tenha levado, igualmente, "onze peças que eu trouxe por minha conta a parte que são as que eu avia dexado em guine de otra viage".
ANTT, Convento de São Bento da Saúde, Livro 18, tl. 497.
(3) No meio dos papéis relativos ao negócios desta companhia encontrámos um instrumento de divída estabelecido entre António Fernandes Landim e António Vicente em que este dera ao primeiro 40 000 réis a serem pagos em Cartagena. Este documento, bem como o correspondente recibo datam respectivamente de Abril e de Agosto de 1623.
Ibidem, Livro 14, tls 467 e 467v.
(4) Testamento de António Fernandes Landim,
in ANTT, Registo Geral de Testamentos, Livro 8, tl. 250 v.
(5) António Fernandes Landim tinha urna procuração de um mercador lisboeta, António Lopes Soares. para receber de Fernão Lopes de Mesquita, escrivão da capitania em Cacheu, os bens de Francisco Dias Mendes de Brito que estavam em poder daquele.
ANTT, Convento de São Bento da Saúde, Livro 18, fls. 513-517, de 22 de Setembro de 1632.»
DE SANTIAGO PARA A COSTA DA GUINÉ: A TRANSFERÊNCIA DO CENTRO GEOGRÁFICO DOS NEGÓCIOS E A MANUTENÇÃO DA ELITE COMERCIANTE as transacções da companhia de António Fernandes Landim e de Francisco Dias Mendes de Brito ( 1629-1630) por Maria Manuel Ferraz Torrão
1627/05/00
Nesta aliança comercial entre os dois mercadores de Lisboa havia um bem comum: o navio que efectuaria a viagem de resgate, a nau Santiago, nome bastante comum nas embarcações nos séculos XVI e XVII.
Pertencendo metade a ANTÓNIO FERNANDES LANDIM, um terço a FRANCISCO DIAS MENDES DE BRITO e um sexto ao mestre da embarcação, LUÍS AFONSO MAIO, o navio deveria ser de dimensões consideráveis se atendermos quer ao número de tripulantes, quer à quantidade de escravos transportados entre as duas costas do Atlântico. Desconhecemos, no entanto, a tonelagem exacta do navio que como de costume nos documentos da época não está expressa nos textos (1).
A preparação da viagem da nau Santiago, de que António Fernandes Landim era capitão, senhorio e armador, iniciou-se em Maio de 1627. Nesta data, em Lisboa, Fernandes Landim, entregava-se já à compra de mercadorias para trocar por escravos na Guiné, comprando juntamente com Duarte Lopes Rosa 20 corjos (2) de fofolis (3) ao comerciante lisboeta Fernão Manuel (4). Não sabemos a data exacta da saída do Reino desta nau, mas o itinerário da viagem é facilmente estabelecido. De facto, apesar de não termos quaisquer elementos sobre a navegação da nau Santiago, as menções a locais e factos que foram anotados por terem relevância para a prestação de contas permitem-nos traçar uma sequência da viagem.
O primeiro ponto de paragem foi a ilha de Tenerife nas Canárias, onde aliás António Fernandes Landim tinha provavelmente relações pessoais, visto que era membro da Confraria de Nossa Senhora da Candelária. Aí embarcou 411 barras de ferro, mercadoria muito estimada para as trocas nos Rios da Guiné e recebeu, igualmente, 25 699 reis em dinheiro, um avanço de capital pertencente a Mendes Brito que facilitaria os negócio em Cacheu, mas de que Landim teria de "pagar juros" de cerca de 60% (5). De Tenerife o navio rumou a Cacheu onde chegou em data que desconhecemos e donde saiu para Cartagena nos primeiros dias de Maio de 1629. Ao longo da sua estada na Guiné procedeu-se ao aprovisionamento da nau. Compraram-se algodões, panos e barafulas de Santiago, mais barras de ferro para se venderem e comprarem os escravos tão necessários nas Índias de Castela. Também em Cacheu se ajustou parte da tripulação que seguiria no navio para a América. Com efeito, entre 30 de Abril e 2 de Maio de 1629 António Fernandes Landim contratou o piloto, 7 marinheiros, 2 grumetes, 1 mestre de negros e um ajudante para este. Estes homens completavam a tripulação que já vinha de Lisboa constituída pelo mestre e co-senhorio do navio, 6 marinheiros, 2 grumetes e 1 tanoeiro (6) . Se a esta campanha de 22 indivíduos juntarmos o armador, António Fernandes Landim, o seu escrivão, o barbeiro (7) e 2 passageiros (8) , que entraram na Guiné, Diogo Mendes e António Vicente, temos um total de 27 pessoas a bordo, exceptuando os escravos que o navio também transportaria.
No mês de Abril e início de Maio assistiu-se a um intenso estabelecimento de instrumentos de dívidas efectuadas entre António Fernandes Landim e a comunidade comerciante estabelecida em Cacheu, muitos dos quais eram moradores em Santiago ou com eles tinham relações comerciais.
Tanto
mais que os 2 principais parceiros de
Landim neste expediente estavam intimamente ligados ao espaço insular; eram
eles JOÃO PEREIRA CORTE REAL governador
das ilhas ( 1627-1630) e SEBASTIÃO FERNANDES CAÇÃO, feitor do contratador ANDRÉ DA FONSECA, FRANCISCO SODRÉ PEREIRA capitão de Cacheu, FERNÃO LOPES DE MESQUITA,
escrivão da capitania de Cacheu, AMBRÓSIO DIAS, procurador do governador Corte
Real, MANUEL DE ANDRADE e praticamente todos os membros da tripulação
contratada na Guiné foram intervenientes na armação de António Fernandes Landim
por intermédio deste processo.
Landim
contraía dividas com estes indivíduos num montante
determinado (em mercadorias, em escravos ou em dinheiro contado) para efectuar
as compras dos negros necessários para o "fornecimento da nau e saneamento
dos direitos reais", ou seja da dita quantia pré-estabelecida pela CASA DA CONTRATAÇÃO DE SEVILHA de escravos que o comerciante lisboeta podia introduzir
nas Índias de Castela. Uma vez chegado a
Cartagena, o armador deveria pagar a divída num espaço de tempo entre os 15
dias a 1 mês – ou antes caso entretanto houvesse envio de remessas para Sevilha
- ao próprio credor ou a um seu procurador designado para o efeito.
O montante do crédito seguia na nau a risco de fogo, mar e corsários por
conta do credor e de vida dos negros por conta do devedor, ANTÓNIO FERNANDES LANDIM. Se os escravos em que
o dinheiro era empregue morressem Landim deveria suportar a perca, se a nau
fosse alvo de algum acidente
natural ou de ataque de corsários o risco seria suportado pelo dono do capital.
Estes
eram os tão controversos empréstimos ou créditos a risco. Este expediente era
um meio de satisfazer as exigências de apetrechamento do navio pela concessão
de capitais necessários ao armador, uma forma de financiamento da armação. A
penumbra que envolve estes negócios, pela necessidade de esconder tudo o que
fosse empréstimo, dificulta um real aprofundamento desta interessante
problemática (9).
Este
processo de transferência de verbas complicava-se ainda mais pois, muitas
vezes, entravam no jogo "dinheiro alheios". Isto é, o capital
emprestado não pertencia ao indivíduo que contraía a dívida, mas a um terceiro
com quem aquele tinha relações comerciais. Por exemplo, os 50 000 réis que PEDRO DE CASTRO deu a ANTÓNIO FERNANDES LANDIM para
"pagar em Índias", pertenciam a um vizinho de Sevilha, SIMÃO DIAS,
procedentes de uma encomenda que PEDRO DE CASTRO lhe mandara (10).
Assim
temos, para além deste caso, os seguintes "jogos com dinheiros
alheios" (ver quadro mais abaixo).
Toda
esta circulação financeira prendia-se com o tráfico de escravos, principal
fonte de rendimento deste circuito comercial. ANTÓNIO FERNANDES LANDIM ao aportar em Cacheu com a sua nau pretendia
"enchê-la" de negros. Comprou-os na própria povoação aos comerciantes
locais e enviou um dos membros da sua tripulação, FRANCISCO RODRIGUES, a efectuar
"viagens ( ... ) nestes rios de Guiné em hua lancha" para comprar
mais escravos no sertão. As suas aquisições aos mercadores estabelecidos
no porto, a serem pagas em Cartagena, atingiram a centena e meia de escravos. Dentro destas compras, as de negros
pertencentes ao governador JOÃO PEREIRA CORTE REAL, ao feitor do
contratador SEBASTIÃO FERNANDES CAÇÃO e ao capitão FRANCISCO SODRÉ PEREIRA foram as mais significativas, representando respectivamente
35%, 30% e 20% do total das aquisições.
(1) Sobre os problemas que a omissão documental da tonelagem dos navios coloca veja-se Leonor Freire Costa, "O transporte marítimo no Atlântico nos séculos XVI e XVII: contributo para um estudo de rentabilidade'' in Actas do IV Colóquio Internacional das ilhas Atlânticas, no prelo.
(2) Corjo ou corja era um número de 20 peças da mesma sorte. António Morais da Silva, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 1.ª ed., Lisboa, 1949-1959, vol. 3, pp. 55/57.
(3) Fofoli era um tecido indiano de algodão pintado ou estampado em quadradinhos. António Morais da Silva, (1949-1959), vol. 5, p. 253.
(4) ANTT, Convento de São Bento da Saúde, Livro 18, fl.526.
(5) Ibidem, fl. 547.
(6) Tanoeiro era o artífice que fabricava ou reparava pipas , toneis, domas ou objectos análogos. António Morais da Silva, (1949-1959), vol. 10, p. 644.
(7) Embora desconheçamos o documento da contratação do barbeiro, Miguel Lopes, sabemos que este prestou serviço à armação desde a Guiné, no mar e também em Cartagena, dos quais foi pago nesta última cidade por 240 pesos. ANTT, Convento de São Bento da Saúde, Livro 18, fl.497.
(8) Temos uma referência ao eventual embarque de um outro passageiro, Manuel Mendes Carneiro, mas que não conseguimos confirmar, pelo que julgamos que não se chegou a efectuar. Ibidem, tls. 464-465v.
(9) O crédito a risco como meio de satisfazer as exigências de apetrechamento dos navios nas diversas carreiras atlânticas, nomeadamente para o Brasil tem sido estudado por Leonor Freire Costa. Veja-se a comunicação "O transporte marítimo no Atlântico nos séculos XVI e XVII: contributo para um estudo de rentabilidade" in Actas do IV Colóquio Internacional das Ilhas Atlânticas.
(10) Ibidem, Livro 14, fl. 404, de 11 de Abril de 1629.
1629
O que dizer, porém, do forte de Bezeguiche, na ilha Goreia, localizado defronte a Dacar e muito próxima a Rufisque, na Petite Côte, onde havia importante comunidade sefardita? Ali o tráfico de escravos assumiu enorme importância desde cedo. Nossos autores esclarecem, porém, que houve perseguição aos judeus, não somente na Goreia, como em Cacheu, por volta de 1629, por ocasião da expedição comandada pelo governador João Pereira Corte Real. Foi neste ano que a “sinagoga” de Rufisque foi fechada.
Em 1629, o governador JOÃO PEREIRA CORTE REAL foi expulsar com ordem régia os judeus portugueses que tinham uma sinagoga em Rufisque.
Usufruindo da proximidade dos Rios da Guiné, que a sua instalação em Santiago lhes proporcionava, e da separação espacial do Reino, que lhes facilitava a prática de abusos dificilmente punidos, a elite comercial insular transferiu o centro dos seus negócios para a Costa. Aí, estabeleceram feitores ou simples procuradores, aliaram-se a mercadores reinóis e integraram-se em redes de agentes internacionais fixados em Lisboa, Sevilha e Cartagena, de que passaram a fazer parte de pleno direito. Não é assim de estranhar que numa época em que Santiago tinha já um papel secundário no tráfico de escravos, 1629-1630. A participação significativa do governador de Cabo Verde e do feitor do contratador, entre outros, no abastecimento de escravos a armações de circuitos transcontinentais, bem como a presença de algodões, panos e barafulas de Santiago enquanto mercadorias de grande aceitação nos resgates da Costa, ou ainda o investimento de capital de moradores da ilha como forma de financiar essas armações são três elementos concordantes e elucidativos da manutenção de uma mesma elite mercantil na exploração do tráfico de escravos guineenses, a despeito de se ter verificado uma alteração no centro espacial dos negócios. A análise da companhia comercial firmada entre António Fernandes Landim e Francisco Dias Mendes de Brito permite-nos explorar os circuitos atlânticos, os quais, visto que eram habitualmente entregues a particulares, são mais difíceis de conhecer do que a grande rota da Coroa, a rota do Cabo.
Os contratadores de Cabo Verde "colocavam no terreno" os seus feitores, distribuídos por pontos-chave dos circuitos de comercialização do trato de escravos - Santiago, Cacheu, Cartagena, Sevilha e Lisboa - não reservando, todavia, para seu uso exclusivo este espaço comercial. Permitiam a outros comerciantes que efectuassem resgates nos portos dos Rios da Guiné, aos quais cobravam os respectivos direitos alfandegários.
Sabendo ler, escrever e contar, o sócio de António Fernandes Landim era um representante do tipo de mercadores que referenciámos como um modelo perfeitamente distinto do de Landim.A sua ligação pessoal e familiar à "Lei de Moisés" levou a que, a par do término da sua companhia com António Fernandes, fosse preso pela Inquisição em Novembro de 1630 Acusado por se ter "apartado da nossa santa fee catholica e se passou à crença da ley de Moysés tendo-a ainda agora por boa e verdadeyra esperando-se salvarsse nella e não na Fé de Christo noso senhor" (1) era-lhe apontado o facto de guardar os sábados de trabalho, vestindo neles camisas lavadas e melhores vestidos, jejuar às segundas e quintas sem comer nem beber senão à noite, não comer porco, lebre, coelho ou peixe sem escamas, nem acreditar no sacramentos que só praticava "por comprimento do mundo" (2). O ano de 1630 foi destruidor para a família Mendes de Brito. Sucederam-se a um ritmo galopante as prisões de vários membros da família: irmãos, sobrinhos, primos.
Os bens de Francisco Dias Mendes de Brito foram confiscados para a Câmara Real, dos quais constavam inclusivamente escravos que haviam ficado na Guiné, quer de negócios particulares de Mendes de Brito - 40 escravos e 311 barafulas que foram "arrematados por dívida" ao mercador lisboeta António Lopes Soares (3) - quer procedidos das transacções da sua companhia com Landim (4) . Tendo terminado por confessar as suas culpas na Mesa do Santo Oficio, mandado ao Cárcere da Penitencia para ser instruído nas cousas da fé, em Março de 1632, Francisco Dias Mendes de Brito acabou por ser solto sob fiança por estar muito doente, falecendo de seguida.
(1) Processo de Francisco Dias Mendes de Brito l, .. ), in ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 7703.
(2) Ibidem.
(3) Carta régia ao capitão de Cacheu, Francisco Sodré Pereira, para que este mande que Fernão Lopes de Mesquita, escrivão da capitania, entregue a António Fernandes Landim, procurador de António Lopes Soares os escravos e barafulas que tem em seu poder, confiscados a Francisco Dias Mendes de Brito. ANTT, Convento de São Bento da Saúde, Livro 18, fls. 513 - 517, de 22 de Setembro de 1632.
(4) Em Cacheu haviam ficado 15 escravos da companhia, 1/2 dos quais pertenciam ao fisco estando nas mãos de Fernão Lopes de Mesquita. Carta régia ao capitão de Cacheu, Francisco Sodré Pereira, para que Fernão Lopes de Mesquita entregue os ditos negros a António Fernandes Landim "pera este os navegar com os seus pera aqui dar conta deles quando vier". Ibidem, fls. 561 - 564, de 22 de Setembro de 1632.
1629/01/00
ÁLVARO GONÇALVES FRANCÊS natural e casado na cidade de Lisboa foi à cidade de Cartagena com um navio de escravos em Janeiro de seiscentos e vinte e nove do lugar de Cacheu dos rios da Guiné.
1629/05/00
Reunidos ao longo de meses na povoação de Cacheu - em Setembro de 1628 regista-se já a morte de um escravo por conta da armação (1) -, estes negros por vezes fugiam ou faziam "alevantações" para tentar a fuga (2). Era, no entanto, o mais próximo possível da data da largada da embarcação que se efectuavam as compras de maiores contigentes; procurava-se, assim, evitar os inconvenientes de fugas e mortes antes do embarque.
LANDIM saiu de Cacheu no início de Maio de 1629 com cerca de 480 escravos a bordo: 344 da armação (3), 44 de passageiros, 19 de ANTÓNIO VICENTE e 25 a cargo de DIOGO MENDES das quais só 21 é que pertenciam ao próprio, as outras 4 iam por conta e risco de BALTAZAR MARTINS (4), 60 dos membros da tripulação, de seus negócios ou a que tinham direito como emolumento do seu ordenado, 18 do mestre LUÍS AFONSO MATOS e 11 de ANTÓNIO FERNANDES LANDIM de viagens anteriores.
Todas estas peças iam "debaixo de registo", ou seja, dentro dos números de licenças que ANTÓNIO FERNANDES LANDIM dispunha para introduzir escravos nas Índias de Castela, comprometendo-se o armador a entregar aos passageiros uma "fe de registo" por cada peça que viva chegasse a Cartagena, para que estes as pudessem navegar para onde quisessem (5). Por cada peça transportada a bordo da nau Santiago, que não pertencesse à armação, ou que não fosse emolumento do ordenado dos tripulantes, Landim cobrava 33 mil réis de frete e 12 mil réis das respectivas avarias (6).
(1) Memória dos negros que morrerão por conta da armação, ANfIT, Convento de São Bento da Saúde, Livro 18, fl. 505.
(2) Ibidem.
(3) Embora no texto do Livro de Conta da Armação estejam registados 334 negros, a soma que efectuámos contabilizou 344. Existem igualmente outros pequenos erros nos registos deste livro, mas são aspectos irrelevantes para análise da companhia.
(4)ANfIT, Convento de São Bento da Saúde, Livro 14, fl. 480 v.
(5) Ibidem
(6) Memoria do que cobrey de peçoas que comigo carregarão peças, Ibidem, Livro 18, fls 490-490 v.
1629/06/25
Um mês e meio após a saída de Cacheu, quando ANTÓNIO FERNANDES LANDIM e o seu navio aportaram a Cartagena, em 25 de Junho de 1629, iníciava-se uma nova etapa da viagem e do negócio da nau Santiago. Era necessário vender os escravos, pagar à tripulação, saldar dívidas, fechar as contas, avaliar os lucros e dividi-los. Arranjaram-se casas onde instalar os negros, repartidos entre pousadas alugadas pelo armador, a casa de JOÃO RODRIGUES MESAS, procurador em Cartagena do contratador de Cabo Verde e a de um tal ANJO, compraram-se alimentos para esses mesmos escravos, contratou-se um cirurgião para com os seus unguentos curar os negros doentes, bem como outro indivíduo para os visitar.
Carne, tartaruga e peixe eram a base de alimentação diariamente comprada pelo armador. Entre 25 de Junho e 17 de Agosto de 1629, ou seja entre o dia em que a nau chegou a Cartagena e o dia em que provavelmente se concluiu a venda dos negros, todos os dias se efectuou a aquisição de um destes géneros alimentares. A compra de carne, habitualmente 11 ou 12 arrobas, era a mais comum, tendo-se comprado um total de 442 arrobas, 6630 quilos; carne de tartaruga foi um alimento consumido 9 vezes durante este período, tendo Landim adquirido 11 tartarugas; o peixe era comprado semanalmente - compras a 6, 13114, 21, 28 de Julho, 4 e 12 de Agosto - provavelmente sextas-feiras ou dias de preceito. Não deixa de ser muito interessante notar este facto que demonstra por parte do armador um perfeito cumprimento das normas religiosas da época, e uma integração profunda na mentalidade e no comportamento representativo da sociedade num dado momento. 6 botijas de mel, 4 de azeite, 2 de manteiga, 2 arrobas de açucar e umas insignificantes fanegas (1) de milho (provavelmente maís),
Em Cartagena os negros africanos foram todos vendidos. Desembarcaram 21 homens, 2 mulheres, 3 mulheres grávidas, 15 moços, 1 moça, 29 meninos, 10 meninas e 263 escravos que, por terem sido vendidos em lotes, não podemos classificar em termos de idade e sexo.
Estes grupos mais numerosos foram comprados por grandes comerciantes locais, de que se destaca a figura de JOÃO RODRIGUES MESAS procurador do contratador de Cabo Verde, ANDRÉ DA FONSECA, D. LUÍS DA ROCHA, o feitor local, FORMIM DE LOYOLA, DIOGO DIAS, BERNARDO DIAGO, ANDRES DE CASTRO e SEBASTIÃO DUARTE foram outros dos grandes
receptores da armação; provavelmente seriam proprietários de terras e minas para explorar, ou dedicavam-se à revenda de negros no interior. Uma outra clientela constituída por oficiais militares (sargentos, tenentes, capitães e o general da galé) e da Fazenda (escrivão dos registos, guarda-mor da contadoria, contador, etc.) bem como a população residente na cidade, de que realçamos até um preto forro, compraram um a três escravos, normalmente crianças.
Os preços mantinham-se em intervalos próprios, correspondentes ao sexo e à idade:
Atendendo a que em Cacheu o preço de um lote de escravos oscilava entre os 50 a 60 mil réis por peça e em Cartagena situava-se nos 102 400 réis, verifica-se um ganho de cerca de 46%. Só que ao valor inicial tinham de ser acrescentados uma série de gastos que logicamente encareciam o preço dos escravos: direitos alfandegários de saída da Guiné e de entrada em Cartagena, preço do transporte e da alimentação durante a viagem e até se efectuar a venda, para além de outros gastos possíveis.
A influência do custo dos fretes e dos direitos no preço final dos escravos é bem evidente no facto de haver marinheiros que optavam por receber menos dinheiro contado por salário, mas poderem transportar a bordo negros sem terem de pagar frete nem direitos. Assim, podendo participar no tráfico de negros devido à sua profissão, estes mareantes reduziam os custos que deviam suportar na transferência da sua mercadoria entre Cacheu e Cartagena.
(1) Fanega, medida espanhola de 55,5 litros.
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